O mundo que aí vem vai ser eléctrico: os carros, as casas, os robôs, talvez até os barcos e os aviões. E precisa de lítio para alimentar as baterias. A corrida pelo mais leve dos metais já começou. As grandes potências lançam minas e gigafactories, chove dinheiro para modelos de carros eléctricos. Portugal também vai a jogo na transição energética. Mas os agouros da descarbonização não convencem as aldeias transmontanas que têm lítio. Os seus moradores juram que ali não vai haver nem um furo.
Há mais de cinco anos que os portugueses sabem que existe lítio debaixo da terra que pisam. Mas ainda não sabem se é uma bênção ou uma maldição. Enquanto o Governo fala na criação de uma nova indústria e a UE anuncia a abertura de fábricas de baterias, fervilha um conflito nas serras do Barroso, da Argemela e de Arga. Há famílias de costas voltadas e ameaças. As empresas desesperam com os atrasos, há acções em tribunal e receios sobre os impactes ambientais. O lítio pode ser o mais leve dos metais, mas o seu peso na transição energética está a virar o interior de pernas para o ar.
Tiago Carrasco(texto e fotografia) e
Vítor Martinho(vídeo)
A pandemia não mete medo em demasia a Aida Fernandes. Até porque em Covas do Barroso, uma aldeia do concelho de Boticas com menos de 200 habitantes permanentes, o coronavírus não matou ninguém e até os idosos que foram infectados escaparam com sintomas leves: “A comida aqui é saudável, o ar é puro, a água é excelente. Talvez isso tenha um papel na resistência das pessoas à doença”, diz Aida, 42 anos, agricultora e criadora de vacas.
Tanto Aida como o companheiro, Nélson Gomes, mantiveram ao longo do último ano um estilo de vida com que muitas famílias urbanas puderam apenas sonhar; não estiveram em teletrabalho nem usaram o Zoom, fizeram passeios ao ar livre sem se cruzarem com outras pessoas e evitaram as filas nos supermercados ao plantarem e produzirem os alimentos que consumiram. Nélson só precisou de usar máscara para ir ao barbeiro em Boticas. Ficou logo com alergias. Só voltaria a colocá-la para participar numa manifestação contra a mina em Lisboa.
O que realmente aterroriza Aida também é invisível, mas não paira no ar, antes jaz debaixo dos seus pés, que caminham lentamente entres tubos azuis cravados na terra baldia para assinalar furos de pesquisa mineira. Era ela ainda menina, com 12 ou 13 anos, quando numas férias escolares, ao pastar as vacas do pai nos terrenos do Vale Cabrão, a comba vasta que se estende aos pés da povoação, avistou um geólogo: “Foi curioso porque nunca tinha encontrado ali ninguém a recolher amostras de pedras”, recorda. “E achei curioso também ele me ter perguntado o que eu queria ser quando fosse grande.”
Nem Aida nem o geólogo tiveram noção da relevância do encontro. Ela tornou-se adulta, juntou-se com Nélson e teve duas filhas. Ao contrário das suas amigas, rejeitou abandonar Covas para entrar na universidade. Quis permanecer ali, manter o contacto com a natureza e com os animais, ser em grande aquilo que não teve coragem para dizer ao cientista: uma mulher da terra, vaqueira, agricultora. “Cheguei a ter vergonha de dizer aos meus amigos que queria manter este estilo de vida porque na altura todos queriam ter outros empregos na cidade”, diz. “Hoje muitos mostram interesse e elogiam a minha decisão.”
Também o geólogo lhe deixou coisas por dizer. Estava a fazer as primeiras sondagens de lítio, o mais leve dos metais, presente na espodumena do subsolo do Alvão. Naquela época, os carros eléctricos ainda pertenciam ao espectro dos filmes de ficção científica: o lítio era então cantado por Kurt Cobain, dos Nirvana, por ser usado em fármacos no tratamento do distúrbio bipolar e, essencialmente, aplicado nas indústrias cerâmica e vidreira para baixar o ponto de fusão e assim reduzir o consumo energético.
Passaram-se 30 anos. E o lítio ficou grande; maior que Aida, maior que Covas. O material é hoje uma peça-chave no fabrico de baterias para os carros eléctricos e para o armazenamento de energia, essencial para a descarbonização dos transportes e para o combate às alterações climáticas. À aldeia remota chegaram mais cientistas e empresas mineiras: uma delas, a britânica Savannah Resources, avançou com um projecto de extracção de lítio a céu aberto. Mas desconhecem-se ainda as consequências ambientais da exploração a larga escala. O mundo encontrou em Covas algo de que precisa para a sua cura, mas tanto Aida como a maioria dos aldeões vêem na pretensa salvação do mundo a destruição do seu.
Após anos de impasse, Bruxelas apercebeu-se de que estava a ficar para trás na adopção de medidas favoráveis à transição energética, uma corrida liderada com grande vantagem pela China. A resposta foi uma chuva de dinheiro para fomentar o sector: “No ano passado, investimos cerca de 60 mil milhões de euros, que é três vezes mais do que a China, e acreditamos que nos próximos anos ultrapassaremos os EUA como segundo maior mercado mundial de baterias de lítio”, afirma ao PÚBLICO Sonya Gospodinova, porta-voz da comissão para o Mercado Interno, Defesa e Espaço. “Acreditamos que estamos na corrida e a acelerar.”
O “electroestado”
O Velho Continente tenta recuperar de um atraso de vários anos. Há mais de uma década que a China, completamente dependente a nível do abastecimento de petróleo e a braços com um gravíssimo problema de poluição atmosférica, começou a investir nas energias renováveis e na mobilidade eléctrica. O Estado distribuiu generosos incentivos para a compra de veículos eléctricos e as empresas investiram em minas de cobalto no Congo e de lítio no Chile e na Austrália, assegurando os minerais necessários para o fabrico de painéis solares e de baterias. Também surgiram várias refinarias, vocacionadas para a transformação da matéria-prima nos componentes realmente essenciais para as baterias — o carbonato e o hidróxido de lítio.
“Até 2015, o lítio era usado mais para a cerâmica e produtos lubrificantes. As baterias consumiam apenas 30% do lítio a nível global”, diz Martim Facada, um português que é o único corretor europeu de lítio, do Grupo SCB, em Londres. “Foi pela aposta do Governo chinês nas energias renováveis e nas baterias de lítio que hoje de 55 a 60% do lítio produzido já acaba em baterias.” Incapaz de se transformar num “petroestado”, a China optou de forma inteligente por se tornar num “electroestado”, criando uma cadeia de valor desde a mineração à construção de automóveis. Isto não significa que Pequim seja um exemplo na acção climática: mais de 1000GW da sua produção eléctrica é gerada em centrais a carvão. Isto representa metade da electricidade produzida a carvão em todo o mundo e, consequentemente, a maior emissora de dióxido de carbono para a atmosfera em todo o planeta.
A meio do percurso, apareceu a norte-americana Tesla. A empresa de Elon Musk transformou os subestimados carros eléctricos em produtos de charme e construiu no Nevada, EUA, a maior gigafactory (fábrica de baterias) do mundo, capaz de produzir 35GW de baterias de iões de lítio por hora. O investimento de Musk vai permitir-lhe reduzir o preço dos modelos da Tesla até 30%, colocando-os disponíveis ao orçamento da classe média Ocidental. A consultora Deloitte estima que em 2030 um terço dos automóveis seja eléctrico.
O mercado, ainda na sua infância, começou a ganhar forma: o lítio é extraído essencialmente dos salares (desertos de sal) do Chile e da Argentina e das rochas da Austrália — com bastante capital chinês e americano —, refinado na China e usado nos cátodos e ânodos das baterias em fábricas instaladas nos EUA, Coreia do Sul, Japão e China. “Os gestores da indústria automóvel europeia insistiram nos motores de combustão para lá do aceitável”, diz Marc Schietinger, investigador da Fundação Hans-Böckler, na Alemanha. “Só quando se aperceberam da inevitabilidade da mobilidade eléctrica é que compreenderam que estavam dependentes da Ásia tanto a nível de matérias-primas como de baterias.” Os alarmes soaram na UE: era necessário, por um lado, investir no combate às alterações climáticas, e por outro, proteger a poderosa indústria automóvel europeia. Só na Alemanha, a maior potência comunitária, os carros geram quase 500 mil milhões de euros anuais, 5% do PIB do país. “Em última instância, a sobrevivência da indústria automóvel alemã está ligada à sobrevivência da própria UE”, diz Schietinger.
Os 10% de Portugal
“A Europa vai precisar de 60 vezes mais lítio até 2050, só para os carros eléctricos e para o armazenamento de energia”, disse Maros Sefcovic, vice-presidente da Comissão Europeia para as Relações Interinstitucionais, aquando do anúncio da inclusão do lítio na lista de matérias-primas críticas para a Europa, em Setembro de 2020.
A nível global, as reservas de lítio em Portugal são residuais: menos de 1% do total mundial. Mas os números têm outra relevância quando enquadrados no contexto europeu. “Portugal tem 10% do total das reservas europeias”, diz Gospodinova. “Uma quantidade que certamente contribuirá para os nossos planos.”
Quando olharam para os relatórios sobre lítio, os responsáveis europeus perceberam que Portugal estava na frente. Afinal, o país era o único produtor de lítio no espaço comunitário, embora as toneladas extraídas fossem em forma de quartzo e feldspato e totalmente canalizadas para as indústrias da cerâmica e do vidro, e não para as baterias. Foi graças a essa indústria com bastante tradição em Portugal que foram realizados nas últimas décadas extensos estudos e relatórios que demonstram a ocorrência de filões de lítio em zonas do Norte e do Centro do país. Um autêntico chamariz para empresas estrangeiras que, a partir de meados da última década, chegaram a Portugal com a intenção de confirmar a viabilidade de extracção da matéria-prima para dar arranque ao sonho europeu. “Na Europa, os países mais referenciados são Portugal e a Finlândia, seguidos ultimamente pela Áustria e pela Irlanda”, diz Alexandre Lima, geólogo e professor auxiliar da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto. “Só no caso concreto de Covas do Barroso, há 30km de sondagens para provar que os recursos existem.”
O processo de detecção de lítio começa na academia, com os geólogos. A Universidade do Porto iniciou as sondagens em 1987, quando foi feita a primeira descoberta no Barroso. Lima, que até tinha mais interesse no ouro, foi um dos estudantes de doutoramento que acabou por aprofundar esses estudos e, daí para a frente, tem feito vários projectos para o aproveitamento dos recursos nacionais. “Nós estudamos o lítio desde a sua detecção, utilizando satélites e drones, e só quando termina toda essa campanha de gabinete é que passamos para o campo, onde vamos ter ideia se existe no território em estudo alguma possibilidade de haver lítio com viabilidade económica”, diz o académico. “Quando encontramos valores relativamente altos, tiramos uma amostra de cerca de 1kg. Trazemos essa amostra para o laboratório, serramo-la em lâminas e podemos observá-la ao microscópio. Aí podemos analisar que tipo de material é, a estrutura cristalina dos cristais, o fluido que está dentro da estrutura de cristais, de forma a sabermos o mais possível sobre aquele material.”
Lima fala apaixonadamente sobre lítio e sobre a geologia, a que se refere como “a minha ciência”. No terreno, acompanhado pela sua equipa de dez universitários, salta energicamente de rocha em rocha — como se também ele fosse alimentado por uma pilha inesgotável —, agachando-se para, muito concentrado, contemplar a aparência das pedras. Desta feita, a equipa encontra-se junto à barragem de Daivões, em Ribeira de Pena, para mapear as ocorrências de lítio antes de os terrenos ficarem submersos pela água das novas barragens da Iberdrola. “Graças a este trabalho, daqui a 70 anos, quando a concessão terminar, vamos saber onde está o lítio se o quisermos utilizar”, diz Lima. “Eu já não vou cá estar mas pode ser importante para o país.”
A zona já está pronta para ser engolida pela água: as casas estão abandonadas, as máquinas retiram areia das margens, há ferros espetados por todo o lado. Um cenário cada vez mais comum em Trás-os-Montes, uma região que nas últimas décadas tem visto os seus recursos naturais explorados sem grande retorno para os habitantes: depois do Tua, de Miranda do Douro e de Montalegre, as comportas abriram-se agora para Ribeira de Pena.
“O que estão aqui a fazer?”
Alexandre Lima lamenta que o projecto das barragens se tenha sobreposto aos seus estudos sobre lítio naquela área. Trata-se de espodumena, o minério que o geólogo considera ter mais viabilidade para a indústria de baterias: “Actualmente, quase toda a mineração de lítio para baterias faz-se a partir de espodumena”, afirma.
Os geólogos usam um equipamento caro e sofisticado; encostam-no a uma amostra, primem um botão e o visor mostra-lhes os vários componentes minerais existentes na rocha e as respectivas quantidades. Aproximam-se depois da galeria de uma mina antiga, talvez romana. “Cuidado, pode ser perigoso, não sabemos a profundidade do buraco”, diz o professor. “Os antigos sabiam o que faziam. Perto de velhas minas há quase sempre filões interessantes.”
Os tempos que correm não são de feição para a actividade de Lima e da sua equipa. Desde que o lítio se tornou polémico em Portugal, algumas zonas de pesquisa tornaram-se demasiado perigosas para os geólogos da Universidade do Porto, conotados pelas populações com o interesse na exploração. Já lhes furaram os pneus das carrinhas e foram ameaçados. Lima deixou de ir a Covas do Barroso. Os moradores não ofereceram resistência aos cientistas e às empresas de mineração quando realizaram operações de pesquisa, até 2018. “Pensávamos que era só prospecção e que a área era muito mais pequena”, diz Nélson Gomes. No entanto, zangaram-se quando se aperceberam que o projecto da mina estava a avançar e que contemplava uma cratera com 150 metros de profundidade para remover o minério. “Fizeram tudo nas nossas costas, sem transparência, e desde então opusemo-nos fortemente à empresa.”
O projecto da Savannah já tem o contrato de exploração e a consulta pública do Estudo de Impacte Ambiental (EIA) terminou no dia 16 de Julho. Se o parecer final da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) for favorável, a mina arrancará mesmo. Depois de muitos atritos e discussões, os opositores locais proibiram os funcionários da empresa de circularem pela área de concessão, ainda debaixo da jurisdição do conselho directivo dos Baldios de Covas do Barroso, a que Aida preside. “O que estão aqui a fazer? Não me importa que estejam com jornalistas. Já vos disse que só podem vir aos baldios com a nossa autorização”, atirou Aida, em Fevereiro de 2020, para dentro do jipe da empresa britânica, que estava a guiar os repórteres do PÚBLICO. O esquema está montado: quando qualquer morador detecta um veículo estranho, contacta imediatamente Aida ou Nélson, que, legalmente legitimados, vão ao encontro dos forasteiros para os expulsar.
Aida está cansada dessa vigilância, da tensão permanente. “Já perdi muito com esta luta”, afirma. A Mina do Barroso ainda não arrancou lítio ao subsolo, mas já a arrancou da família. Num meio tão pequeno, uma decisão tão polémica e mediática como a exploração de lítio é suficiente para virar vizinhos e familiares uns contra os outros.
Em 2017, quando a Savannah começou a pesquisar os filões de Vale Cabrão, João Fernandes, 44 anos, irmão mais velho de Aida, pediu ao banco um empréstimo de 200 mil euros para comprar um tractor, uma retroescavadora e um tanque portátil para depósito de água. A empresa londrina contratou-o para fornecer a água necessária à plataforma de perfuração, que viria a revelar a existência de uma reserva de 27 milhões de toneladas, suficiente para dez anos de produção. Em um ano, João fez tanto dinheiro como em cinco ou seis de trabalho agrícola. Tornou-se um acérrimo apoiante do avanço da mina, ao contrário da irmã, que por esta altura já se posicionava no movimento contestatário.
O clímax da disputa familiar deu-se em 2019. Havia eleições para o Conselho Diretivo da Comunidade de Baldios e João apresentava-se como candidato único à presidência. Em caso de vitória, a Savannah teoricamente passaria a ter do seu lado o decisor sobre a larga maioria das terras abrangidas na área de concessão. Porém, no dia da eleição, Aida apresentou-se a votos. E venceu. Ganhou a possibilidade de dificultar o nascimento da mina mas perturbou a relação com o irmão e com o pai, que tomou as dores do primogénito. “Será que vale a pena? Se a mina avançar, não vou conseguir recuperar os danos que isto já me causou”, desabafa
A viagem do lítio: desde a natureza até ao carro eléctrico
O lítio é o metal de referência para a mobilidade eléctrica e vai fazer parte das nossas vidas ao longo das próximas décadas. O mais leve de todos os metais percorre um longo caminho desde o seu estado natural, nas rochas ou nos desertos de sal, até às baterias dos telemóveis ou dos carros eléctricos. Existe sobretudo no Chile, na Argentina e na Austrália e é essencialmente na China que é transformado em carbonato e hidróxido, os componentes que integram as baterias. Na Europa, estão em construção dezenas de novas fábricas de baterias de lítio, uma substância que ainda há pouco mais de 200 anos era desconhecida.
O Governo anunciou há três anos um concurso para a prospecção e exploração de lítio. Ainda não arrancou. Complicações com a nova lei mineira têm ditado a estagnação da estratégia nacional. No entanto, no Barroso e na Argemela três empresas adiantaram-se e fizeram os primeiros furos de pesquisa na tentativa de inaugurar as primeiras minas. Uma corrida ao lítio repleta de polémicas e de suspeitas.
Tiago Carrasco(texto) e
Vítor Martinho(vídeo)
Em 2016, Alexandre Lima, geólogo e professor da Universidade do Porto, começou a receber telefonemas de empresas mineiras da Austrália e do Canadá interessadas no lítio português. Apesar de alguma surpresa por tão voraz apetite, havia fortes razões para isso: o país tinha já várias reservas geológicas identificadas e uma fatia significativa de energia produzida por fontes renováveis, condições determinantes para ser visto como um potencial pioneiro da transição energética para a electrificação.
Desta vez, ao contrário do que acontecera com o carvão, o gás ou o petróleo, Portugal podia não ficar dependente de importações. Estava na vanguarda: tinha projectos de investigação comunitários sobre lítio a decorrer, como o Fame, e era o único país europeu a exportar este metal. O Governo apressou-se a anunciar a aposta numa nova indústria. E os astros estavam alinhados — nesse ano, aumentou a procura global por esta matéria-prima, cuja oferta ainda era escassa, e os preços dispararam. “A Direcção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) recebeu logo mais de 30 pedidos de licenças de prospecção”, diz Lima.
Para uma corrida sem precedentes a este minério, tornou-se necessária uma estratégia para evitar a exploração descontrolada. Assim, o Ministério do Ambiente e da Acção Climática (MAAC) encomendou a um grupo de académicos um relatório detalhado sobre os recursos de lítio existentes em Portugal. O relatório do Grupo de Trabalho Lítio, divulgado em Março de 2017, identificou nove áreas geográficas com ocorrências de mineralizações de lítio no Norte e no Centro do país: “A primeira fase de prospecção foi atrasada pelo Governo porque se entendeu que não se devia avaliar os pedidos caso a caso, mas sim fazer um leilão”, analisa Lima. “E esse leilão foi anunciado numa feira internacional, o PIDAC, em Toronto, em Março de 2018. Ora, ainda não houve leilão nenhum. Não acho que nos estejamos a precipitar quanto à oportunidade do lítio. Estamos claramente é a atrasar-nos porque não se pode anunciar uma coisa em 2018 e, volvidos três anos, não acontecer nada.”
Na Rua de O Século, em Lisboa, sede do ministério, a perspectiva foi diferente: a Lei das Minas existente não se adequava aos desafios do novo século, pelo que o leilão teria de esperar por uma alteração legislativa. “Estamos a preparar a nossa indústria extractiva para estar alinhada com os objectivos de descarbonização e com o pacto ecológico europeu”, diz ao PÚBLICO João Galamba, secretário de Estado Adjunto e da Energia. “Se a Europa desistir dos seus planos, ficamos com as calças na mão. Não temos é nenhuma indicação de que a Europa vá refrear estas apostas. Estamos convencidos de que temos perdido este tempo a adaptar a nossa legislação e a garantir que o concurso seja lançado com estes princípios. Não é um atraso, é o oposto, é a capacitação desta área em Portugal para estar adaptada aos objectivos estratégicos da Europa.”
Um buraco aberto
A União Europeia (EU), que perdeu 17% das suas minas nos últimos 20 anos, quer voltar ao sector com regras diferentes das usadas na Ásia, em África ou na América do Sul: um sector mineiro que respeite o ambiente, que pague bem aos trabalhadores e que deixe nas zonas de extracção capital e infra-estruturas. “Enquanto não houver indústria extractiva a sério na Europa, todas as minas serão como no Congo e na Bolívia. E como o Governo não é hipócrita e sabe que os impactes ambientais são os mesmos, aqui ou no Congo, temos obrigação de ser ambientalistas até ao fim e de criar condições para que surja uma indústria sustentável na Europa”, diz Galamba. “No Congo e em países em que não há regras é que é normal que venham umas empresas explorar selvaticamente e depois não deixem lá nada. Nós queremos que se crie emprego, que os encargos de exploração beneficiem as populações e que as empresas assegurem o correcto encerramento da mina, para que não venham explorar lítio durante 20 ou 30 anos para depois se irem embora com um buraco aberto e as populações sem nada”.
Em 2019, ano de muita polémica no dossier lítio, as preocupações do Governo foram reforçadas pelos 22 pedidos de prospecção da poderosa empresa mineira australiana Fortescue. “Estamos interessados em oportunidades globais para commodities que apoiam a descarbonização e a electrificação do sector dos transportes, incluindo a prospecção de lítio em Portugal”, diz Elisabeth Gaines, CEO da Fortescue.
A movimentação da Fortescue não passou despercebida. Os requerimentos maciços da empresa totalizaram 6248 quilómeteros quadrados e situaram-se nas imediações das zonas já identificadas como tendo lítio, englobando inclusivamente áreas urbanas de Braga. “A Fortescue sabia que teria poucas hipóteses no concurso, porque lhe falta a componente de transformação, e tentou antecipar-se ao fazer aqueles pedidos”, diz um ex-membro do Governo. “Mas o efeito foi nefasto. A contestação, que estava circunscrita a meia dúzia de focos, alastrou-se às populações urbanas e o Governo, pressionado, decidiu adiar o concurso para tirar o lítio da agenda mediática”. O descontentamento foi tal que a Fortescue teve de retirar um dos seus pedidos no Minho. “Participámos em consultas públicas e revimos e alterámos algumas das nossas candidaturas iniciais de exploração”, diz Gaines.
Por seu lado, a DGEG congelou a apreciação dos pedidos. Até que, a 14 de Outubro de 2020, a tão esperada Lei de Bases dos Recursos Geológicos foi aprovada em Conselho de Ministros. O documento contempla três eixos fundamentais para a actividade extractiva: “O cumprimento dos mais exigentes padrões de sustentabilidade ambiental”; “o reforço da informação e da participação pública e das autarquias locais”; “uma repartição justa dos benefícios económicos da actividade entre o Estado, os municípios onde se inserem as explorações e as suas populações”. Prevê, entre outras coisas, o poder de veto das autarquias nos pedidos de concessão para prospecção e pesquisa (em situações que não contrariem a estratégia nacional) e a recuperação ambiental da área afectada ao longo de período de extracção.
Uma lei enguiçada
Julgava-se, então, que o procedimento concursal estava pronto para arrancar. Puro engano. O documento não satisfez as expectativas dos principais órgãos de pressão — movimentos contra as minas, partidos políticos como Os Verdes e o Bloco de Esquerda (BE) e associações ambientalistas como a Zero, que, entre dezenas de pontos, criticaram a ausência de salvaguarda de áreas classificadas e protegidas.
Ganharam fôlego as exigências de uma análise rigorosa do património ambiental e da biodiversidade das áreas previstas para o concurso. “O lítio é uma oportunidade que nós achamos que deve ser agarrada. Mas temos de encontrar um equilíbrio entre a efectiva necessidade do lítio para a descarbonização e até onde é razoável ir em termos dos locais que vão ser explorados e isso só se faz com participação, transparência e visão estratégica, que não têm acontecido”, dizia Francisco Ferreira, presidente da Zero, aquando da publicação da lei. “Nós defendemos várias vezes que a exploração de lítio e de outros metais devia fazer parte de uma avaliação ambiental estratégica”. De facto, o estudo do Grupo de Trabalho Lítio não contemplou parâmetros de conservação: “Seria extremamente difícil que o grupo de trabalho nomeado conseguisse, no prazo de três meses, considerar também o factor ambiental, o qual exigiria um estudo com valências muito mais complexas e envolvendo várias áreas”, afirma Mário Machado Leite, da direcção do Laboratório Nacional de Energia e Geologia (LNEG).
Assim, a Avaliação Ambiental Estratégica (AAE) avançou mesmo, inscrita na aprovação final do último Orçamento do Estado, por iniciativa da bancada do partido Os Verdes e da deputada independente Joacine Katar Moreira. Galamba mandatou a DGEG para tomar as diligências necessárias, mas o prazo previsto, 2 de Abril de 2021, foi novamente ultrapassado e a sua conclusão prolongada para Novembro.
Ao mesmo tempo, a Lei das Minas só entrou em vigor em Maio, após promulgação do Presidente da República. Fonte do MAAC disse ao PÚBLICO que o novo adiamento se explica “tanto pelo atraso na promulgação do novo regime jurídico” como “pelas dificuldades acrescidas que o período de confinamento trouxe ao desenvolvimento dos trabalhos”. Em Junho, foi o BE a apresentar um pedido de apreciação parlamentar à nova lei, com a sua líder, Catarina Martins, a acusar o ministro do Ambiente de “ser mais rápido a defender negócios” do que os recursos naturais. A nova lei continua enguiçada.
Certo é que todos estes atrasos e indecisões podem deitar a perder a estratégia para o lítio do Governo. Marcelo Rebelo de Sousa, que dias antes tinha promulgado a lei, afirmou, numa visita ao Alto Minho, que via com dificuldade a abertura de uma mina ali ou em qualquer outra zona do país: “Há uma lei de 2015 que demorou imenso tempo a regulamentar. A regulamentação, para fazer um equilíbrio, tornou o processo tão complexo que a sua própria aplicação é muito complexa. Significa que o decreto-lei que dá execução à lei torna mais complicado o processo para todo o território continental”, afirmou o Presidente.
Uma notícia que desespera empresários e geólogos: “Será agora, em Novembro de 2021, e já não no terceiro trimestre de 2021, como anunciaram no ano passado? Enfim, Portugal está a perder toda a credibilidade”, diz um geólogo que tem acompanhado todo o processo, que pediu o anonimato. “As oportunidades de investimento estão a esgotar-se; irão certamente para Espanha, onde já planeiam ter uma refinaria e uma fábrica de baterias.”
O Governo reformulou as áreas a leiloar, que são agora oito: serra de Arga, Barro/Alvão, Seixo/Vieira, Almendra, Barca de Alva/Canhão, Guarda, Segura e Maçoeira. As áreas de Boticas, Montalegre e Argemela não estão incluídas neste lote, por já estarem concessionadas ou terem avaliações ambientais em curso. Aí, há muito que o lítio domina as conversas e as preocupações.
O segredo da Argemela
Na aldeia do Barco, aos pés da serra da Argemela, no limite entre os concelhos da Covilhã e do Fundão, os tesouros do subsolo fazem parte da mitologia: os antigos dizem que os mouros deixaram um templo de ouro enterrado no ventre da montanha. Todos os povos que se estabeleceram naquela bucólica margem do rio Zêzere — lusitanos, romanos ou árabes — encontraram nas rochas os materiais de que precisavam para desenvolver as suas comunidades: há cobre e estanho, volfrâmio e prata, ouro e rubídio. As minas são tão familiares para os aldeões como a barca que assegurava a travessia do rio, inspiração do nome do burgo. Na aldeia, há uma estátua de um vagão mineiro.
Assim, ninguém estranhou quando, em 2011, uma pequena empresa chamada PANNN, Consultores de Geociências Lda., formada por cinco geólogos (um deles consultor da exploração de volfrâmio que já existia na serra), entregou na DGEG um pedido de prospecção para 15 materiais, entre eles o lítio. No ano seguinte, a PANNN foi absorvida pela Almina Holding SA, a empresa detentora das Minas de Aljustrel, no Alentejo, formada pelas firmas de Humberto da Costa Leite (Vicaima, ex-Finibanco), dos irmãos Carlos e Jorge Martins (Martifer e IM Mining) e pelo Banco Montepio, um triunvirato que se destacou na polémica OPA do Montepio sobre o Finibanco, em 2010. Costa Leite, Carlos Martins e Tomás Correia (ex-presidente do Montepio) chegaram a ser constituídos arguidos por suspeita de burla e insolvência dolosa na venda de terrenos em Coimbra, mas o tribunal não encontrou motivos para levar o caso a julgamento. A experiência e o fôlego financeiro da Almina imprimiram dinâmica ao projecto: foi investido mais de um milhão de euros na pesquisa.
“Quando começámos a analisar, fizemo-lo com base no estanho. Sabíamos que o lítio estava lá, mas desconhecíamos a sua importância”, assume Costa Leite. “Percebemos depois que era importante verificar o desenvolvimento do lítio em termos da cadeia de valor do metal e começámos a trabalhar com laboratórios estrangeiros para vermos o potencial que conseguíamos para o nosso lítio da Argemela”. As amostras de montebrasite foram estudadas num laboratório brasileiro para se apurar se tinham teor suficiente para serem transformadas em carbonato ou hidróxido de lítio, derivados com que são feitas as baterias. O resultado foi satisfatório: “Com o conhecimento que temos, e tendo os dois metais, pensamos que o projecto tem uma boa viabilidade económica. Teria sempre de estanho, mas seria uma exploração muito mais pequena”, diz o CEO da Almina, que se mostra muito entusiasmado com o crescimento da indústria. “Os carros eléctricos vieram para ficar e nós, na Europa, temos de criar condições para sermos auto-suficientes na sua produção. Creio que a decisão da UE em criar um cluster de lítio é acertadíssima. Veremos se os governos europeus vão ser capazes de implementar essa estratégia; seria bom, porque estes recursos existem e, se não forem explorados, não terão valor nenhum.”
A PANNN solicitou a licença de exploração em 2017, alterando depois o seu pedido para exploração experimental, que incidia numa pequena área sem necessidade de realização de Estudo de Impacte Ambiental (EIA). A DGEG rejeitou. Assim, a empresa voltou a requerer a licença de exploração em Abril do ano passado, aguardando agora a celebração do contrato: “Está tudo pronto. Só lhe falta as assinaturas”, afirma, sorridente, Costa Leite. João Galamba confirma: “O processo da Argemela seguirá os trâmites estabelecidos e, salvo imprevistos, terá licença de exploração”.
Foi por esta altura que Maria do Carmo Mendes, de 43 anos, professora de História de Arte na Universidade da Beira Interior, decidiu regressar à sua terra natal depois de vários anos em Lisboa. Assim que tomou conhecimento do andamento dos trabalhos, a docente acorreu de imediato à DGEG e à Câmara da Covilhã em busca de mais informação. “Fiquei estarrecida porque a qualidade de vida da povoação ia ser afectada e recursos como o rio, fundamental para a agricultura que a maior parte da população ainda pratica, ia ficar em risco”, diz Maria do Carmo Mendes, sentada numa pedra diante das galerias da antiga Mina da Argemela. “A área total que pretendem para exploração são 403,71 hectares e a área da mina em si corresponde a 45,2 hectares, ou seja, 45 campos de futebol escavados em profundidade”.
No Barco, muitos partilham das preocupações de Maria do Carmo Mendes. E os traumas surgem à tona. No século XX, os homens e os meninos da zona garantiram o seu sustento através da mineração e prospecção de estanho na Argemela e do volfrâmio na vizinha Panasqueira. Centenas deles, com os pulmões dizimados pela inalação de sílica, encontraram também nas minas um fim precoce.
Luís conhece bem aquele cerro. Em miúdo, fez jornas de 20 escudos a cavar na mina; recorda-se do pó-de-mina matar colegas e dos peixes do rio contaminados. “Mas depois apareceu o tratamento das águas e as máquinas e ficou tudo muito melhor. Hoje já não há contaminações dessas”, afirma. “Mas preferia que a fizessem subterrâne,a para não andar aí pó no ar”. Há três ou quatro anos, no café, os seus amigos teimavam que o lítio vinha das nascentes de água, não nas rochas. “Eu sabia que estava misturado no minério, só podia ser”, diz. Traz no bolso várias pedrinhas da Argemela. A sua favorita é uma dourada, ou não flutuasse a Argemela num devaneio áureo em que todos juram conhecer alguém que comprou terrenos com uma pepita encontrada. Para alguns, o lítio representa o misterioso templo que os mouros esconderam dentro da montanha.
Do Barroso para o mundo
Em 2002, uma noite silenciosa na aldeia transmontana de Covas do Barroso foi interrompida pelo som de uma rolha de cortiça a sair disparada de uma garrafa de Barca Velha. Os responsáveis da empresa Saibrais – Areias e Caulinos, SA celebravam assim o descobrimento de seis milhões de toneladas de quartzo e feldspato, suficientes para o fornecimento da indústria de cerâmica e de vidro, sem poderem imaginar que estavam também a abrir caminho para a maior reserva de lítio da Europa Ocidental. Quatro anos depois, receberam permissão para explorar uma área de 120 hectares. Os moradores de Covas não manifestaram particular desacordo: “A área era pequena, afastada da aldeia e acabaram por extrair tão pouco que não fomos importunados pelos ruídos e pelos camiões”, diz Aida Fernandes.
A Saibrais alterou, em 2008, a sua denominação social para Imerys Ceramics Portugal SA. Já sob este nome foram feitas mais sondagens e o lítio foi adicionado ao quartzo e ao feldspato no contrato, em 2011. “O contrato foi modificado sem que a câmara municipal fosse tida em consideração”, diz, revoltado, Fernando Queiroga, presidente da Câmara de Boticas. No entanto, a DGEG, questionada pelo PÚBLICO, afirma que o aviso foi publicado em Diário de República e em três jornais locais e nacionais, como manda a lei.
A Imerys extraiu quantidades residuais de minério ao longo da sua vigência: a Junta de Baldios de Covas afirma que anos houve em que a empresa não lhes reportou a existência de qualquer actividade. A ter acontecido esta situação, poderia ter tornado ilegal o contrato, que obrigava a concessionária a extrair as quantidades descritas no Plano de Lavra (o relatório sobre a actividade operativa da mina que é essencial para a obtenção do licenciamento). A DGEG nega-se a mostrar os relatórios anuais da empresa, mas reitera que tudo foi realizado em conformidade: “Os dados estatísticos são confidenciais. Podemos, contudo, adiantar que a quantidade extraída pode ser inferior ao inicialmente previsto, desde que aceite pela DGEG com fundamento, designadamente, na reavaliação feita pela concessionária de recursos e reservas para o novo projecto de exploração. Mais se esclarece que a concessão esteve sempre em actividade, de acordo com os programas de trabalho aprovados, nos termos da lei e do contrato”. A empresa manteve na sua posse a licença e fez um pedido de adenda ao contrato, solicitando a extensão para 542 hectares, uma área quase cinco vezes maior do que a original. Resultado: aprovado.
Entretanto, a Europa tinha começado a falar de lítio e os preços do metal estavam em alta. Em 2017, a Imerys conseguiu o que queria: por quase 2 milhões de euros, vendeu a concessão da Mina do Barroso a uma startup anglo-australiana, a Slipstream Resources, que mais tarde assumiria a denominação de Savannah Lithium SA, subsidiária da Savannah Resources, uma empresa sediada em Londres e cotada em bolsa.
A Savannah começou as suas perfurações sem qualquer resistência. A administração dos baldios — terrenos usados e geridos comunitariamente para pastoreio, silvicultura e agricultura — autorizou os trabalhos nas plataformas e tanto a Câmara Municipal de Boticas como a associação ecologista local, a Celtiberus, viam benefícios no aparecimento do lítio. No entanto, o caso mudou de figura a meio de 2018. Os barrosões começaram a ver os tubos azuis — marcações de furos de sondagem — a brotarem como míscaros no vale e perceberam que a dimensão do projecto era muito maior do que as pedreiras a que estavam habituados.
“Ainda não tinha havido uma sessão de esclarecimento com a população quando comecei a encontrar na Internet os relatórios da empresa para os investidores, em inglês, que continham as verdadeiras ambições da Savannah”, diz Catarina Alves Scarrott, uma professora de Covas emigrada em Londres. “Queriam fazer várias minas a céu aberto, a maior das quais com 600 metros de comprimento, 500 de largura e 150 de profundidade, queriam explorar mais de 20 milhões de toneladas de rocha e desfazê-la em pó à nossa porta”. Estava também prevista a expropriação de terrenos e a possibilidade, entretanto afastada, da deslocação forçada de alguns moradores cujas casas se encontravam junto ao perímetro de concessão.
A comunidade ficou zangada por não estar a par dos planos. De nada valeu aos britânicos a publicação regular de boletins informativos nem a contratação de uma habitante de Covas, Marta Fernandes, como oficial de relações com os habitantes: no início de 2019, já a maioria da população e o seu autarca se manifestavam contra. “Se houver uma abertura de mina, nós, que tanto temos apostado no turismo, na nossa gastronomia, nos produtos endógenos, vamos ver isso destruído. O turista não virá. E, se vier, vem uma vez para ver a desgraça e, ao passar a palavra, já não virá mais ninguém”, diz Queiroga.
Por esta altura, já a Savannah tinha em marcha a divulgação do projecto para a primeira mina de lítio da Europa (actualmente disputa essa possibilidade com uma mina na Finlândia). Repórteres de jornais e cadeias internacionais como o inglês The Guardian, a France 24 ou a alemã Deutsche Welle chegavam ao Barroso para noticiar a mina na vanguarda da nova indústria europeia. “Temos o maior depósito da Europa deste tipo de lítio. Os nossos planos são estar a funcionar em escala comercial integral nos fins de 2020 e com uma taxa de produção que possa fornecer cerca de 40% do que será a procura europeia em 2025. Irá alimentar entre 250 mil e 500 mil veículos eléctricos por ano”, dizia, em Junho de 2019, David Archer, CEO da Savannah, à cadeia sueca EFN. “Achamos que o Norte de Portugal se tornará na maior região produtora de lítio da Europa. Será mais ou menos como as jazidas de petróleo da Arábia Saudita. A versão europeia, pelo menos, na área dos veículos eléctricos”.
Os prazos previstos por Archer saíram furados. Em parte, devido aos atrasos do Governo e das entidades públicas, mas também por causa da crescente desaprovação dos residentes. A sessão de esclarecimento, em Agosto de 2019, acabou por provocar mais dúvidas do que elucidação. “Liderei um projecto de mina em Omã perto de uma aldeia, com características semelhantes a esta. Conhecendo a teimosia árabe, visitei todas as casas, uma a uma, com o objectivo de os convencer dos benefícios. Bebi chá e comi com eles, até garantir o seu apoio”, contava David Price, ex-responsável da empresa pela prospecção no Barroso, no rescaldo da sessão. “Aqui está a ser mais difícil.”
A empresa decidiu abrir um ponto de informação no centro da aldeia, junto à igreja e a um ringue de futebol adornado com faixas contra a mina. Infalível, todas as terças e quartas-feiras, a buzina frenética da carrinha do peixe é um chamariz para os moradores que confluem às ruas para abastecerem as despensas. É nesses dias, num horário pautado pelos ditames da desertificação, que a Savannah abre as portas do seu bastião. À porta, os boletins com o progresso do trabalho. No interior, mapas e plantas da mina do futuro, bem como reproduções em 3D de como será a vista para a corta. Sobre uma mesa, amostras de pedras e frasquinhos com concentrado de espodumena, feldspato, quartzo e mica, os minerais do subterrâneo xistoso. Há ainda produtos feitos à base de lítio: baterias, medicamentos e lubrificantes. No entanto, os moradores permanecem concentrados em redor da carrinha, a escolher sardinhas.
“Com esta iniciativa, vamos poder evitar a libertação de 100 milhões de toneladas de CO2 para a atmosfera, o que representa um quinto da produção de CO2 na Austrália, por exemplo. Acho que estamos do lado certo da História”, diz ao PÚBLICO David Archer. O líder da Savannah está convencido não apenas dos ganhos ambientais, mas também das vantagens económicas para Portugal e para Covas do Barroso, estimando receitas de 1,3 mil milhões de euros durante a actividade da mina.
Um estudo socioeconómico encomendado pela Savannah à Universidade do Minho antevê que a mina do Barroso vai criar 200 postos de trabalho directos e de 400 a 600 indirectos. Nélson Gomes, presidente da associação local contra a mina, está descrente: “Eu não acredito que os emigrantes regressem de França ou dos EUA para trabalharem numa mina”. “Para mais, primeiro diziam que iam criar 1000 postos de trabalho, depois 300, agora já são apenas 150. Para mim, é publicidade enganosa.”
Nenhuma promessa parece fazer mudar a opinião dos habitantes. Entre outras coisas, preocupa-os a expansão da actividade mineira, uma vez que a Savannah comprou por 3,25 milhões de euros uma concessão vizinha, propriedade da firma Aldeia & Irmãos, de forma a poder, no futuro, acrescentar aos seus 542 hectares (com reservas de 27 milhões de toneladas) mais três depósitos de lítio e 294 hectares aos seus terrenos de operação. Só um dos blocos conta com uma reserva estimada de 3,5 milhões de toneladas. Isto significa que mais de 25% da área geográfica de Covas ficaria entregue à mineração. “Deixaríamos de ser uma aldeia rural para sermos uma aldeia mineira. E ninguém quer essa mudança de identidade”, diz Nélson Gomes.
O ano de 2021 está a correr de feição à mineira inglesa. Em Janeiro, assinou um princípio de acordo com a Galp: a petrolífera portuguesa mostrou interesse em entrar no negócio do lítio, com a perspectiva de ficar com 10% do capital da Savannah, por 5,2 milhões de euros. O acordo abria ainda a possibilidade de os britânicos venderem à Galp, em regime de exclusividade, 100 mil toneladas por ano de concentrado de lítio, metade da produção anual prevista. As empresas, contudo, não accionaram o acordo antes do limite estabelecido e a 1 de Junho a Savannah anunciou que o contrato deixara de ter efeito. “Mas as negociações entre as duas empresas prosseguem”, garante a empresa inglesa. “O critério de exclusividade fez com que as duas empresas precisassem de repensar o acordo”. Em Abril, a APA anunciou a conformidade do EIA entregue pela firma, colocando-o em consulta pública até 16 de Julho. A concretização da mina está agora pendente da aprovação do EIA e da consequente obtenção do Título Único Ambiental (TUA).
Archer promete pôr em prática as melhores práticas de mineração. “Muitos dos impactos do desenvolvimento da nossa mina vão ser eliminados ou reduzidos ao ponto de não terem qualquer significado. Isto vai ter uma pegada ecológica reduzida”, diz. Em Covas, poucos acreditam. Temem pela contaminação dos solos, da água e do ar. A Savannah ainda tem na manga um programa de repartição de lucros pela população, mas as esperanças de consenso são diminutas: “Como é habitual, o dinheiro vai para longe e aqui ficam apenas os buracos”, diz Nélson Gomes.
O principal accionista da Savannah vem de longe — a Al Marjan Ltd. é um fundo de investimento com sede em Genebra, na Suíça, e registo offshore nas ilhas Caimão, na Governor’s Square, West Bay. A entrada de capital da Al Marjan na Savannah aconteceu em 2016, quando a empresa britânica ainda estava envolvida num projecto de exploração de cobre em Omã, o que justifica a origem dos dois representantes dos accionistas escolhidos para integrar o conselho de administração. Um deles, Maqbool Ali Sultan, foi ministro do Comércio e da Indústria de Omã durante 20 anos (1991-2011) e também presidente da Associação de Amizade Omã-Reino Unido. O outro, Imad Kamal Sultan, foi administrador do Banco Nacional de Omã e é actualmente vice-presidente da WJ Towell, uma das maiores empresas do sultanato, que se iniciou há mais de um século como uma companhia de navegação, mas que actua hoje nos sectores da construção, comércio e indústria automóvel.
Tudo por um objectivo
“Se o plano não funcionar, muda o plano, mas nunca o objectivo.” Este lema, exibido numa moldura dourada no escritório da Lusorecursos, em Braga, adequa-se na perfeição ao percurso de Ricardo Pinheiro, o homem forte da empresa. O seu objectivo é abrir uma mina de lítio com um complexo industrial — avaliado em 500 milhões de euros — junto à aldeia de Morgade, concelho de Montalegre. Por várias vezes, o plano não correu bem. E, em todas elas, Pinheiro conseguiu afastar sócios e adversários, dirimir escândalos, para manter viva a sua aspiração. “Estamos a trabalhar com os mais experientes parceiros internacionais e até já temos investimentos garantidos para que a Mina do Romano se torne numa referência mundial na exploração sustentável de lítio”, afirma o empresário, de 41 anos.
Tudo começou há mais de uma década, quando o geólogo Bruno Pereira e o então contabilista Ricardo Pinheiro encontraram, no monte situado entre as aldeias de Morgade, Carvalhais e Rebordelo, uma enorme fenda tapada pela vegetação, um vestígio daquilo que outrora tinha sido a Mina do Beça. O cientista, experiente no sector da cerâmica, entrou no buraco e percebeu imediatamente que aqueles filões tinham potencial. Fundaram a Lusorecursos, Lda com outros geólogos. Em 2011, entrou em cena António Marques, então presidente da Associação Industrial do Minho (AI Minho), onde Pinheiro também trabalhava, que avançou com um milhão de euros para criar a holding Lusorecursos SGPS, um grupo de prospecção mineira. Mas precisavam de muito mais dinheiro para as primeiras perfurações, destinadas a analisar as reservas existentes: assinaram então um acordo com os australianos da Dakota Minerals, que se passou a chamar Novo Lítio, para a fase de prospecção. Pouco depois, os geólogos foram afastados da sociedade.
Os australianos fizeram 120 furos de sondagem ao longo de 20 quilómetros. O acordo entre a Lusorecursos e a Novo Lítio estabelecia contrapartidas financeiras dependendo das quantidades identificadas, sendo que a empresa portuguesa receberia, no limite, 1,1 milhões de euros, se os australianos descobrissem 15 milhões de toneladas. Ficaram-se pelos dez. Ainda assim, os forasteiros esperavam que a Lusorecursos lhes transferisse a licença de prospecção obtida em final de 2012. Tal nunca aconteceu. A Novo Lítio deu entrada a uma providência cautelar para impedir que Marques e Pinheiro ganhassem a concessão definitiva.
O conflito não se ficou pelos tribunais. As duas empresas digladiaram-se pelos valiosos terrenos: houve insultos e ameaças; a Novo Lítio contratou seguranças privados e a GNR passou a ser chamada ao local quase diariamente. “Um verdadeiro faroeste”, nas palavras do presidente da Câmara de Montalegre, Orlando Alves. O Governo, por seu lado, só considerava como seu interlocutor a Lusorecursos, com quem tinha assinado o contrato de revelação. Consequentemente, os australianos desistiram e tentaram a sua sorte na secretaria: acabaram por perder o processo até no Tribunal da Relação de Guimarães, mas sem que os juízes tenham avaliado a matéria de facto. O veredicto baseou-se em datas: quando o litígio chegou ao fim, a companhia bracarense já tinha pedido ao Estado, em Novembro de 2017, a atribuição da concessão para explorar a mina, pelo que seria inútil prosseguir os autos. “Foi uma vigarice, mas não pudemos fazer mais nada”, diz fonte da defesa da empresa australiana. Ricardo Pinheiro já se descartara dos geólogos e da Novo Lítio. O sócio António Marques seria o próximo.
A parceria desabou no Outono de 2018. Em Novembro, o Ministério Público (MP) acusou a AI Minho de ter criado um esquema para o maior desvio de fundos comunitários de que há memória em Portugal: dez milhões de euros. António Marques foi acusado de 76 crimes, Ricardo Pinheiro de quatro. O caso ainda se encontra em julgamento.
Nessa fase, na iminência da assinatura do contrato para a exploração da Mina do Romano, Pinheiro afastou Marques com uma jogada de bastidores. Fazendo-se valer do seu cargo de gerente, encetou, alegadamente nas costas do sócio, uma série de alterações na estrutura societária da empresa que desembocaram na formação de uma sociedade anónima, a Lusorecursos SA, cujos associados passaram a ser Ricardo Pinheiro e José Torre da Silva, chefe da construtora Vilaplano. Depois, solicitou à DGEG que o contrato de exploração ficasse em nome desta nova empresa, e não da anterior, que tinha sido a concessionária da prospecção. Xeque-mate.
“Fui eu que trouxe o António Marques para a Lusorecursos”, justifica Pinheiro em conversa com o PÚBLICO. “Surgiu como um primeiro investidor, na primeira ronda. Mas neste tipo de projectos os investidores têm as suas limitações e, numa segunda ronda de investimento, era preciso mais capital. Se os investidores não têm capacidade para mais, têm de permitir a entrada de outros para não colocarem o projecto em risco”. António Marques, por seu lado, afirmou ter sido afastado da corrida ao lítio através de um “golpe palaciano”.
Havia, contudo, mais um obstáculo no caminho de Pinheiro rumo ao seu objectivo. A lei diz que a concessão de exploração de um recurso mineral deve ser atribuída à empresa titular do contrato de prospecção e pesquisa, mas, neste caso, Pinheiro não o podia fazer, porque a pesquisa tinha sido entregue à Lusorecursos Lda, que partilhava com Marques. Então, segundo a investigação do programa Sexta às 9, da RTP, tratou de fazer um requerimento para que a DGEG transferisse a concessão para uma nova empresa a criar no seio da Lusorecursos SA, uma possibilidade permitida por lei. A 13 de Novembro de 2018, a DGEG emitiu um parecer em que dizia claramente que a concessão dos direitos de exploração deveria ser feita em nome da Lusorecursos Portugal Lithium SA. Mas como é que a direcção-geral podia saber o nome da nova companhia se este não tinha sido comunicado em lado nenhum? Um mistério ainda por resolver (mesmo Pinheiro não consegue precisar como é que essa informação chegou à DGEG antecipadamente), pois somente 11 dias depois, a 22 de Novembro, é que este nome surgiu pela primeira vez num email de Pinheiro para aquele organismo. Mais: a candidata à concessão de um depósito avaliado em centenas de milhões de euros foi apresentada, de acordo com a mesma investigação, com um número de contribuinte provisório.
Mesmo assim, os directores da entidade que regula as minas em Portugal emitiram, a 16 de Janeiro de 2019, um parecer positivo à celebração do contrato, ainda que no documento, a que o PÚBLICO teve acesso, tenham voltado a referir como beneficiária a Lusorecursos Lda., a tal empresa de Pinheiro com Marques que tinha tido a licença de prospecção — ou seja, uma trapalhada burocrática.
A Lusorecursos Portugal Lithium, com capital social de apenas 50 mil euros, só viria a ser oficialmente constituída três dias antes da assinatura do contrato com o Estado. “O objectivo da Lusorecursos é ter várias áreas de concessão no país e, para tal, precisamos de fazer vários pedidos à DGEG. Em termos de estratégia empresarial, entendemos que cada pedido deveria ter uma empresa diferente, que também ajuda em termos de financiamento, porque um investidor pode querer investir na Mina do Romano, mas não na serra de Arga ou noutro sítio qualquer. Assim, criou-se uma nova empresa à última hora só para explorar aquela mina, para que o financiamento angariado seja só para ela e não para outras áreas com pedidos em curso”, explica Pinheiro.
A 27 de Março de 2019, na véspera da assinatura do contrato, Marques lançou a sua última cartada: enviou o seu representante, o advogado José Pedro Gomes, juntamente com o ex-presidente da Câmara do Porto Nuno Cardoso, e o presidente de Montalegre, Orlando Alves, para uma audiência no MAAC com João Galamba e com o ministro João Matos Fernandes. Missão: alertar o Governo para irregularidades no processo e pedir a suspensão da celebração do contrato. À porta do Ministério, Pinheiro tinha um representante escondido, qual filme de espiões, para confirmar o encontro.
A tutela rejeitou o pedido dos contestatários: nem o diferendo entre Marques e Pinheiro, nem o facto de ambos estarem acusados de crimes de desvio de fundos, nem tão-pouco a juventude e o parco capital social da empresa impediram a viabilidade do acordo. “O Governo segue os pareceres técnicos da DGEG e estaríamos a cometer uma infracção, sim, se negássemos a uma empresa direitos de exploração que lhe são garantidos pela lei”, diz Galamba ao PÚBLICO. “E também não podíamos suspender algo a que esta empresa tem direito porque o seu dono pode, eventualmente, vir a ser condenado por um processo. Não nos cabe a nós antecipar sentenças.”
O contrato foi assinado no dia seguinte, conferindo à companhia minhota direitos de exploração por 20 anos (prorrogáveis por mais 15) numa área de 852 hectares, com uma reserva potencial de 30 milhões de toneladas de lítio em petalite, condicionados à aprovação de EIA. Marques correu para os tribunais: juntamente com os geólogos da Sinergeo, interpôs um processo contra Ricardo Pinheiro (e outros privados) e outro contra o Estado. A defesa do ex-presidente da AI Minho afirma que o primeiro despacho do Juízo Central Cível de Braga, no processo contra o Estado, é “demolidor contra a forma como se celebrou o contacto”. “O processo vai ficar amarrado com estas acções judiciais”, afirmam. Pinheiro diz não ter encontrado nada de “demolidor” e não temer qualquer processo judicial.
Como se não houvesse já controvérsias suficientes, apurou-se que o ex-secretário de Estado para a Internacionalização Jorge Costa Oliveira, afastado pelo envolvimento no caso Galpgate — as viagens pagas pela Galp a governantes para assistirem a partidas do Euro 2016, em França — tinha assumido funções de consultor de investimento da Lusorecursos três meses antes da oficialização do contrato. Costa Oliveira, amigo de António Costa, negou publicamente qualquer pressão sobre o Governo a que tinha pertencido, sublinhando estar na Lusorecursos apenas para aproveitar a sua experiência de forma a garantir financiamento no Extremo Oriente. O Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) abriu uma investigação para apurar se houve favorecimento à Lusorecursos.
O ruído provocado pela investigação do programa Sexta às 9, da RTP, que incidiu sobre os termos do contrato, acordou a população de Morgade, até então alheada da guerra do lítio. Apenas em Abril de 2019 é que a empresa prestou uma sessão de esclarecimento à população: o balanço foi desastroso. “Criaram logo muita suspeição nas pessoas”, diz Armando Pinto, professor de Educação Física e líder do movimento antimina Montalegre Com Vida. “Nunca foram consistentes. Numa fase inicial, seria uma mina a céu aberto; depois, já era uma mina mista; primeiro, diziam que ia cortar o cabeço da serra até à cota das aldeias; agora já vieram dizer que não, que vão cortar até à cota de 920 metros e depois será uma mina mista em galerias. Nem sequer sabiam o que queriam fazer”.
Desde então, os funcionários da empresa não podem passar pela aldeia de Morgade, por receio de represálias. Da primeira vez que a empresa levou o jornalista do PÚBLICO à zona de concessão, teve de usar estradas secundárias para evitar as povoações circundantes. Na serra erma, os furos de pesquisa estavam já tapados pelo mato que, lentamente, ia também consumindo as casas deixadas pelos antigos trabalhadores da Mina do Beça.
Dois anos volvidos, em Março de 2021, Ricardo Pinheiro mostra-se confiante na sede da Lusorecursos, em Braga: “O EIA está em curso e teremos novidades em meados deste ano”. A imagem 3D da futura mina e do parque industrial, exposta na parede, mostra uma harmoniosa zona verde, bastante diferente dos estaleiros poeirentos que figuram no imaginário de uma mina, enquanto o projector exibe esquemas sobre os futuros túneis e a logística associada ao ambicioso projecto. Na cave, há amostras de petalite, empilhadas e catalogadas. O líder da Lusorecursos disserta sobre os projectos de sustentabilidade ambiental e social que tem em curso com a Câmara de Montalegre.
Pinheiro está a apostar numa mina total, ou seja, um complexo que vai muito para além da extracção, previsto para funcionar à superfície nos primeiros dois anos e em galerias subterrâneas — uma raridade no sector — durante o resto da actividade. O minhoto afirma que foi forçado a fazê-lo devido à grande quantidade de túneis existentes no interior da montanha, resultantes de escavações do passado. “Esta unidade industrial irá fazer o concentrado de lítio que passa então para a refinaria, onde irá produzir o hidróxido”, diz. “Mas também há um produto secundário, que é o feldspato, o quartzo e outras argilas, que irão alimentar uma fábrica de cerâmica para revestimento, de grandes dimensões. Será alimentado energeticamente por uma central de biomassa, uma central fotovoltaica e estamos a estudar a possibilidade de uma central de hidrogénio verde. Para completar o ciclo, também está programado o processo de reciclagem de baterias”.
O não ao lítio é um dos maiores movimentos de protesto nas últimas décadas no interior do país. Já boicotaram eleições, manifestaram-se em Lisboa, irromperam de cartazes em punho na Volta a Portugal em bicicleta e em feiras gastronómicas. Os ânimos estão cada vez mais hostis perante a proximidade de abertura das minas. Há quem esteja disposto a tudo para o evitar.
Tiago Carrasco(texto) e
Vítor Martinho(vídeo)
A cadela de Nélson e Aida, o par que encabeça a luta contra o lítio em Covas do Barroso, sai a correr do quintal da frente, ainda a lamber o focinho:
— Aida, aquela cadela é tua?, pergunta tranquilamente o vizinho, vestido de robe à porta de casa. Acabou de me matar uma galinha.
— Ai, malandra! Já a vou buscar, responde Aida, que também é presidente do conselho directivo dos Baldios de Covas do Barroso.
— Olha, por acaso não tens aí um cartucho [de caçadeira] em casa?, insiste o homem.
— Estão arrumados e só o Nélson é que sabe onde estão, diz Aida.
— É que é melhor dar-lhe já um cartucho, responde o vizinho.
— Não é preciso. Eu já a vou buscar, assegura Aida.
— Tu é que sabes, mas quanto a mim era melhor dar-lhe já um cartucho, conclui o queixoso, antes de regressar a casa.
Este era o tipo de problemas quotidianos a que o casal de Covas do Barroso estava habituado: o cão que come galinhas, a vaca que anda coxa, o fogo que ameaça a floresta no Verão. O que não esperavam era ter de pintar tarjas, alugar um autocarro para lá enfiar metade da aldeia e viajar até Lisboa para gritar contra a implantação de uma mina nas suas terras. “Não à mina, sim à vida” ou “Galamba, escuta, o povo está na luta”, passaram a ser-lhes melodias tão familiares como o chilrear matinal dos pássaros.
Nélson e Aida têm 29 vacas, plantam batatas, milho, cereais para o gado, couves, tomates e cebolas. Produzem o seu próprio queijo, manteiga e presunto. Enfim, desenvolveram um estilo de vida auto-sustentável que serve actualmente de referência a milhares de famílias urbanas. E temem que a mina de lítio da Savannah dite a morte de tudo isso. A sua principal preocupação é que as escavações prejudiquem o abastecimento de água, elemento que se orgulham de ter em Covas com uma qualidade inigualável. “É impossível que ao desviarem canais freáticos não afectem o abastecimento de água das povoações e que essa água não fique contaminada com os resíduos minerais existentes”, afirma Aida. “Além disso, eles próprios admitem que vão buscar água ao rio Covas e que, nos meses quentes, o caudal vai descer. Receamos que no Verão o rio fique seco.”
A situação é ainda mais revoltante para Nélson, que pouco liga a “modernices”. Sim, tem telemóvel e computador, munidos de baterias de lítio, mas pouco uso lhes dá para além de organizar as acções de luta da associação Unidos em Defesa de Covas do Barroso (UDCB), que lidera.
Nascido em França, percebeu aos cinco anos, numas férias, que o seu futuro passava por Covas: os seus irmãos e irmãs emigraram para Paris e para os EUA, mas ele encontrou a felicidade naquelas montanhas quando, ainda menor, o ensino se fazia por telescola. “Sempre gostei de pastar os animais, pescar trutas com o meu tio e desta tranquilidade”, diz Nélson, enquanto caminha pelas margens acidentadas do rio Covas, enaltecendo os lameiros e os moinhos de água construídos pelos seus antepassados.
“A canalhada andava sempre na rua. Jogávamos futebol e explorávamos estes montes, conhecíamos os trilhos como as palmas das nossas mãos. Por isso, entristece-me que as minhas filhas, hoje, passem o tempo agarradas ao telemóvel, é sempre um sacrifício tirá-las de casa”, lamenta. O seu corpo magro, seco, de passada vigorosa, encontra-se entalado entre dois mundos que se enfrentam: o do regresso ao sector primário e às relações comunitárias, o do fim do consumismo maciço, e o do universo 4.0, o da evolução tecnológica supersónica, o do individualismo, que só com lítio pode continuar a acelerar sem matar o planeta com descargas de carbono.
Por estas razões, o conflito devido ao lítio é muito mais complexo do que anteriores dilemas relacionados com a actividade extractiva para fins energéticos, como o petróleo, o carvão ou o gás. Então, para um ambientalista, era fácil escolher um lado: “Petróleo e carvão, não, porque são os principais poluentes da atmosfera.” Já o lítio torna problemática a equação, porque é o elemento principal das baterias eléctricas, ou seja, a solução emergente para reduzir a emissão de CO2 nos transportes. Um ambientalista fica assim reduzido a dois argumentos: não ao lítio, porque o importante é reduzir o consumo; ou lítio sim, desde que explorado em locais distantes de povoações e com poucas consequências ambientais.
Esta última é a posição dominante em Covas: “Até podem extrair lítio, mas aqui, num lugar abençoado pela natureza e classificado como Património Agrícola Mundial, não faz sentido.” As empresas mineiras estão familiarizadas com esta opinião. Têm até um anagrama — NIMBY (“Not In My BackYard”, traduzido “não no meu quintal”) —, para catalogar a postura, que consideram egoísta, das populações que se opõem ao desenvolvimento industrial nas suas regiões.
Apanhar com o pó todo
Elisabete Pires, 44 anos, tem mesmo razões para se referir ao seu quintal. A sua casa, no lugar de Romainho, é a penúltima antes do perímetro de concessão atribuído à Savannah. Em linha recta, são umas centenas de metros. “Já nas prospecções fizeram rebentamentos e ouvia-se os estrondos”, queixa-se. “Tenho medo que a minha casa fique com rachas por causa dos abalos provocados pela dinamite. Vão-me estragar a vista. E, como o vento está sempre daquele lado, vamos apanhar aqui com o pó todo.”
Enquanto assistente social da junta de freguesia, Elisabete visita vários idosos em casa. Garante que estão quase todos contra a mina; aliás, num inquérito online em que votaram 453 residentes no Barroso, 91,4% manifestaram-se contra a existência da mina. Muitos, como ela, vivem aterrorizados com a ideia de terem de abandonar a sua aldeia natal por não conseguirem lidar com a mudança. “Enquanto der lucro, uns dez ou 20 anos, vão andar aí. Mas depois vão-se embora e nós ficamos com as sobras — isto, se conseguirmos resistir até lá”, diz Elisabete, enquanto colhe couves ao lado de um espantalho equipado com uma máscara contra a covid-19. “E depois? Ficamos sem agricultura e sem emprego, só com destruição. Os trabalhadores vão morar para Boticas, porque não vão querer pôr os filhos à beira de uma mina. Então, as casas vão ficar sem valor; o que temos passa a valer nada.”
Também o pastor Paulo Pires treme só de pensar na eventualidade de ter de vender as suas ovelhas. “Sem água, como vou poder sustentar os animais?”, questiona-se. “Vou deixar de ouvir os pássaros, as ovelhas, para tapar os ouvidos com o som dos camiões e dos explosivos. A fauna, a flora, vai ser tudo destruído. E não acho justo que se polua a minha aldeia para se despoluírem as cidades.”
A Savannah prevê, no seu estudo de impacte ambiental (EIA), minimizar todos os danos para o meio ambiente. Covas não acredita. Os barrosões são gente orgulhosa, tesa, determinada. E não gostaram nada de ouvir David Archer, o CEO da Savannah, bem como comentadores do mercado financeiro, referirem-se à região, em inglês no YouTube, como uma “zona pobre” com “uma população na expectativa de criação de empregos e entusiasmada com as perspectivas de crescimento económico proporcionado pela mina do Barroso”.
“Não sei o que entendem como uma zona pobre”, comenta Nélson Gomes. “Porque nós temos aqui a melhor qualidade de água do mundo; temos uns solos que produzem do melhor que há, desde batatas, couves, feijão, tomate, tudo; temos uma floresta que para produzir é do melhor que há. Isto é ser pobre? Não sei o que eles querem dizer com isso.” Os populares também odiaram que os britânicos tivessem alterado alguns dos nomes originais dos sítios da aldeia — o reservatório do Vale do Cabrão, por exemplo, passou a ser designado “grandão”.
“Entre quem é”
Fernando Queiroga, o autarca de Boticas, também abomina os preconceitos com que a empresa britânica se referiu à população transmontana. “Por baixas qualificações literárias que estas pessoas tenham, há uma coisa que a universidade da vida lhes ensinou: é que, quando lhes mentem, elas não toleram nem perdoam”, diz. “Estas pessoas sentiram-se ultrapassadas, não lhes falaram claro, não lhes disseram a verdade. Fui eu que convoquei a empresa para, pela primeira vez, ir lá à aldeia explicar o projecto. E aí não explicaram nada. Usaram termos muito técnicos e tentaram menorizar a inteligência daquela gente. E isso eu também não tolero.”
Há uns anos, a população mostrou-se favorável à laboração de uma mina de ouro; segundo o presidente da câmara, nesse caso, o projecto foi bem explicado desde o início e convenceu os residentes. Nunca abriu por se localizar numa zona classificada.
Queiroga diz que Miguel Torga descreveu como ninguém a hospitalidade barrosã: “‘Entre quem é’, escreveu ele, ou seja, aqui deixamos primeiro os visitantes entrar e só depois perguntamos quem eles são. Foi o que fizemos. Mas depois percebemos que não vinham por bem. E isso não podemos aceitar.” A câmara municipal usará todos os mecanismos legais ao seu alcance — acções em tribunal, revogação de licenças — para bloquear a empreitada. Um duro revés para o Governo que, numa recente conferência sobre “mineração verde”, defendeu que a “licença social” é imprescindível para a execução das minas.
Nem o pagamento de indemnizações parece poder mudar a convicção da autarquia. “Não nos vendemos por meia dúzia de tostões”, afirma Queiroga. A repartição de benefícios feita pela Savannah — que estabelece a criação de uma fundação comunitária com uma dotação anual de 500 mil euros — também não impressiona o presidente da UDCB. “Que fique bem claro que o que está aqui em causa não é dinheiro. Há coisas que não têm preço. Não estamos aqui a dizer que não deixamos por cinco, mas que já deixamos se for por 15. Não deixamos nem por 100”, reitera Nélson.
Não se deixam deslumbrar nem com o casarão modernista, de linhas rectas e minimalistas, que Marta, a ex-oficial de relações com a comunidade da Savannah, construiu no último ano bem no centro da povoação. O contraste com as velhas casas de granito é vincado. Funciona como uma afirmação: se o dinheiro da mina entrar, todos vão poder ter uma casa assim. Em tempos não muito distantes, a perspectiva de enriquecimento seria suficiente para cativar os transmontanos; afinal, a região perdeu para a emigração mais de metade da sua população nos últimos 70 anos, essencialmente devido à falta de emprego, ao isolamento e à sua economia frágil. Em Covas, um pormenor, por si só, conta toda a história da desertificação: a casa mortuária funciona nas instalações da antiga escola primária.
Contudo, Trás-os-Montes mudou muito nos últimos anos. Para os que ficaram, as agruras da vida diminuíram. As máquinas suavizaram o trabalho agrícola, a fome desapareceu e os acessos às cidades também melhoraram.
“Aquela imagem de ‘coitadinhos’ e de analfabetos que ainda é cultivada em Lisboa e no estrangeiro já não se adequa à nova geração”, afirma Catarina Scarrott, professora natural do Barroso emigrada em Londres. A pedagoga relembra que as gerações do Estado Novo eram passivas quando reprimidas, não tinham voz e desconheciam os seus direitos, dando até o exemplo de um professor do ensino primário que maltratou crianças na aldeia ao longo de décadas sem que ninguém lhe fizesse frente. “Isso acabou. Os transmontanos mais novos são licenciados, não têm complexos de inferioridade e já não se deixam vigarizar facilmente. Há umas décadas, talvez ninguém abrisse a boca em relação à mina, mas agora ninguém hesitou em protestar.”
A juntar a isto, existe na região uma grande desconfiança em relação aos organismos do Estado; ninguém acredita na idoneidade da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), na capacidade de fiscalização da Direcção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) ou na competência do Ministério do Ambiente. Muitos sentem-se cidadãos de segunda, resultado de décadas de negligência e de abandono do poder central.
“Só vêm para Trás-os-Montes chupar-nos a água e roubar aquilo que é nosso, mas não deixam ficar cá nada”, diz Idalina, reformada de 74 anos de Vilarinho de Negrões, no concelho de Montalegre, com a face enrugada pelos raios de sol, impiedosos na lavoura. A barragem do Alto Rabagão, construída em 1964, inundou-lhe os seus melhores terrenos agrícolas e, em troca, recebeu apenas umas centenas de contos. “Não chegou para o transtorno, porque, para além de termos ficado sem as terras, não nos deram nenhum desconto na factura de electricidade e para chegarmos às aldeias do outro lado demoramos uma eternidade, coisa que antes era num instante”, lamenta. “Agora, querem vir para aqui com o lítio. Isso não vai dar emprego nenhum; dá lucro mas é para eles. O que vêm fazer para aí? Se fosse pela minha força e coragem, ninguém punha aí os pés.”
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Protesto contra a mineração de lítio na Rotunda do Marquês de Pombal, em Lisboa
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“Somos cada vez mais”
Óscar Afonso, professor da Universidade do Porto e presidente do Observatório de Economia e Gestão de Fraude, tem sido uma das vozes críticas no que toca à instalação de minas de lítio em Trás-os-Montes. Oriundo de Miranda do Douro, Afonso foi uma figura central na denúncia das suspeitas de fraude fiscal na venda de barragens pela EDP em Trás-os-Montes. Defende que a proliferação de barragens e de eólicas têm contribuído para um crescimento empobrecedor na província. “Primeiro, acho que se deveria ter uma noção mais fidedigna das reservas que efectivamente existem e das potencialidades que o lítio tem em Trás-os-Montes”, diz. “Depois, acho que se deviam ter acautelado melhor os interesses das populações locais. Na minha zona, há três barragens e observo que numa área de 15 quilómetros poucos beneficiam com elas. Quem está a beneficiar é Lisboa, que é onde se pagam os impostos. E, mais uma vez, com o lítio, parece-me que a população foi ignorada, e é isso que incomoda, porque em Trás-os-Montes a população é sempre ignorada.”
É o que dizem ter sentido os moradores de Morgade, povoação do concelho de Montalegre a apenas 23 quilómetros de Covas do Barroso, quando tomaram conhecimento, em Abril de 2019, dos pormenores sobre o projecto da Lusorecursos para a Mina do Romano. “Ainda ninguém tinha falado connosco e ficámos a saber pela televisão não só do enorme tamanho da mina, como também da forma suspeita como se assinou o contrato”, diz Armando Pinto, 46 anos. Professor de Educação Física, pai de dois filhos, foi eleito presidente da associação Montalegre com Vida (McV), que passou a liderar o movimento contra a mina no município.
Desde então, encaminhou os descontentes para dezenas de protestos: boicote das eleições legislativas e europeias, sessões de esclarecimento em todas as freguesias do município, protestos em eventos como a Volta a Portugal em bicicleta, caminhadas ecológicas, manifestações em Montalegre e em Lisboa, petições, audições parlamentares e a entrada de uma acção em tribunal contra o Estado por suspeitas de irregularidade no contrato com a Lusorecursos. “Tem sido muito cansativo, muito desgastante. A minha vida, bem como a de todos os membros, mudou completamente. Nada é igual”, diz. “Para além do tempo que gastamos e do dinheiro que investimos, temos sofrido tentativas de nos descredibilizarem, ataques pessoais e à associação com os quais, em certos momentos, tem sido difícil de lidar.”
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Armando Pinto é professor de Educação Física e lidera o movimento Montalegre com Vida
Adriano Miranda
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Armando Pinto confronta Matos Fernandes, ministro do Ambiente e da Transição Energética
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Armando Pinto durante uma sessão de esclarecimento com a população em Morgade
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Armando refere-se a acusações da empresa de que o movimento é patrocinado por António Marques — o ex-sócio de Ricardo Pinheiro, afastado do negócio — ou por outros decisores políticos. Tanto Marques como a McV negaram ao PÚBLICO quaisquer relações entre si. E há mais conspirações: a firma de Braga afirma ter recebido um currículo de um membro da associação para trabalhar na mina.
Uma guerra aberta não só nas ruas, como também na Internet. A associação diz subsistir através de donativos dos seus cerca de 250 membros. Embora tenham conseguido reunir a maioria dos moradores na luta contra a mina e atraído as atenções nacionais para a causa, a Lusorecursos desvaloriza a sua influência. “Quando se fala de um movimento nacional, tem de se ter dimensão. Não é o que está a acontecer. O movimento nacional agrega uma dúzia de movimentos locais e cada um deles tem meia dúzia ou uma dúzia de pessoas, não muito mais”, diz Ricardo Pinheiro. Armando refuta: “Não é verdade. Se calhar, é alguém que não quer que sejamos mais do cinco. Mas só na manifestação em Montalegre éramos 300, talvez 400. E somos cada vez mais, apesar de alguns não quererem dar a cara por medo de represálias ou de perderem o emprego”, diz.
A maior luta
Em Boticas, Fernando Queiroga vai ainda mais longe e classifica o movimento contra o lítio como a maior luta do interior do país. “Nunca houve um tema que unisse tanto as pessoas como este – porque significa a destruição de um território, mexe com a qualidade de vida, com a saúde e com o ambiente.”
Já o seu congénere de Montalegre, Orlando Alves, eleito pelo PS, não tem uma posição tão assertiva. O autarca tem sido acusado por ambos os lados da contenda de fazer jogo duplo; por um lado, está a colaborar com a Lusorecursos no desenvolvimento do projecto, por outro, disponibilizou à McV o pagamento de um painel de especialistas para dissecarem e contrariarem o EIA apresentado pela empresa.
Alves nasceu numa povoação mineira, Salto (onde a antiga Mina da Borralha está actualmente a ser alvo de novo pedido de exploração), e, pessoalmente, é favorável à extracção. No entanto, sabe que a posição não é popular no concelho. “Como a associação, mesmo sem conhecer os contornos de nada, diz já há muito tempo que é contra o lítio e não quer cá o lítio, então o nosso parecer também será contra”, afirma o autarca de Montalegre, no seu escritório. “É assim um paradoxo, mas a verdade é que entre estar ao lado de um desígnio nacional, patrocinado por este Governo ou outro qualquer, ou estar ao lado das populações, eu tenho de estar ao lado dos meus.”
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Habitantes de Carvalhais, Montalegre, cujo autarca, Orlando Alves, eleito pelo PS, tem sido acusado por ambos os lados de fazer jogo duplo
Adriano Miranda
Em baixo, na praça do município, um boneco com a sua cara, feito pela McV, prepara-se para ser incendiado publicamente na tradicional Queima do Judas, realizada na Semana Santa. O autarca planeia a vingança nas autárquicas: um dos seus principais objectivos é conquistar a Junta de Freguesia de Morgade.
Armando Pinto não se poupa a esforços. Mesmo durante a pandemia, os populares reúnem-se no centro social de Morgade para ouvir os esclarecimentos da associação sobre o EIA entregue pela Lusorecursos. “O consumo de água só na zona industrial é de 5000m3 por dia. Vão buscá-la às nascentes, aos furos e à barragem do Alto Rabagão. Vão consumir mais água num dia do que Montalegre durante todo o mês de Agosto”, anuncia. Os presentes escutam, preocupados, o agouro de ruídos provenientes da central de biomassa, de cortes dos cerros e de poeirada sobre a aldeia. Referem-se aos homens do lítio como os “jaguares”, porque os funcionários da Lusorecursos deslocam-se em SUV eléctricos da Jaguar.
Para além dos prejuízos ambientais, inquietam-se também com a possibilidade de verem os seus terrenos particulares e os baldios expropriados. “Os subsídios provenientes dos baldios para silvicultura e pastoreio são uma fonte de rendimento importante para muitas famílias”, afirma Armando. Tanto a Savannah como a Lusorecursos sublinham a intenção de chegar a acordo com os proprietários para os compensar pela perda e afirmam ter já concluído a aquisição de várias parcelas nas suas áreas licenciadas, facto que as associações juram impossível de ter acontecido. “Quase ninguém vendeu os seus terrenos”, diz Armando. Ambas as empresas, confrontadas pelo PÚBLICO, alegaram motivos de confidencialidade para não mostrarem os contratos que dizem ter firmado.
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Fernando Queiroga, autarca de Boticas, classifica o movimento contra o lítio como a maior luta do interior do país
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“A lei é clara”, diz o secretário de Estado adjunto e da Energia, João Galamba. “Quem tem a concessão de um recurso geológico tem poderes de expropriação.” Alarmados pelo fantasma da perda das terras, alguns populares arranjaram formas criativas de protesto. Lucinda Miranda, professora reformada, pegou numa melodia litúrgica e criou uma canção contra o lítio, decorada também pelas crianças de Morgade: “S. Domingos, Santo António/Todos os santos da igreja/Peçam por nós ao senhor/Nesta tremida peleja/Ah, serra linda, quem não te amará?/Para o S. Domingos não há/Cientistas de todo o mundo/Ajudai a descobrir/Material que seja idêntico/Que de lítio seja isento.”
Armando ouve-a cantar, emocionado. “Nós sabemos que temos contra nós a vontade do poder central e a vontade da Europa; no fundo, sabemos que somos uns peixinhos a lutar contra uns tubarões”, diz. “Mas somos nós que queremos continuar a viver aqui. Se a população que está aqui não tem uma voz, não tem uma palavra a dizer sobre todo este processo, então julgo que não vivemos numa democracia.”
Na Assembleia da República, têm sido Os Verdes a força política que mais tem levantado objecções à exploração de lítio no Barroso. “O partido não é contra a exploração de minerais em Portugal”, diz Mariana Silva, a deputada que tem acompanhado sistematicamente as manifestações contra as minas de lítio e que tem confrontado o ministro João Matos Fernandes em debates acesos sobre este tema. “O que entendemos é que todo este processo de exploração de lítio pode trazer mais prejuízos do que benefícios. Para nós, o mais importante para a sustentabilidade e descarbonização é a aposta nos transportes públicos e na ferrovia. São soluções mais viáveis para combater as alterações climáticas do que continuar a apostar no paradigma de cada um ter o seu carro.” A deputada não acredita nas vantagens económicas dos projectos para aquela área. “Fala-se dos empregos que se vão criar, mas ninguém refere os empregos que se vão perder na agricultura e no turismo, uma área que estava a ser muito bem explorada em Montalegre. Os estrangeiros vêm muito à procura destes espaços que não foram tocados, estão preservados, onde a natureza é realmente a natureza.”
Nada a temer?
A aversão ao lítio estende-se a zonas onde ainda nem sequer houve sondagens. Na esplendorosa serra d’Arga, no concelho de Caminha, zona identificada para o concurso de lítio, nasceu em 2019 um movimento aguerrido que promete lutar para que não haja nem um furo de prospecção no local. O SOS Serra d’Arga tem estado sempre na linha da frente da luta, arrasta muita gente para as manifestações e até mantém estreito contacto com grupos de activistas galegos, experientes na oposição às minas.
“Organizámos o primeiro encontro de movimentos cívicos antimineração em Cerveira. Estamos numa plataforma de entendimento, que reúne mais de uma dezena de movimentos para defender todos os territórios em perigo. Estivemos em Covas do Barroso, quando o secretário de Estado foi expulso durante uma visita. Estamos onde for necessário para defender as populações que assim o queiram”, diz Carlos Seixas, um ex-jornalista que coordena o grupo. No cume de Arga, os garranos pastam à solta, a paisagem é de cortar a respiração. Até o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, numa recente digressão ao Alto Minho, afirmou que considera “improvável” a prospecção de lítio no local.
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Protesto anti mineração de lítio na Ponte Internacional de Vila Nova de Cerveira
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Cavalos na Serra d'Arga, uma das zonas que deve entrar no leilão para exploração de lítio promovido pelo Governo
Tiago Carrasco
Noutras áreas listadas para possível exploração, há quem veja o advento do lítio com bons olhos. “Desde que sejam respeitadas todas as normas ambientais, acho que não temos nada a temer”, defende Raul Costa, presidente da assembleia geral da freguesia de Soutelo de Matos, em Ribeira de Pena. “Claro que o processo tem de ser transparente e a transformação, e não apenas a extracção, também tem de ser realizada no concelho. Temos de pensar positivo e ver que os jovens vão ter uma oportunidade na sua terra e os que estão no estrangeiro também vão poder regressar com boas condições de trabalho.” Os autarcas de Ribeira de Pena e de Vila Pouca de Aguiar, concelhos vizinhos do Barroso, já se mostraram disponíveis para receber a indústria do lítio.
Formas de esperança que já não acodem a Covas. Aida e Nélson, Armando e Seixas preparam-se para mais uma manifestação — não faltam crânios de vacas, cartazes com máscaras de gás e uma coluna a projectar sons de explosões e de sirenes. Exagerados ou não, os símbolos cumprem a missão de chocar a audiência.
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Manifestação em Lisboa durante a presidência portuguesa do conselho da União Europeia
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O ex-jornalista Carlos Seixas, que lidera o movimento SOS Serra d’Arga, um dos mais aguerridos contra a mineração deste metal no concelho de Caminha
Adriano Miranda
Os ânimos no Barroso estão a ficar cada vez mais hostis. De dentro dos movimentos antilítio há mesmo quem se mostre preocupado com a presença de activistas radicais e ligados a partidos de extrema-esquerda. Uma hipótese rejeitada por Carlos Seixas, do SOS Serra d’Arga. “Temos elementos de todas as sensibilidades ideológicas, da esquerda à direita. Nunca permitimos, e houve quem o tentasse, a interferência de partidos políticos.”
No entanto, não há garantias de que a luta permaneça pacífica. “Isto tem-se mantido calmo, mas se um dia isto vier a sério, o comportamento não será esse, garantidamente”, diz Fernando Queiroga. Em Arga e na Argemela, os pneus dos carros de geólogos e das empresas mineiras foram furados. Sucedem-se ameaças: enxadas contra os ingleses; sacholas contra os “jaguares”. “Esse tal de Ricardo Pinheiro, que vá lá para o Minho, para Braga, que se deixe lá estar, porque às vezes pode vir aqui e correr-lhe mal”, diz um morador de Carvalhais, aldeia vizinha de Morgade, junto à fonte da aldeia.
Sabemos que somos uns peixinhos a lutar contra tubarões
"Quereis lítio? Ide catá-lo a outro sítio" - Viagem pela iconografia anti-lítio
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O não ao lítio é um dos maiores movimentos de protesto nas últimas décadas no Interior do país. Já boicotaram eleições, manifestaram-se em Lisboa, irromperam de cartazes em punho na Volta a Portugal em bicicleta e em feiras gastronómicas. Os ânimos estão cada vez mais hostis perante a proximidade de abertura das minas. Há quem esteja disposto a tudo para o evitar. Viagem pela iconografia anti-lítio e anti-mineração em Portugal através de cartazes, ilustrações, fotomontagens publicadas nas páginas das redes sociais dos vários movimentos surgidos nos últimos anos.
Esta galeria faz parte da terceira de uma série de seis grandes reportagens sobre lítio. Todos os trabalhos aqui
"Não ao lítio, sim à vida" - O coro de protestos em imagens
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O não ao lítio é um dos maiores movimentos de protesto nas últimas décadas no Interior do país. Já boicotaram eleições, manifestaram-se em Lisboa, irromperam de cartazes em punho na Volta a Portugal em bicicleta e em feiras gastronómicas. Os ânimos estão cada vez mais hostis perante a proximidade de abertura das minas. Há quem esteja disposto a tudo para o evitar. Estas são algumas das imagens mais marcantes de vários protestos anti mineração de lítio em Portugal.
Esta galeria faz parte da terceira de uma série de seis grandes reportagens sobre lítio. Todos os trabalhos aqui
As zonas cinzentas da mineração verde
As minas querem ser verdes: sem emissões de CO2 nem contaminações. Mas o green mining está longe de ser uma realidade. Em Trás-os-Montes, temem-se derrocadas de escombreiras, escassez de água e poluição atmosférica. Os especialistas dizem que a tecnologia garante a minimização de danos, mas não a sustentabilidade total. A reciclagem de baterias e os certificados ecológicos são esperados com ansiedade para assegurar uma transição energética sem zonas cinzentas.
Tiago Carrasco(texto) e
Vítor Martinho(vídeo)
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Escombreira do complexo mineiro da Panasqueira, no concelho da Covilhã
João Henriques
O rio Covas, escondido no vale aos pés da aldeia, é o epicentro da vida comunitária do Barroso no Verão. Para as centenas de famílias emigradas em França, na Suíça ou no Luxemburgo, um mergulho nas suas águas límpidas serve para retemperar forças após um ano de trabalho árduo, um instante catártico. Os que ficaram, como Nélson Gomes, encaram o fluxo daquele caudal como uma extensão do sangue que lhes corre nas veias. Aquele não é somente o local de reencontro com os parentes; é aquela água que irriga os campos e os lameiros, que mata a sede das vacas e que aloja as trutas que o tio lhe ensinou a pescar. Uma fonte de vida.
Nélson teme que a mina de lítio acabe com o vigor do rio. A Savannah, no seu estudo de impacte ambiental (EIA), indica que a mina necessitará de 60.000m3 de água durante o arranque e 45.000m3/mês (correspondente a 20 piscinas olímpicas) em operação, uma quantidade já bastante reduzida pela reciclagem de 85% da água que circulará internamente na lavaria e restantes actividades. Ainda assim, a água subterrânea na área do projecto não basta. “O escoamento superficial nas áreas de exploração fornecerá água suficiente durante os meses mais húmidos, mas pode não chegar em tempo seco”, lê-se, no resumo do EIA. Se a água drenada a partir das cortas e escoada da superfície da exploração não chegar, a Savannah contempla extracções do rio Covas nos períodos mais secos. Embora a empresa garanta que o caudal ecológico (a quantidade mínima de água exigida para manter os ecossistemas saudáveis) nunca será ameaçado, Nélson tem pesadelos com a possibilidade de ver o rio seco: os emigrantes sem banhos, as vacas sedentas, as torneiras de rega inertes e as trutas a asfixiarem sobre as pedras. “Quem é que vai garantir a manutenção do caudal ecológico? A empresa? Se a mina precisar de água para operar, vão mesmo preocupar-se com isso? Pelo que vemos noutros lados, não me parece isso vá acontecer”, afirma.
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O Rio Covas é o epicentro da vida comunitária do Barroso no Verão
Tiago Carrasco
O EIA — um plano de cerca de 3000 páginas elaborado pela Savannah em colaboração com a Visa Consultores e outros parceiros nacionais e internacionais especializados em geologia e ambiente, declarado conforme pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA) no passado mês de Abril e que esteve em consulta pública até 16 de Julho — devia servir para travar a ansiedade da comunidade de Covas do Barroso em relação aos possíveis estragos ambientais. Não resultou. Pelo contrário, a associação antimina Unidos em Defesa de Covas do Barroso (UDCB) passou a apoiar-se no relatório para cimentar a sua descrença.
A mineira londrina esmerou-se para explicar de que forma pretende mitigar os danos: o estudo enumera mais de 200 acções destinadas a minimizar os efeitos nefastos da exploração de lítio no meio ambiente. Assegura que o desvio dos corgos e dos canais aquíferos não vai afectar a rega e o abastecimento de água, que os reagentes usados na lavaria serão orgânicos e não contaminarão os solos, que os explosivos necessários para as detonações não serão guardados no local e que terão um uso limitado de dois em dois dias e haverá construção de cortinas arbóreas para travar o ruído e os distúrbios na paisagem.
Mas as 3000 páginas do documento valem menos do que um fardo de palha para os opositores da mina. Numa sessão online de esclarecimento promovida pela APA e pela Visa, as perguntas dos contestatários surgiam em catadupa, sem respostas:
— “Como é que fizeram o estudo, se nem sequer tinham licença para entrar nos terrenos?”.
— “O estudo indica que existe uma radioactividade natural nas rochas da região, mas que os valores medidos não são significativos. Onde estão esses valores? Não estão no EIA!”
— “Como será controlado o excesso de água pluvial precipitada em momentos extremos de chuva sobre as escombreiras de material oriundo da oficina de tratamento do minério?”
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Terrenos de Covas do Barroso onde a empresa Savannah pretende começar a explorar lítio
Adriano Miranda
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A contestação antiminas em Covas do Barroso está por todo lado
Adriano Miranda
Esta última questão, relacionada com a segurança da pilha de rejeitados, transformou-se na maior preocupação dos populares. E não é para menos. As derrocadas de escombreiras já provocaram acidentes ambientais e humanitários gravíssimos — o de 1998 em Aznalcóllar, em Espanha, o de Mount Polley, em 2014 no Canadá, e os registados em Mariana e Brumadinho, no Brasil, em 2015 e 2019. Em todos estes casos, as lamas carregadas de minerais contaminantes escorreram para os rios, destruindo completamente os ecossistemas. Centenas de pessoas morreram.
A Savannah considera essa eventualidade “virtualmente impossível”. Nas três alternativas de operação da mina apresentadas no EIA, os rejeitados — os resíduos sem aproveitamento resultantes do processo de separação da espodumena (que contém o lítio) da rocha extraída, material que a empresa diz não ser tóxico ou perigoso para a saúde humana — serão depositados juntamente com rochas estéreis numa escombreira a sul da área da concessão. A “Escombreira Sul” passou a estar no olho do furacão. O processo proposto pela Savannah estabelece “a remoção da água dos rejeitados, criando um material semelhante a areia húmida, sendo depositado em aterro estruturalmente robusto. Os rejeitados secos serão empilhados e misturados com as rochas estéreis da mina e cobertos com material estéril mais grosseiro, criando uma grande colina, que será gradualmente revegetada”. A empresa pretende assim drenar os rejeitados, uma vez que quanto mais secos, mais estáveis permanecerão na escombreira, rodeando-os de rochas estéreis prontas a reflorestar. Quer ser a primeira mina de lítio com rejeitados secos empilhados.
Bonito e seguro, assunto arrumado
Essa não é a perspectiva da UDCB. A associação pediu um relatório ao norte-americano Steven H. Emerman, um dos maiores especialistas mundiais em barragens de rejeitados e presidente do Subcomité do Corpo de Conhecimento da Sociedade de Barragens dos EUA, com 31 anos de experiência na avaliação de escombreiras em minas dos cinco continentes: a conclusão é bastante crítica em relação à proposta da Savannah. Emerman conclui que o plano da Savannah está revestido de uma “criatividade temerária”, ou seja, de um optimismo excessivo em relação às técnicas a usar, sem qualquer previsão de falhas. O norte-americano faz notra que a proposta da mineradora se baseia na garantia de que o teor de água no material rejeitado vai ser inferior a 15%, o que, segundo ele, excede a capacidade da tecnologia actual. Adverte ainda para a ausência de plano na eventualidade de chuvas fortes humedecerem os rejeitados, tornando-os menos susceptíveis de uma compactação adequada. “A proposta não reconhece que o aterro de estéreis que rodearia a mistura de rejeitados filtrados e estéreis constitua uma barragem e deva obedecer às normas de segurança de barragens”, acrescenta.
O pior fica para o fim. O norte-americano afirma não ter encontrado no EIA qualquer análise às consequências de um acidente, pelo que realizou a sua própria análise, nada animadora. “Com base num modelo estatístico de falhas de barragens de rejeitados anteriores, a falha da escombreira irá libertar 8,5 milhões de metros cúbicos de resíduos de mina com uma distância de escoamento inicial de 86 quilómetros, com impacto em numerosas comunidades ao longo dos rios Tâmega e Douro. No pior cenário possível (perda de 100% dos resíduos armazenados), 30,5 milhões de metros cúbicos de resíduos de mina serão libertados e chegarão ao oceano Atlântico (a 128km) durante o escoamento inicial.” A Savannah assegura no seu plano que, caso ocorresse um deslizamento, os resíduos ficariam contidos na zona da mina.
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Escombreiras do Cabeço do Pião no complexo de minas da Panasqueira, perto da serra da Argemela, onde se pretende minerar lítio - a pilha de rejeitados da exploração transformou-se na maior preocupação dos populares
João Henriques
Uma coisa é certa: a avançar, a mina do Barroso vai ser um tubo de ensaio para outras minas de lítio em análise na Europa. A extracção de lítio a partir de pegmatitos existe sobretudo na Austrália, onde a vastidão do território permite que ocorra em regiões desérticas, e na China, país de onde a informação que sai é escassa e controlada pelo Governo. Daí Emerman sublinhar o carácter “experimental” da exploração transmontana, dando como exemplo o tamanho proposto para o depósito de resíduos: a Savannah propõe uma altura de 193 metros para guardar os seus 83 milhões de toneladas de sobrantes de mina, enquanto a escombreira mais alta numa mina de lítio activa é de 70 metros e, segundo o relatório, não existe nenhuma proposta no mundo acima dos 107 metros.
A consulta pública contou com 166 participações, a maioria com pareceres negativos. Além da esperada rejeição da UDCB, também a Câmara de Boticas argumentou, num documento com 134 páginas, que o plano da Savannah está “repleto de desconformidades, para além de padecer, ao nível da avaliação dos impactes, de problemas metodológicos muito graves e incongruências inadmissíveis”. Associações de defesa do ambiente, como a Zero, a Geota – Grupo de Estudos de Ordenamento do Trabalho e Ambiente, e a Fapas – Associação Portuguesa para a Conservação da Biodiversidade, também chumbaram o projecto. “As medidas de mitigação são apenas pensos rápidos que não evitarão danos irreversíveis e desastrosos no futuro”, comunicou a Geota. Para além da consulta pública em Portugal, o EIA da Savannah terá também de passar por processo semelhante em Espanha (devido à proximidade da fronteira com a Galiza), não sendo ainda conhecidas datas para a sua realização. Só depois deste percurso e do parecer da Agência Portuguesa do Ambiente é que se vai saber se a mina obterá licenciamento ambiental.
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O inglês David Archer, CEO da Savannah, acredita que a mina do Barroso não vai ameaçar o estatuto patrimonial de Covas do Barroso
Tiago Carrasco
O lítio vive ainda a sua infância. Pouco se sabe sobre os impactes reais da sua extracção, ainda que se comecem a ouvir queixas em várias latitudes. No passado mês de Fevereiro, a Amnistia Internacional avisou que a extracção de lítio em salmouras está a pôr em sério perigo os recursos hídricos das populações indígenas do deserto do Atacama, no Chile, e os protestos dos activistas na capital, Santiago, acabaram em confrontos com a polícia. Nos EUA, teme-se que uma mina proposta para o Nevada contamine as águas subterrâneas com urânio, cause o desaparecimento de espécies de animais selvagens e amontoe grandes quantidades de resíduos minerais nas escombreiras — os povos indígenas da zona também estão em luta.
Mas estes casos estão afastados do discurso dominante da classe política, empresarial e de parte da comunidade científica. Aí reina um só conceito: “green mining”, traduzido como “mineração verde” ou “mineração ecológica”, que remete para a extracção de minerais sem qualquer impacte ambiental, sem emissões de dióxido de carbono e em simbiose com a natureza. É uma expressão usada frequentemente por David Archer, CEO da Savannah, Ricardo Pinheiro, director da Lusorecursos, pelo secretário de Estado da Energia, João Galamba, ou pelo ministro do Ambiente, João Matos Fernandes, para defenderem que as minas actuais, regulamentadas por um quadro legal orientado para a descarbonização e equipadas com modernas tecnologias, são amigas do ambiente, ao contrário das minas poluentesdo passado.
A procura da verdade
Numa tarde quente de Maio, os opositores das minas de lítio reúnem-se diante do Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa, onde decorre uma conferência internacional sobre green mining, no âmbito da presidência portuguesa da UE. “Verde? Verde é o Barroso”, lê-se num dos cartazes. “Verde é aquilo que existe nas nossas terras, no Barroso, nas Beiras, no Minho. E toda a zona do Norte de Portugal, especialmente no interior. É por isso que estamos cá. Verde é o que nós temos. Não é aquilo que querem que possamos vir a ter no futuro. No futuro, vamos deixar de ter esse verde que temos, a biodiversidade que temos, a qualidade da água que temos”, discursa Armando Pinto, presidente da associação Montalegre com Vida (McV). Muitos dos presentes estão indignados com a presença de David Archer entre os oradores da conferência. “Mostra apenas a cumplicidade entre o Governo e a empresa”, diz Aida Fernandes, da UDCV. “Como se justifica que uma empresa que nunca explorou nada no mundo, sem provas dadas, possa vir aqui falar de green mining, como se fosse uma referência na matéria?”, questiona.
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Manifestação antiminas de lítio em Lisboa, no dia em que a presidência portuguesa do conselho da Europa organizou uma conferência sobre green mining, para a qual convidou o CEO da Savannah, David Archer
Tiago Carrasco
Os argumentos têm-se extremado; se, de um lado, as empresas prometem uma mineração 100% sustentável, do outro, os opositores das minas publicam nas redes sociais fotografias e vídeos de acidentes ambientais e explosões apocalípticas em pontos de extracção. Isso mesmo constata Nik Völker, um informático alemão especializado em cartografia que se instalou com a namorada, Corinne, em Figueiró da Serra, no concelho de Gouveia. Nik e Corinne, ambos freelancers, transformaram a sala da escola primária da aldeia, entretanto desactivada, no seu escritório. Abandonaram Lisboa para procurar na serra da Estrela uma vida pacífica e mais ligada à terra, mas foram imediatamente confrontados com as notícias da possível exploração de lítio na região. Nik aproveitou os seus conhecimentos técnicos para colocar online o “mapa do minério” — um rastreio das áreas alvo de pedidos de prospecção e exploração de minério em território nacional — e fundou o Mining Watch, uma plataforma para monitorizar a sustentabilidade dos projectos de mineração, em colaboração com outros movimentos internacionais. “Um lado diz que a mineração é muito má, que vai destruir o mundo inteiro, e o outro lado diz que a destruição do mundo foi a mineração do século passado, não esta. A verdade está no meio”, afirma Nik. “Há impactes. E há impactes que se podem compensar, equilibrar, mas há outros que são inevitáveis – porque em todos estes projectos a céu aberto em Portugal, nunca é previsto depois encher o buraco. A cratera fica sempre. Se isso se pode considerar verde ou responsável, não sei. Cabe às pessoas nos sítios das minas avaliarem as propostas.”
Nik tem noção de que os minérios são parte da transição energética e de que é necessário explorá-los – mas não a qualquer preço. A transparência é o seu grande cavalo-de-batalha: ele crê que os projectos de lítio europeus não têm sido claros nem bem comunicados. Encabeçou uma acção de dezenas de movimentos da sociedade civil em vários países para apresentar uma queixa contra o programa Mireu, um dos projectos europeus para o sector mineiro. “No Horizon 2020, há vários fundos que estão a apoiar materiais fornecidos nas escolas primárias e secundárias para explicar aos miúdos a importância da mineração e como, hoje em dia, supostamente, é possível fazer isso de uma maneira verde e com poucos danos ambientais”, explica o informático. “Eu aí vejo um problema, porque a entidade que está a regulamentar o sector a nível europeu, a influenciar a legislação, é a mesma que está a tentar influenciar a opinião pública. O que se pede à UE é neutralidade nestes processos.”
Francisco Ferreira, presidente da associação ecologista Zero, também torce o nariz ao conceito de “minas verdes”: “O secretário de Estado da Energia falou de novos métodos de tratamento para a extracção de lítio em que não vai existir utilização de ácidos, o uso de muita água ou impactes nos afluentes, mas nada disso está explicado. Portanto, é difícil pronunciarmo-nos sobre algo que, baseado nos trabalhos que temos visto e nos técnicos que temos consultado, não existe.”
Um desses técnicos é José Soeiro de Carvalho, experiente engenheiro de minas e docente da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. O seu departamento tem acompanhado de perto a evolução dos novos métodos de mineração destinados a atenuar os prejuízos ambientais. Ainda assim, o técnico descarta em absoluto o rótulo de green mining. “Neste momento, insiste-se na mobilidade verde, sendo que esta é baseada no automóvel. No dia em que um automóvel não fizer poluição, acho que inventamos a deslocação sem energia. Portanto, convencerem-nos que um automóvel é verde mesmo que funcione a bateria, a hidrogénio ou mesmo a água, é tentarem tapar-nos os olhos. Uma mina verde não é verdade, não pode ser”, afirma. “A qualificação colorida é sempre muito exagerada. A mineração é responsável ou irresponsável. O que defendemos é que a mineração tem de ser responsável.”
Soeiro de Carvalho está na Pedreira da Madalena, no meio de Vila Nova de Gaia. Ao longo de 50 anos, daquela cratera, inicialmente escavada numa área rural do concelho, foram extraídas 16 milhões de toneladas de granito, utilizadas nas pontes da Arrábida e de S. João, nas obras dos caminhos-de-ferro Lisboa-Porto, nos molhes de protecção costeira da Foz e em vários edifícios da Invicta. Com a expansão urbana, os 12 hectares da pedreira ficaram rodeados de prédios, escolas e estradas. “A pedreira decidiu que era altura de fechar. E fechou reintegrando muito do material que tinha sido usado em construções, ou seja, muito do material de demolição de infra-estruturas do Porto veio de novo parar aqui para tapar o buraco. E o curioso é que a pedreira dentro de poucos anos vai estar completamente fechada”, diz Soeiro de Carvalho, satisfeito, com as retroescavadoras atrás de si a transportarem mais rochas para preencher a cratera. “O território foi recuperado e a sociedade vai poder usá-lo da maneira que entender. A exploração desta pedreira é um caso positivo e traduziu-se numa clara mais-valia para a sociedade.” Para além de um centro interpretativo, os terrenos industriais vão dar lugar ao Parque Ambiental da Quinta do Moinho, uma zona verde de lazer.
A Pedreira da Madalena está longe de ser um caso isolado: por todo o mundo, não faltam exemplos de antigas minas transformadas após o encerramento em parques naturais ou locais de recreio. Em Kimberley, no Canadá, uma mina que operou durante mais de 100 anos deu lugar a um complexo de energia solar e a um resort de ski, enquanto em França, em Bersac-sur-Rivalier, os terrenos de uma exploração de urânio ressuscitaram sob a forma de um parque recreativo com lago para pesca. Na Áustria, uma corta deu lugar a um auditório para eventos culturais, enquanto outra reconversão no Canadá originou um campo de golfe. Em Portugal, uma pedreira de Braga foi transformada pelo arquitecto Eduardo Souto de Moura num dos estádios de futebol para o Euro 2004 e na casa do Sporting Clube de Braga.
Em Covas do Barroso, a Savannah também garante que os terrenos terão uma utilização sustentável após o término de vida útil da mina, em 2036. “A requalificação da área será enquadrada com a envolvente e realizada em concomitância com a exploração, retomando a implantação florestal de pinheiro-bravo nas escombreiras (aterros). As cortas que não sejam aterradas constituirão lagoas abastecidas pelas ribeiras existentes e irão drenar para o mesmo sistema de cursos de água existentes”, lê-se no EIA. Segundo o plano, uma das lagoas terá inclusivamente uma cascata.
Criado em 2002, o International Council on Mining and Metals (ICMM), uma organização internacional dedicada à promoção de uma indústria de mineração segura, justa e responsável, dita as práticas exigidas às minas que se preocupam com o ambiente. Mais de 1500 empresas mundiais do sector mineiro encontram-se envolvidas neste compromisso, incluindo 27 das maiores sociedades do ramo. Apesar de não ser uma delas, a Savannah Resources diz orientar-se pelos fundamentos propostos pala organização. “Se a sociedade portuguesa em geral, e as comunidades afectadas, em particular, alguma vez irão aceitar a introdução da mineração de lítio em grande escala, também precisarão de ser convencidas de que o lítio traz vantagens”, afirmou à Reuters Tom Butler, presidente executivo do ICMM. “O nosso conselho seria procurar valorizar a comunicação e a transparência entre as comunidades, o Governo e as empresas de mineração, a fim de tentar maximizar a integração de qualquer mina proposta no desenvolvimento geral para a região.”
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Matos Fernandes, ao centro, ministro do Ambiente, na antiga mina romana de Fojo das Pombas, Valongo, em Março de 2017
Nelson Garrido
Com esse objectivo, a firma britânica tentou introduzir medidas socioeconómicas no projecto. Para além da criação de emprego, o EIA refere um plano de partilha de benefícios, que garante que as comunidades locais recebem uma parcela dos benefícios da exploração de recursos e a criação de uma fundação comunitária com uma dotação anual de 500 mil euros. Está previsto ainda um plano de boa vizinhança, com um custo estimado de 100 mil euros anuais: prevê que os moradores possam utilizar os veículos de transporte dos trabalhadores da empresa, acorrer ao posto médico da mina em situações de urgência e a compra de víveres a pequenas empresas da região para incrementar a economia local.
A finalidade é a almejada obtenção da licença social, um acordo entre as empresas e as comunidades locais que tanto a UE como o Governo português já declararam como “fundamental” para a abertura de minas. Este contrato tem sido um tema incontornável em todas as conferências sobre green mining . No entanto, a nova lei das minas portuguesa não a estabelece, para já, como obrigatória, sendo provável que a Savannah avance para a exploração mesmo sem uma licença social assinada com a autarquia de Boticas e com os moradores do Barroso. Se tal acontecesse, o Governo entraria em aparente contradição com as suas declarações anteriores.
Para que a licença social surgisse, a ruptura de confiança entre as partes teria de ser restabelecida, o que parece inverosímil. Tanto Soeiro de Carvalho, como dois dos seus colegas mais reputados do respectivo departamento da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, Alexandre Leite e José Cardoso Guedes, defendem que as tecnologias actuais apresentadas pela Savannah permitem retirar minérios à terra sem afectar muito o quotidiano das comunidades. “Porém, continuamos sem resposta para as dúvidas que levantámos quanto à segurança da Escombreira Sul nos meses de forte pluviosidade”, diz Leite.
Mesmo que a comunidade de Covas confiasse nos métodos, subsistiria ainda a desconfiança quanto ao controlo dos trabalhos da mina. “Um funcionário da DGEG [Direcção-Geral de Energia e Geologia] disse-me que há apenas dez trabalhadores para assegurar a fiscalização de todas as minas do país”, denuncia Catarina Scarrott, da UDCV. “Se acontecer um acidente, vão atirar as responsabilidades uns para cima dos outros, mas quem vai sofrer é a população.” Ao PÚBLICO a DGEG confirma que tem somente nove funcionários alocados à fiscalização de centenas de minas e pedreiras no país, “encontrando-se em curso o procedimento tendente à contratação de profissionais para reforço dos quadros”. “As concessões mineiras são alvo de acções de fiscalização e acompanhamento pela DGEG em acções programadas ou sempre que se considere necessário (…), com o objectivo de verificação do cumprimento do regime jurídico relativo à exploração de depósitos minerais, sendo emitidas as orientações que se revelem adequadas a assegurar a observância das regras de segurança, da economia da exploração, de bom aproveitamento dos recursos e de protecção do ambiente”, explica a direcção-geral.
No passado, muitas foram as áreas de mineração deixadas ao abandono, com fortes repercussões paisagísticas e ambientais, bem como risco para a segurança dos moradores. Para muitas das empresas era preferível pagar a multa — que raramente passava dos 70 mil euros — do que subsidiar a recuperação dos terrenos. Em 2001, estavam identificadas 199 minas abandonadas e degradadas, ficando estabelecido por decreto-lei que a Empresa de Desenvolvimento Mineiro (EDM, uma entidade pública) ficaria encarregada da sua reabilitação. Apenas 50 delas foram recuperadas até hoje.
Guerra de palavras
A antiga exploração de volfrâmio do Cabeço do Pião, perto da serra da Argemela e das minas da Panasqueira, é um dos vestígios mais preocupantes, As suas escombreiras apontam directamente para o rio Zêzere, cujas águas correm para abastecer a região de Lisboa. Uma derrocada, temida há vários anos, poria em risco a saúde de um número incalculável de pessoas. “Aquilo que vemos no Cabeço do Pião e na Barroca Grande é o impacto de um século de mineração em galeria subterrânea. O impacto de uma escombreira de uma mina a céu aberto é o triplo do que ali está. No caso da Argemela, temos já projectada a implementação de três escombreiras”, diz Maria do Carmo Mendes, da associação Guardiões da Serra da Estrela. “A empresa diz que vai aplicar o conceito de green mining para a mina da Argemela, alegando que será sustentável e que haverá uma recuperação das bancadas no desenrolar da escavação. Mas eu exorto as pessoas a visitarem o Cabeço do Pião para perceberem o real impacto de uma mina e saberem se é isso que querem para a sua região e para o seu país.”
Humberto da Costa Leite, director da empresa que pretende extrair lítio da Argemela, contesta que as novas minas cometam os erros antigos. Para além disso, a UE a subsidia fortemente a renovação de equipamento no sector. “Uma mina a céu aberto tem sempre impacto, mas que não vão existir poeiras, com certeza que não. Que não vai haver contaminação de água não vai haver. São coisas mais que óbvias.”
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Antiga exploração de volfrâmio do Cabeço do Pião, perto da serra da Argemela e das minas da Panasqueira, é um dos vestígios mais preocupantes da exploração mineira em Portugal - as suas escombreiras apontam directamente para o rio Zêzere, cujas águas correm para abastecer a região de Lisboa
João Henriques
Em Montalegre, a Lusorecursos anunciou em 2020 o recurso a ambiciosas práticas ambientais para o seu projecto industrial de extracção e refinação de lítio. “Trabalhamos apenas com parceiros estrangeiros, porque em Portugal não há experiência nesta matéria”, afirma o director, Ricardo Pinheiro. “E o que me choca um bocado nesta contestação é que, de repente, parece que o lítio é radioactivo. O lítio não é radioactivo (…) e estamos na Europa ao abrigo da legislação mais apertada do mundo, pelo que não pode ser aceitável que este projecto seja um crime ambiental.”
Nessa altura, a empresa bracarense anunciou a construção de duas ETAR — uma para o tratamento de águas residuais e outra para o de águas industriais —, a ausência de risco de contaminação dos solos, a reciclagem de 80% da água e um moderno sistema para impedir a disseminação de poeiras. “Também há uma irrigação constante de uma cisterna que é gerida por um software, que conforme a máquina vai passando detecta a poeira que está no ar e faz uma irrigação controlada para não haver desperdício de água em leque, como é habitual”, projectava Pinheiro. No entanto, algo correu mal. Os dois EIA apresentados pela empresa foram devolvidos pela APA e arrasados pelo ministro João Matos Fernandes, que acusou a firma de “falta de profissionalismo”. A Lusorecursos acabou por substituir recentemente a sua equipa de ambiente e entregou em cima do prazo limite a terceira versão do EIA. Aguarda agora novo parecer do regulador.
Na opinião de Francisco Ferreira, líder da Zero, esses pareceres têm de ter em conta a localização das explorações — ele opõe-se a qualquer mina que assente em áreas protegidas ou classificadas ambientalmente. “O Barroso é uma área que está salvaguardada pelas Nações Unidas no quadro da paisagem rural e agrícola. Os impactes parecem-nos claramente demasiado significativos para essa exploração avançar”, defende.
A classificação de Património Agrícola Mundial, conferida pela Food and Agriculture Organization (FAO) das Nações Unidas, recebida e festejada pelo Barroso em 2018, pode ficar ameaçada, caso for concedida a exploração pedida de todas as minas no concelho. “Fomos contactados pela FAO no sentido de confirmarmos algumas informações de que eles dispunham sobre os planos de mineração para o Barroso. Essas informações eram exageradas. No entanto, mostra que estão prontos para reavaliar a classificação do Barroso como património”, diz Fernando Queiroga, presidente da autarquia de Boticas.
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Unidade agrícola em Covas do Barroso, localidade integrada numa área classificada como Património Agrícola Mundial
Tiago Carrasco
Contactada pelo PÚBLICO, a FAO diz estar a recolher informações actualizadas sobre o processo. “Pelo que sabemos, o processo de aprovação da mina na região do Barroso ainda está a desenrolar-se e as autarquias estão envolvidas no processo para darem as suas opiniões. Temos ainda a informação de que, segundo a lei portuguesa, a aprovação da actividade mineira requer o consentimento dos municípios”, diz Yoshihide Endo, secretário do programa Sistemas Importantes de Património Agrícola Mundial (GIAHS), da FAO. Porém, a situação não é exactamente assim: a autarquia de Boticas não tem poder de veto sobre a mina. “A FAO, enquanto organização das Nações Unidas, não pode interferir directamente nas decisões políticas nacionais dos Estados-membros. Está também para lá da capacidade e da autoridade da FAO fazer uma avaliação dos impactes ambientais que a actividade mineira poderá ter. Por conseguinte, não conseguimos antever se a classificação do Barroso está ou não ameaçada pela actividade mineira”, conclui Endo.
O inglês David Archer, da Savannah, acredita que a mina do Barroso não vai ameaçar o estatuto patrimonial. “A FAO não está aqui para encerrar indústrias existentes. Esta indústria existe aqui desde 2006 e isso não foi problema para a atribuição da classificação”, diz. “Pelo contrário, achamos que o desenvolvimento da nossa mina vai ajudar a revitalizar a agricultura e providenciar procura para os subprodutos agrícolas. Somos parte da solução para a manutenção do estilo de vida agrícola.”
A convicção de Archer entra em choque com as conclusões de um estudo realizado pelos norte-americanos Alex Grant, da Jade Cove Partners, e David Deak, da Marbex, e pelo inglês Robert Pell, da Minviro, publicado em Janeiro de 2020, que conclui que a mina do Barroso poderá vir a tornar-se a mina de lítio mais poluente do mundo, com uma emissão de 15 toneladas de CO2 por cada tonelada de hidróxido de lítio produzida, acima dos níveis medidos em explorações no Chile, na Argentina e na Austrália.
O registo não se deve às fontes de energia a usar pela Savannah na extracção do lítio — a empresa vai recorrer à rede comum, e em Portugal 71,6% da energia gerada tem origem em fontes renováveis —, mas essencialmente ao transporte marítimo do concentrado de espodumena para refinação na China e à sua transformação em carbonato ou hidróxido de lítio em fábricas alimentadas a carvão.
Este é um dos grandes dilemas da UE: sem a implantação de refinarias em solo europeu, abastecidas energeticamente por tecnologias neutras em CO2, os veículos eléctricos nunca se aproximarão da neutralidade carbónica ambicionada. E não é previsível que a Europa tenha uma refinaria em actividade antes de 2025. “Isto quer dizer que pelo menos nos próximos três anos, provavelmente mais, a mina do Barroso vai contribuir para o aumento de emissão de dióxido de carbono”, diz Grant. Estes dados vão ao encontro das mais recentes estimativas lançadas pela Roskill, uma referência na análise de matérias-primas: devido ao transporte marítimo e à refinação, as emissões de CO2 na produção de lítio irão triplicar até 2025 e multiplicar-se por seis até 2030. “Cabe aos políticos e responsáveis das empresas encontrarem soluções para inverter a tendência, porque não faz sentido emitir mais carbono, quando o objectivo da UE é não haver libertação de CO2 em 2050”, conclui o co-autor do estudo.
"Dívida de carbono"
As enormes diferenças nas fontes de energia usadas na produção das baterias de lítio do metal até ao carregamento do carro eléctrico — provocam resultados difusos quando se comparam as emissões causadas por um veículo eléctrico àquelas libertadas por um carro a gasóleo ou gasolina. Assim, se a extracção, a refinação e o fabrico de baterias forem abastecidos por energia eólica, por exemplo, os resultados das emissões serão muito inferiores aos obtidos num processo de fabrico alimentado por combustíveis fósseis. Por conseguinte, existem estudos, como o publicado pela Agência Energética da Suécia, que defendem que a produção de um veículo eléctrico liberta tanto CO2 como um carro a gasolina durante oito anos, enquanto outros, como o realizado pela Federação Europeia de Transportes e Ambiente (FETA), concluem que os carros eléctricos pagam a sua “dívida de carbono” após pouco mais de um ano de utilização e economizam mais de 30 toneladas de CO2 durante a sua vida útil em comparação com os equivalentes a gasolina. Ambas são verdadeiros: depende de onde se vai buscar a energia.
Acontece que mesmo as energias renováveis podem não ser completamente amigas do ambiente. A concepção de baterias, painéis solares ou turbinas eólicas acarreta a obtenção de matérias-primas que, não raramente, são cruciais nos ecossistemas em que estão envolvidas – por exemplo, a procura maciça de balsa, uma árvore cuja madeira é usada no fabrico das pás dos geradores eólicos, gerou um drama ambiental e humanitário na selva do Equador. E a cidade chinesa de Baotou tornou-se um caso terrível de desastre ambiental, ao concentrar numerosas fábricas de tratamento de terras raras usadas no fabrico de grandes turbinas eólicas e de painéis solares. Isto para não falar nas sistemáticas violações de direitos humanos cometidos nas minas do Congo para a extracção de cobalto, um componente essencial das baterias do carros e dos telemóveis.
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Francisco Ferreira: “O Barroso é uma área que está salvaguardada pelas Nações Unidas no quadro da paisagem rural e agrícola. Os impactes parecem-nos claramente demasiado significativos para essa exploração [Covas do Barroso] avançar”
Os seres humanos estão assim perante um enorme dilema: perceberam que se tudo continuasse na mesma matariam o planeta, mas desconhecem ainda os efeitos secundários da cura que encontraram. Estima-se que a “revolução verde” que se augura precise de cinco a 20 vezes mais metais do que os consumidos actualmente. Isto, sem contar com os excedentes: para um único quilo de gálio (usado em lâmpadas mais eficientes), é preciso escavar 50 toneladas de rocha. “As energias renováveis estão a falhar e vão falhar drasticamente em todo o mundo, nos próximos anos, até descobrirmos que não há outra solução em termos de alterações climáticas senão depender grandemente da energia nuclear”, vaticina Michael Schellenberger, autor e activista ambiental, ao The Daily Telegraph.
A ciência e a tecnologia apressam-se para apresentar soluções. A reciclagem de baterias surge na dianteira como um recurso indispensável à sustentabilidade da mobilidade eléctrica. Porém, não se tem revelado fácil reaproveitar os metais determinantes. “A longo prazo, até 40% das matérias-primas necessárias como o lítio e o cobalto poderão ser obtidas através da reciclagem de baterias”, diz Kerstin Meyer, do observatório Agora Energiewende, na Alemanha. “Estimamos que, em 2030, cerca de 10% da necessidade de matérias-primas para baterias poderá ser coberta pela reciclagem.” Algumas marcas de automóveis, como a Renault, estão agora a alugar a bateria, em vez de a vender no acto de transacção do automóvel, para depois se poderem encarregar da reciclagem. A Nissan e a Volkswagen já anunciaram a construção de fábricas de reutilização de baterias de lítio.
Outros projectos correm paralelamente: o REMInE, em que a Universidade do Porto está envolvida, pretende aproveitar os resíduos minerais existentes nas pilhas de rejeitados das minas, enquanto estão a ser dados cada vez mais passos no sentido da criação de certificados ecológicos para os produtos minerados. “Há um processo a nível europeu, da Alemanha, em que estão a criar um esquema de certificação consoante a proveniência e os métodos extractivos dos produtos, tal como fizeram com a agricultura biológica”, diz Nik Völker. “E têm um projecto-piloto com a Savannah Resources.” O ICMM promoveu inclusivamente a feitura de um relatório para se entender como a tecnologia blockchain, usada nas criptomoedas, poderia ajudar no lançamento de um certificado green mining.
Enquanto tais possibilidades continuam a parecer distantes, a britânica Savannah propõe uma forma criativa de garantir a transparência da sua exploração no Barroso: uma appem que todos os interessados poderão monitorizar em tempo real, a partir dos seus telemóveis, os índices de qualidade do ar, dos solos e da água. Em Covas quase todos a consideram mais uma manobra “para inglês ver”.
O Norte e o centro de Portugal estão recheados de pedidos de prospecção de lítio – 50, desde 2016. Caso alguns deles avancem, as empresas mineiras prometem usar tecnologias modernas para que a extracção do século XXI cause muito menos estragos no meio ambiente do que os provocados pela indústria no passado. No entanto, subsistem muitas dúvidas sobre a sua eficácia. Minas verdes ou buracos negros? Os dados desta infografia mostram que as minas de hoje não são tão devastadoras como antes, mas que ainda estão longe da sustentabilidade absoluta
Há quem diga que o lítio é o novo ouro. E os últimos tempos estão a dar-lhes razão: fabricantes de automóveis, governos e UE estão a investir milhões no desenvolvimento de baterias para automóveis eléctricos. Portugal ambiciona um lugar de destaque da nova indústria. Porém, para já, só há dois portugueses na vanguarda: um a fabricar baterias e outro a negociar lítio na maior bolsa de valores de metais do mundo, em Londres. Ambos temem que o Governo não esteja a fazer o suficiente.
Tiago Carrasco( texto),
Vítor Martinho(vídeo) e
Nuno Ferreira Santos (Fotografia)
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Em vez de se concentrar na produção de baterias para automóveis eléctricos, sector mais em voga, a MeterBoost optou por se posicionar no segmento da montagem de baterias estacionárias
Nuno Ferreira Santos
Sempre que recebia a factura de electricidade, Sérgio Rodrigues indignava-se. “Como era possível pagar tanto pela energia?”, perguntava-se. Assim que se mudou de Lisboa para Mafra, em 2015, instalou painéis fotovoltaicos na nova casa. Os custos diminuíram significativamente, mas Sérgio não conseguia retirar dos dispositivos a máxima satisfação, pois sabia que em dias de sol intenso eles produziam muito mais energia do que ele podia consumir e as baterias de lítio para armazenar a excedente eram caras. O desperdício apoquentava-o. “Comecei a interessar-me pelo tema e a estudar o mercado das baterias, verifiquei que estavam a ficar cada vez mais acessíveis”, conta este beirão de Proença-a-Nova, de 38 anos. “Concluí que para a mobilidade se tornar eléctrica como se pretende, havia uma grande lacuna de meios para armazenar toda a energia resultante das fontes renováveis.” Foi assim que decidiu avançar para a criação da MeterBoost, que se orgulha de ser a única fabricante portuguesa de baterias de lítio.
Em vez de se concentrar na produção de baterias para automóveis eléctricos, sector mais em voga, Sérgio optou por se posicionar no segmento da montagem de baterias estacionárias, vistas como fundamentais no futuro para guardar os kilowatts gerados pelas turbinas eólicas e painéis solares e que permitirão aos utilizadores abastecerem os seus lares, veículos e aparelhos electrónicos. “Fala-se muito das baterias para os carros eléctricos. Mas não nos podemos esquecer que vai ser preciso carregá-las. A procura está a ser tão grande que, se quisermos carregar os carros, onde vamos buscar a energia? Onde estará disponível?”, questiona. “Diariamente, vamos precisar de uma quantidade enorme para carregamentos. Foi por isso que me concentrei no storage. É a única forma de uma família se tornar 100% auto-suficiente a nível energético e de os planos de transição funcionarem.”
É também um mercado promissor. Segundo uma análise da Market and Markets, citada pela Bloomberg, o segmento das baterias de lítio já vale 34,73 mil milhões de euros e é expectável que cresça 12,3% por ano até atingir os 100 mil milhões em 2030. “Estamos a falar de uma economia com um potencial gigante”, diz o dono da MeterBoost.
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Sérgio Rodrigues: “Estamos a falar de uma economia com um potencial gigante”
Nuno Ferreira Santos
Mas não foi somente o apelo dos cifrões que o impeliu a “atirar-se de cabeça” para um negócio relativamente novo, para o qual não tinha qualquer experiência. Sérgio acredita piamente nas virtudes da electrificação como forma de combater a crise ambiental e as alterações climáticas. E ficou entusiasmado quando o Governo português, repetidamente, anunciou a intenção de criar no país uma indústria de lítio, desde a sua extracção até à produção de baterias. “Queremos posicionar Portugal no centro da cadeia de valor do lítio”, disse o secretário de Estado da Energia, João Galamba, numa vista a Aljustrel, em 2019. “Não queremos apenas que tirem umas pedras do chão e que a cadeia de valor acrescentado deste tipo de indústria vá para fora, nós queremos fazê-la cá dentro”. Sérgio Rodrigues ouviu essa e muitas outras declarações similares. “Claro que, para um empreendedor como eu, a perspectiva de apoio do Estado à criação de um cluster de baterias foi bastante animadora”, confessa.
As coisas não se desenrolaram exactamente como ele esperava. A extracção mineira em Trás-os-Montes, que chegou a estar prevista para 2020, passou a ter resistência da comunidade local e atrasou-se, ao mesmo tempo que o aparecimento de uma unidade industrial para a transformação de lítio em compostos refinados tarda em materializar-se. Também não surgiu qualquer empresa a produzir células para as baterias nem tão pouco uma concorrente na montagem. A MeterBoost, que prometia ser apenas a primeira de muitas companhias a penetrar no sector, teve de continuar o seu percurso orgulhosamente só, com os obstáculos que esse isolamento implica.
“Estamos muito longe da cadeira de valor ter início em Portugal. Não há um prazo para as coisas acontecerem e era bom que ele existisse. Isto é um negócio asiático e estar a fazer isto em Portugal é um desafio”, diz o empresário. Uma vez que a Europa arrancou tarde para o paradigma eléctrico, quase todos os materiais e componentes necessários para a montagem de uma bateria têm de vir da China. “Essa dependência da Ásia é o que mais nos afecta. Primeiro, precisamos de uma liquidez elevada, porque funciona tudo com pagamentos adiantados num mercado que não tem confiança para trabalhar ao ritmo em que o fazemos na Europa. Depois, a dependência logística, porque temos trâmites muito complexos para importar os produtos. Levamos dois a quatro meses até conseguir meter aqui os componentes. Acarreta muitos custos”.
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Linha de montagem da MeterBoost, em Mafra
Nuno Ferreira Santos
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A MeterBoost orgulha-se de ser a única fabricante portuguesa de baterias de lítio
Nuno Ferreira Santos
Aposta no lítio?
Seria tudo muito mais simples e barato para Sérgio Rodrigues se o lítio saísse do subsolo nacional, se fosse transformado em carbonato ou hidróxido numa refinaria próxima, possibilitando até que a empresa investisse no passo seguinte da cadeia de valor: o fabrico de células. Todavia, o auspicioso interesse do Ministério do Ambiente e da Acção Climática (MAAC) na criação desta nova economia deu sinais de esmorecimento com a quebra do preço do lítio no mercado global, levando a que nenhum incentivo chegasse à MeterBoost ou a outro potencial interessado no ramo.
O mais surpreendente foi a omissão do Executivo na candidatura ao Important Project of Common European Interest (IPCEI – “Projecto Importante de Interesse Europeu Comum”) de lítio, que autoriza, desde 2019, subvenções estatais na ordem dos 2,9 mil milhões de euros para “apoiar a pesquisa e inovação na cadeia de valor das baterias” desde a “fase das matérias-primas e sua transformação às células eléctricas”, passando por “sistemas de baterias” e “reciclagem e sustentabilidade”.
O projecto agregou 12 países europeus e 66 empresas, algumas rivais estrangeiras da MeterBoost, e prevê ainda a captação de 9 mil milhões de euros em capital privado. O Governo decidiu ficar à margem. “No momento da candidatura, Portugal não tinha nenhum projecto em condições de ser candidatado”, justificou o Ministro do Ambiente, João Matos Fernandes. Um argumento difícil de entender — a MeterBoost, tal como a Lusorecursos, a Galp e a EDP, são membros da Aliança Europeia de Baterias, uma rede de empresas e entidades com o objectivo comum de implementar um ecossistema de baterias no Velho Continente —, e que causa revolta a Jorge Costa Oliveira, o ex-secretário de Estado para a Internacionalização e também antigo consultor financeiro da Lusorecursos: “O Governo prejudicou fortemente empresas portuguesas na sua competitividade com congéneres europeias ao não ter aderido ao IPCEI do lítio”, sublinha, ao PÚBLICO. “Uma empresa pequena como a MeterBoost vê-se assim privada de aceder a apoios de muitos milhões de euros, ao passo que companhias poderosas como a Tesla, na Alemanha, vão receber centenas de milhões resultantes deste IPCEI. É um erro grosseiro para quem andou a promover a indústria de baterias durante tanto tempo”.
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Seria tudo muito mais simples e barato para Sérgio Rodrigues se o lítio saísse do subsolo nacional
Nuno Ferreira Santos
Em entrevista ao PÚBLICO, este mês, o ministro João Matos Fernandes voltou a assegurar que não havia em Portugal projectos suficientemente robustos para participar no programa europeu, mas apontou baterias à entrada de projectos numa segunda janela de oportunidade: “Nós estamos em stand-by nesse grupo do IPCEI e havendo uma segunda chamada, que é bastante provável, e havendo projectos mais maduros do que na antes, certamente participaremos”.
Um sector e a sua infância
Com a região do Barroso em pé de guerra contra as minas, a estratégia do MAAC concentrou-se mais no hidrogénio verde: celebrou um memorando de entendimento com o Banco Europeu de Investimento e progrediu na candidatura ao IPCEI, prevendo alocar no sector cerca de 7 mil milhões de euros (4 a 4,5 mil milhões no grande projecto para uma central de hidrogénio em Sines). “Desconheço a razão de o Governo ter desistido do IPCEI do lítio”, diz Sérgio Rodrigues. “Provavelmente, pela questão do hidrogénio, que tem tido uma aposta política mais determinada no último ano”. O empreendedor não esconde a frustração. “O Estado deve participar mais activamente nos projectos. Deve promover esses projectos, encontrar financiamentos públicos ou privados. Tem de dar apoios e dar a cara pelo melhor que se faz em Portugal, com toda a força necessária para não virarmos um país subsidiário em questões energéticas.”
Na mesma linha de raciocínio, Martim Facada, um dos raros corretores de lítio no mundo que negoceia sobretudo em Londres, acredita que Portugal só tem hipótese de se tornar numa peça importante desta indústria se seguir o exemplo da China, onde o poder central distribuiu incentivos aos privados para iniciarem a corrida ao “petróleo branco”. “Em três anos, a China deixou de ser só consumidora e transformou-se no maior produtor de químicos de lítio a nível global. Porquê? Porque as empresas passaram a ter acesso a crédito barato. Coisa que não vejo na Europa”, diz ao PÚBLICO. “O lítio existe em diversos países e Portugal, tendo várias oportunidades de desenvolver o mercado de lítio, tem boas possibilidades de vingar. Mas existe vontade política? Eu acho que a nível europeu, e Portugal não foge à regra, existe vontade de legislar, de dar apoios tímidos, mas ainda não vi vontade política de desenvolver nada”.
Martim Facada é a personificação de um sector que vive a sua infância: tem 31 anos, foi o primeiro corretor de lítio no mercado global e o primeiro a fazer uma transacção deste metal em bolsa. Nasceu em Lisboa, cresceu em Espanha e após concluir o mestrado no King's College, em Londres, integrou como analista de metais as fileiras da Asian Metal, empresa em que teve o seu primeiro contacto com o mercado de matérias-primas e metais, entre eles, o lítio. Viajou bastante. Teve a oportunidade de conhecer as salmouras do Chile, os grandes depósitos dos lagos salgados da Bolívia — onde testemunhou o conflito entre os que pretendem a nacionalização do recurso e os que defendem o investimento privado, atrasando o arranque da exploração — e é provavelmente o único português a ter entrado nas refinarias e nas fábricas de baterias chinesas.
Facada recorda-se do impacto que lhe causou a austeridade da construção, a forte segurança em torno das unidades industriais e o imbatível ritmo de trabalho dos operários, que até passavam os momentos de repouso nas instalações. “Entrei no escritório de uma grande empresa e deparei-me com as luzes apagadas, as persianas corridas e com os trabalhadores a dormir em cima das mesas. Disseram-me que era habitual todos dormirem na empresa depois de almoço”, conta.
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Martim Facada, o primeiro corretor do mundo especializado em lítio e o primeiro a transaccionar este metal na bolsa de metais de Londres
Nuno Ferreira Santos
Como só recentemente o lítio passou a ser cotado na London Metal Exchange (LME) — a maior bolsa de valores de metais do mundo —, o dia-a-dia de Martim é bastante diferente do de um corretor de cobre ou ferro. “É atípico porque não tenho a facilidade de contar com um mercado versátil de lítio que me permite, quando acordo, aceder a todas as informações e, a partir daí, começar as minhas negociações ou ter inclusivamente produtores e vendedores a telefonarem-me com ofertas. Nos primeiros tempos, era eu atrás das empresas a propor negócios. Hoje, é mais ao contrário. Temos muitas propostas diárias, das quais tentamos concretizar o máximo possível, mas não temos a elasticidade, a liquidez, que têm por exemplo os corretores de petróleo, porque não temos o mesmo volume neste mercado novo”, afirma. “Mas daqui a cinco anos vai ser diferente.”
Confiança para desamarrar
O financeiro português fala com a confiança de quem viu o lítio disparar em meia década, de um recurso usado na cerâmica e em lubrificantes para o metal essencial para a almejada descarbonização. Hoje, no SCB Group, trabalha com todos os protagonistas da cadeia de valor, desde as mineiras da América do Sul, da Austrália e da China, até aos consumidores no Japão, nos EUA ou na Europa. “As empresas falam connosco assiduamente para perceberem a nossa visão, saberem o que podem fazer em relação aos contratos de lítio, pelo que os produtores de baterias e de carros recorrem bastante a nós”, diz Martim. “Mas também os governos: o do Chile, da Argentina, da Austrália, da China, os diversos executivos que estão a ter iniciativas de produção de carros ou baterias, mas também o alemão, o inglês e todos aqueles que se estão a começar a envolver.” Por conseguinte, Martim é actualmente uma das pessoas que mais sabe de lítio no mundo.
Este corretor consegue antecipar que todos os projectos de mineração que estão hoje em suspenso se vão desamarrar quando as empresas mineiras de elite atingirem a confiança necessária nas margens de lucro de um mercado que, por agora, ainda é um peso-pluma no universo das matérias-primas. “As empresas que têm estado envolvidas no lítio são os produtores que há 10 ou 20 anos já produziam lítios para outros sectores. Nos últimos cinco anos, têm aparecido novas firmas. Na Austrália, os poderosos produtores de minério de ferro começam a demonstrar interesse no lítio e há empresas chinesas a entrar no mercado, embora continuemos a achar que existe uma reacção muito tímida ao investimento mineiro no lítio e no cobalto”, diz o corretor. “Os grandes investidores ainda olham com muitas incertezas para este mercado e continuarão a olhar até isto ser uma realidade, e por isso ainda não vimos uma grande empresa mineira a entrar no espaço”.
A gigante Rio Tinto, por exemplo, tem os direitos sobre uma das maiores reservas europeias de lítio, na Sérvia, mas continua a não avançar para a sua remoção.
O principal motivo é a constante flutuação do preço. A emergência das baterias espoletou um pico de procura em 2015 e o preço do metal subiu cerca de 300% em menos de dois anos (ver caixa). Isso fez com que novos produtores fossem a jogo, mas muitos deles colidiram com a realidade: a mudança para os carros eléctricos não foi tão rápida como se esperava, a China desacelerou nos incentivos e o sector ainda estava demasiado tenro.
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A euforia resultou num excesso de oferta e, consequentemente, o valor do lítio com grau de bateria abrandou, a partir de 2018, até atingir mínimos de 5500 euros por tonelada, em finais de 2020. Algumas empresas novatas desapareceram do mapa e mesmo companhias estabelecidas passaram por dificuldades. Como os ganhos deixaram de ser tão atractivos, centenas de projectos de minas, refinarias e fábricas de baterias que estavam prontos a arrancar ficaram em espera devido à falta de investidores.
Até que, no início de 2021 a curva voltou a subir: “Estamos a chegar a um momento em que a produção e a procura estão a ficar mais ou menos a par, conferindo estabilidade ao preço”, analisa Martim. “E a partir de agora? O que sabemos com toda a certeza é que os planos das marcas de carros e dos governos a nível global passam pela adopção de baterias. Os dados indicam que vamos precisar dez vezes mais lítio do que aquele que é hoje produzido para enfrentar a próxima década”. Todavia, a travagem do último biénio pode causar problemas: segundo um estudo do banco suíço UBS, em 2025 a necessidade de lítio poderá exceder a oferta existente, provocando uma enorme inflação do preço do metal. Segundo os analistas, a derrocada só pode ser evitada se o preço do carbonato de lítio aumentar cerca de 20%, de forma a incentivar o investimento em novas minas (ver caixa).
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Ilusões
“Nem pensem que existem matérias-primas actualmente em produção suficientes para começar a substituir milhões de carros a gasolina por veículos eléctricos”, realçou ao New York Times Lewis Black, director da Almonty Industries, uma mineira que explora volfrâmio em Portugal e na Coreia do Sul.
Ciente do advento das baterias, a LME lançou o lítio na bolsa de valores no dia 19 de Julho, com o objectivo de acabar com a irregularidade do preço e transmitir confiança aos agentes. A base é o estabelecimento de um preço de referência, determinado pela agência Fastmarkets, que vai melhorar a gestão de risco nas transacções. “Não temos ilusões de ter resultados imediatos porque apesar de estar a crescer rapidamente, o mercado de lítio ainda é muito pequeno comparado com o de outros metais”, diz Robin Martin, director de desenvolvimento de mercado da LME. “Mas esperamos que o mercado se torne mais transparente e menos volátil, correspondendo aos pedidos da indústria automóvel para que o preço se torne mais estável, pois as suas margens de lucro por unidade são curtas e as baterias representam uma fatia determinante dos custos de fabrico. Também vai diminuir a exposição ao risco de bancos e outros investidores para apostarem em minas concessionadas por pequenas empresas”.
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A subida do preço do lítio nos últimos meses é especialmente favorável à Savannah, empresa que se encontra nos trâmites finais de licenciamento ambiental para explorar aquele metal em Covas do Barroso, Boticas
Adriano Miranda
A profunda análise que Martin fez às finanças do lítio indicam-lhe que as grandes mineiras acabarão por entrar no sector através da aquisição de empresas mais modestas e que, exacerbada pela pandemia, existe uma vontade vincada em assegurar cadeias de distribuição mais curtas, aproximando as fábricas de baterias e de carros dos locais de extracção e refinação. O analista britânico sublinha ainda que a aguardada construção de dezenas de gigafactories na Europa e os milhões de euros previstos nos programas de vários governos para a dinamização da transição energética também contribuíram decisivamente para a retoma do valor do lítio.
Um momento especialmente favorável à Savannah, empresa que se encontra nos trâmites finais de licenciamento ambiental para explorar o lítio de Covas do Barroso. Já em 2020, David Archer, o director da empresa, antecipava ao PÚBLICO a sua convicção de que a subida do preço do lítio iria combinar com a abertura da mina: “Acho que estamos a chegar ao fundo do ciclo do preço e os accionistas têm vontade de o aumentar nos próximos anos, o que vai coincidir na perfeição com o desenvolvimento da mina do Barroso”. O princípio de acordo que os ingleses tinham estabelecido com a Galp — para a venda de 10% da empresa em troco de cinco milhões de euros — expirou, mas a empresa divulgou em comunicado que tem novos negócios em perspectiva: “O forte mercado deste ano fez com que a empresa venha recebendo um interesse crescente por parte de grupos que procuram realizar investimentos estratégicos no projecto ou na Savannah”. Também a Lusorecursos, concessionária da reserva em Montalegre, diz contar com uma proposta de financiamento de um reputado banco francês.
Tem sido anunciada uma chuva de dinheiro sobre a mobilidade eléctrica (ver caixa). Multiplicam-se as entidades pan-europeias de apoio ao fomento da indústria de baterias, os governos das grandes potências mundiais assinam pactos de compromisso com a descarbonização e com o combate ao aquecimento global e os fabricantes de automóveis, como a Volkswagen, a BMW ou a General Motors, prometem a aplicação de milhões de euros no desenvolvimento de novos modelos eléctricos. Tudo se alinha para a concretização do prognóstico do vice-presidente da Comissão Europeia, Maros Sefcovic: “Acredito honestamente que o lítio possa a vir a ser o novo ouro”. Os ganhos não são, porém, homogéneos em todas as etapas da indústria: a refinação e o fabrico de baterias representam mais-valias muito superiores aquelas obtidas na extracção. Sabendo disso, Matos Fernandes alerta: “Não se pretende exportar lítio que não seja refinado em Portugal”.
Portugal, um peão no xadrez do lítio
Nações e empresas movem as suas peças no tabuleiro da energia para assegurarem o domínio da electrificação dos veículos; o Chile e a Austrália procuram angariar investimento para anexarem refinarias e fábricas de baterias às suas indústrias extractivas; os EUA enveredam por ambiciosos projectos de mineração de lítio para garantir a auto-suficiência da matéria-prima em relação à China; a China usa a sua hegemonia para tentar continuar a regular o mercado; Argentina, Bolívia e Rússia procuram ser potências no futuro; a União Europeia vai apostando em fábricas de baterias e de carros eléctricos na esperança de, por arrasto, completar a cadeia de valor com os segmentos de base da mineração e da transformação.
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Portugal é apenas um peão deste xadrez. Os descrentes nas potencialidades do lítio nacional agarram-se ao facto de o país ter menos de 1% das reservas mundiais para defenderem que não se deve ir a jogo. “O lítio que temos é uma gota no oceano para competir com os países com as maiores reservas de lítio, como a China ou a Austrália”, afirma Nélson Gomes, presidente da associação Unidos em Defesa de Covas do Barroso (UDCB). “Não compensa destruirmos tudo o que temos por tão pouco”.
No entanto, a UE reserva um papel importante para Portugal: afinal, o país conta com 10% do lítio europeu. “Portugal dificilmente poderá concorrer com as grandes minas da Bolívia, da China ou da Austrália”, afirma João Galamba. “É exactamente porque a Europa quer definir parâmetros diferentes daqueles que se praticam na América do Sul, na Ásia ou na Austrália, que a indústria de minas europeia tem espaço para entrar. Porque a partir do momento em que se definir que a matéria-prima tem de ter um limite de emissões e critérios de sustentabilidade ambiental, algumas minas existentes que nos bateriam em preço passariam a ter uma desvantagem competitiva. E das duas, uma. Ou não cumprem e estão fora, ou para cumprirem têm de fazer investimentos e agravam o preço, tornando-as competitivas com as minas europeias”.
Martim Facada percebe a estratégia do Governo mas aconselha o país a não perder mais tempo. “Acho que Portugal pode fazer a diferença na nova Revolução Industrial; na transição dos petróleos para [energias] renováveis e baterias de lítio. Nos próximos 50 ou 100 anos pode ser líder na produção energética. Mas tem de actuar já. Porque se esperar mais cinco ou dez anos vai deixar que outros países, economicamente sãos ou que já produzem carros, tomem vantagem”. O corretor crê que atrás das minas possam vir produtores de baterias e fabricantes de automóveis.
As ambições de Portugal permanecem vivas. No Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), a “bazuca” de fundos da UE para a reabilitação pós-covid-19, o Executivo reservou a segunda maior fatia de capital, 2,8 mil milhões de euros (21% do montante global), à transição climática, estando planeados 1,03 mil milhões de euros para a mobilidade sustentável e 715 milhões para a descarbonização, áreas em que podem assentar projectos na área do lítio. A Tutela insiste, porém, em confiar o desenvolvimento do ramo ao capital privado. “Ao contrário da indústria automóvel, que precisa de muitos subsídios para concorrer com a indústria externa à Europa, não se passa isso nas minas. Não precisamos de subsídios. Precisamos apenas do reconhecimento de que pretendemos fazer a indústria extractiva em Portugal totalmente alinhada com os objectivos ambientais, sociais e laborais europeus”, diz Galamba, que afasta veementemente a participação estatal em qualquer mina ou refinaria.
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Amostra de rocha retirada das serras de Covas do Barroso: “Acho que Portugal pode fazer a diferença na nova Revolução Industrial; na transição dos petróleos para [energias] renováveis e baterias de lítio", diz Martim Facada
Adriano Miranda
A corrida aos milhões comunitários está em fase de candidaturas, mas o MAAC já definiu prioridades. “Há duas áreas essenciais para nós. Uma é a produção de gases renováveis [hidrogénio verde, biogás, biometano, entre outros], sendo que mais do que o financiamento ao projecto de produção, é o financiamento a toda a tecnologia que é necessário desenvolver, como electrolisadores. E a outra tem certamente a ver com a fileira de baterias, que vai desde a extracção do lítio à reciclagem de baterias”, diz ao PÚBLICO o ministro Matos Fernandes. “E não é para financiar investimentos banais. É para aquilo que é diferenciador, quer do ponto de vista da técnica e da tecnologia, quer para completar falhas de mercado”. O Governo diz que, no total, haverá 6 mil milhões de euros para projectos ligados, directa ou indirectamente, à transição energética e à acção climática, de maneira a que o ambiente se torne até 2050 um motor da economia e da criação de emprego.
“Made in Portugal com as letras todas”
Há também uma sinergia cada vez maior entre Portugal e Espanha na investigação de novas tecnologias e soluções para a mobilidade eléctrica. O Instituto Ibérico de Nanotecnologia (INL), pertencente aos dois países, com sede em Braga, está a desenvolver projectos de criação de células de última geração que poderão em breve entrar em fase de testes. Em Moura, no Alentejo, está em construção uma fábrica de baterias estacionárias numa antiga unidade destinada ao fabrico de painéis solares. Há ainda uma aposta conjunta na reciclagem de baterias, beneficiando da forte presença da indústria automóvel na Península Ibérica — uma empresa da Bairrada, a EDM Tech, já reiterou a sua vontade em reciclar baterias numa unidade própria até ao final do ano. O PRR português menciona “um projecto estratégico transfronteiriço” que unirá Portugal e Espanha no desenvolvimento de “uma fileira industrial e de inovação de processos e produtos, completa, que permita o bom aproveitamento — usando técnicas de green mining — para o lítio existente nos dois países”. Esta estratégia prevê ainda a instalação de um complexo de refinação numa zona fronteiriça, porque as principais jazidas de lítio se encontram próximas, em Boticas e em Montalegre, e porque “Portugal possui a capacidade de atrair a tecnologia e as empresas interessadas na sua refinação”. Matos Fernandes confirma o diálogo com os decisores espanhóis.
Visto assim, parece que Portugal está na dianteira da corrida. Contudo, a sensação reinante no meio é que depois de um arranque promissor, o país tem perdido terreno para a concorrência no aproveitamento de oportunidades para criar um universo empresarial eléctrico. Inclusivamente, para Espanha. Quando a Volkswagen anunciou em Maio que pretendia construir uma das suas seis fábricas de baterias no ocidente da Europa, Portugal ficou a saber que iria concorrer com Espanha e França pelo avultado investimento. De Madrid, prontamente, surgiu um anúncio do primeiro-ministro Pedro Sánchez: o primeiro projecto do PRR espanhol (PERTE) seria a constituição de um consórcio público-privado para criar na fábrica da Seat (grupo VW) em Martorell, Barcelona, a primeira fábrica de baterias de carros eléctricos em Espanha, com um investimento previsto de 5 mil milhões de euros. O Governo português remeteu-se ao silêncio.
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Linha de montagem da MeterBoost. "Levamos dois a quatro meses até conseguir meter aqui os componentes", lamenta Sérgio Rodrigues
Nuno Ferreira Santos
Em Julho, a marca alemã anunciou a sua decisão: a fábrica de baterias vai para Espanha. Portugal, que já em 2011 tinha visto a Nissan desistir dos seus planos de instalar em Cacia, Aveiro, uma das primeiras unidades do género, arrisca-se a ser dos poucos países europeus a ficar sem uma das cerca de 30 gigafactories projectadas para a Europa. Isto está a causar uma preocupação no seio da indústria automóvel nacional que nem a recém-formada Associação Portuguesa do Cluster de Baterias (BATPower) consegue tranquilizar. “Não há nenhuma estratégia para o lítio nem para a mobilidade eléctrica”, acusa Jorge Costa Oliveira.
Indiferente à turbulência, Sérgio Rodrigues e os seus 12 funcionários da MeterBoost continuam a trabalhar para um dia serem a “Tesla portuguesa”. Na zona industrial de Venda do Pinheiro, em Mafra, as células são agregadas nas baterias estacionárias que depois partem dali para outras zonas do país, Espanha, Angola, Cabo Verde, República Checa, Polónia e Brasil. Apesar da falta de apoios, o negócio tem crescido: em 2021, estimam vender perto de 3000 unidades, aumentando a facturação para entre dois e três milhões de euros. “Estava à espera que, por esta altura, o cenário fosse diferente, com uma cadeia de valor mais encaminhada. Contava já ter concorrência e não ter de assumir os desafios todos sozinho”, afirma Sérgio. “Temos capacidade de nos tornarmos auto-suficientes energeticamente só com o lítio extraído de uma das minas num período de dez anos. De que estamos à espera? Estão a encerrar-se as centrais a carvão pelo mundo inteiro. Precisamos das renováveis. E Portugal tem lítio, o mineral que o mundo quer ter”. Deseja que todos os componentes das suas baterias sejam produzidos em solo nacional: “Só assim é que vou poder escrever Made in Portugal com as letras todas”.
O que raio se está a passar com o sector do lítio?
Energia — As dores da transição
A Galp encerrou a sua refinaria de combustíveis em Matosinhos e parecia encaminhada para convertê-la numa refinaria de lítio, tão desejada pelo Governo. No entanto, a empresa recuou e o Ministro do Ambiente prefere agora que ela fique no interior transmontano, junto às possíveis minas de lítio. A transição energética não devia deixar ninguém para trás. Mas centenas de trabalhadores da Galp ficaram no desemprego sem soluções à vista.
Tiago Carrasco(texto) e
Vítor Martinho(vídeo)
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Refinaria da Galp de Leça da Palmeira, Matosinhos, cuja laboração terminou em Dezembro do ano passado
Rita França
Não existe uma data definida para a concretização da transição energética. Porém, para Telmo Silva, então supervisor de manutenção da refinaria da Galp em Matosinhos, a notícia dessa passagem chegou da pior maneira às 6h da manhã de 22 de Dezembro de 2020, uma terça-feira já com cheiro a Natal. Naquela noite, excepcionalmente, não tinha desligado o telemóvel e ignorou a primeira chamada. Perante a insistência, atendeu. Era um amigo jornalista com um alerta. “Perguntou-me se eu já tinha visto as notícias que a Galp tinha comunicado à CMVM [Comissão de Mercado de Valores Imobiliários]. Percebi logo que era grave. Entrei no site da Galp e deparei-me com o anúncio da descontinuação da produção da refinaria do Porto”, relata Telmo, 39 anos, há 18 na empresa. Se é certo que não há boa altura para perder o emprego, o abalo torna-se ainda maior quando é recebido à beira da Consoada e com uma filha pequena para criar. “Nada o fazia prever. As reuniões que tínhamos com a administração e as posições públicas da empresa não deixavam antever que o encerramento seria o destino da instalação”.
A empresa nunca comunicou a decisão directamente aos funcionários. Segundo Telmo Silva, que também é dirigente do Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias Transformadoras, Energias e Actividades do Ambiente (Site-Norte), quase todos ficaram a saber pela comunicação social enquanto, internamente, mais não receberam do que um vídeo de um administrador partilhado pelos emails da Galp. Mais: com o despedimento já oficializado, a Galp enviou para casa dos funcionários um cabaz de Natal a desejar boas festas. “Algo que consideramos desumano e desrespeitoso para com os trabalhadores e as suas famílias que já estavam a atravessar um período de grande sofrimento”, reforça Telmo.
Para além dos combustíveis rodoviários e para a aviação, a refinaria que ostenta as suas chaminés de frente para o mar de Leça da Palmeira, no concelho de Matosinhos, era a única a fabricar asfalto para as estradas portuguesas, bem como uma panóplia de produtos derivados desde a parafina até óleos vegetais para a indústria farmacêutica e alimentar. Era também, segundo a associação ambientalista Zero, a nona maior emissora de dióxido de carbono do país. A sua morte estava anunciada, mas foi brutalmente antecipada.
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Segundo Telmo Silva, ex-supervisor de manutenção da refinaria da Galp de Matosinhos, a empresa nunca manifestou aos funcionários a intenção de encerrar a produção naquela unidade
Vítor Martinho
O encerramento, segundo a Comissão de Trabalhadores, pode atirar para o desemprego até 500 funcionários — 140 já receberam a carta, 50 seguir-lhes-ão até ao final do ano e os restantes serão dispensados ao ritmo do desmantelamento —, e afecta mais um milhar que prestava serviços no complexo industrial. Uma rude farpa para Luísa Salgueiro, presidente da Câmara de Matosinhos, que tomou conhecimento do fim da fábrica dois dias antes de Telmo através de um telefonema do ministro do ambiente João Matos Fernandes e que viu assim extinguir-se um dos maiores empregadores do município.
“Tem um forte impacto na coroa metropolitana do Porto, onde se estima que sejam afectados 5000 postos de trabalho, e em várias empresas da região”, diz a autarca ao PÚBLICO. “É difícil de compreender e justificar uma decisão assim abrupta porque há vários processos idênticos a este na Europa, que resultam de opções ambientais com vista à descarbonização da economia, mas não há um processo semelhante na forma súbita como foi tratado”. A autarca do PS lamenta não ter havido um período de adaptação da economia. “Suspendeu a actividade poucos meses antes, para reflexão sobre a estratégia a seguir, e depois rapidamente decidiu que este ano não havia mais actividade na refinaria. Tenho muita dificuldade em perceber esta falta de estratégia da Galp que toma a decisão abruptamente e passados alguns meses continua a não oferecer nenhuma alternativa.”
Uma palavra venenosa
Questionada pelo PÚBLICO, a Galp rejeita ter fechado a refinaria da noite para o dia. “Pelo contrário, foi decidido após uma ponderada avaliação feita ao longo do tempo, com base em três factores: as condições intrínsecas da refinaria de Matosinhos ao nível da sua competitividade; o contexto regulatório da Europa; e as mudanças profundas que estão a ocorrer nos padrões de procura de produtos petrolíferos”, diz fonte oficial da empresa, acrescentando que “a pandemia de covid-19 acabou, em 2020, por acelerar e potenciar a análise em curso, fruto do impacto significativo que teve nas actividades industriais de downstream da Galp”. A companhia decidiu assim centralizar as actividades de refinação no seu complexo industrial de Sines.
Imediatamente, surgiram rumores de que o gigante português da energia pretendia converter o complexo industrial de combustíveis fósseis de Matosinhos numa refinaria de lítio, destinada a transformar o concentrado de lítio nos compostos químicos usados nas baterias eléctricas — carbonato e hidróxido de lítio. “Como a conversão numa outra actividade industrial dispensa a descontaminação dos solos, a Galp tem aqui uma maneira de penetrar no segmento das baterias ao mesmo tempo que poupa centenas de milhões de euros”, afirmava ao PÚBLICO, aquando do encerramento, fonte de uma das empresas mineiras candidatas à exploração do metal mais leve do mundo, que optou pelo anonimato. Por seu lado, Luísa Salgueiro foi expedita a dar parecer negativo: “É considerada uma má solução, uma vez que pela informação de que dispomos o minério existente em Portugal não justifica a instalação de uma refinaria”. “Matosinhos não aprovará nenhuma solução para aqueles terrenos que tenham impactos negativos para a saúde e para o ambiente”, reafirma Salgueiro ao PÚBLICO.
Em ano de eleições autárquicas, a palavra “lítio” tornou-se especialmente venenosa para os candidatos. Salgueiro optou por criar uma comissão de avaliação que chegou a uma proposta de transformar a extinta fábrica num centro tecnológico para a área das novas energias. Mas será sempre a Galp, dona dos terrenos, a decidir. E a empresa tarda em comunicar à autarquia as suas intenções, embora tenha também negado prontamente a sua pretensão de, para já, inaugurar ali uma refinaria de lítio. “O sítio continuará a ser utilizado como hub logístico para garantia de abastecimento do Norte do país e estamos a analisar outras possibilidades em articulação com as autoridades”, responde fonte da Galp. “Foi criado pela empresa um grupo de trabalho que vai estudar a criação de uma plataforma para endereçar os desafios da transição energética em Matosinhos e que integrará quadros da Galp e peritos nacionais e internacionais. As conclusões serão reveladas oportunamente.”
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Susana Salgueiro: "[O encerramento da refinaria] tem um forte impacto na coroa metropolitana do Porto, onde se estima que sejam afectados 5000 postos de trabalho, e em várias empresas da região. (...) É difícil de compreender e justificar uma decisão assim abrupta"
Nelson Garrido
Entretanto, os funcionários especulam sobre o motivo pelo qual a empresa precipitou o encerramento: Telmo Silva crê que os terrenos com frente de mar serão objecto de especulação imobiliária enquanto a Comissão de Trabalhadores chegou a redigir em comunicado que “há um negócio com o Governo em torno do acesso aos fundos comunitários em que a refinaria do Porto aparece como moeda de troca”. Segundo o que o PÚBLICO apurou, a Galp poderá ainda ter de lidar com uma situação legal bicuda: o encerramento da refinaria poderá desencadear um processo de reversão dos terrenos expropriados em 1967 para a sua construção, levando a que centenas de herdeiros dos antigos proprietários possam alegar a desafectação do fim de utilidade pública que esteve na base legal do decreto-lei para reclamar os terrenos de volta.
Nos livros de história de economia, o encerramento da icónica fábrica de Leça vai certamente representar um marco na passagem da energia alimentada por petróleo para aquela abastecida por fontes renováveis. Desconhece-se, porém, qual o papel reservado nessa narrativa para Telmo Silva e para milhares de outras vítimas da transição energética que, sem outras saídas, vêem os seus postos de trabalho destruídos. O dirigente sindical recorda que, ainda em 2019, “a Galp publicou um documento a rejeitar tudo o que estava plasmado no roteiro da neutralidade carbónica, dizendo que as refinarias eram essenciais e tinham lugar na transição energética e que todos os caminhos contrários iam pôr em causa a independência económica e industrial do país”.
Perante estas afirmações, Telmo não esperava o fecho antecipado e contava que a empresa lhe garantisse a formação adequada para preservar o seu emprego na entrada para uma nova era de produção de energia. Não aceita os argumentos ambientais — “na última década investiu-se cerca de 500 milhões de euros para colocar a refinaria na dianteira em termos de eficiência energética e representava somente 1,7% das emissões de carbono nacionais” —, nem os económicos — “contribuía anualmente com 490 milhões de euros para as exportações portuguesas” — que a Galp utilizou para justificar o descomissionamento. Mas este trabalhador não culpa apenas a empresa. “A gestão da transição energética por parte do ministro Matos Fernandes é desastrosa”, acusa. “Ele destrói emprego diariamente e não apresenta soluções. Numa das reuniões que teve connosco disse que já existiam indústrias verdes que permitiam alocar trabalhadores que saíram da refinaria do Porto e logo na altura respondemos-lhe que não se podia basear em powerpoints nem em indústrias que vão surgir daqui a três, cinco ou dez anos. Não! Os projectos já deviam estar implementados antes de destruir este complexo industrial. Isso, sim, é uma transição energética.”
As acusações de ligações perigosas entre Matos Fernandes e a Galp não são de agora – recorde-se que foi o ministro quem anunciou publicamente, e não a empresa, o encerramento da refinaria. A Galp limitou-se a comunicar à CMVM a sua decisão. “Há uma coisa que eu critiquei na Galp, porque há decisões que não se tomam em vésperas de Natal. Mas eu percebo as razões do encerramento da refinaria. Apesar de ter ouvido alguns partidos na Assembleia a dizerem-me que não havia emissões a partir daquela refinaria, eu sou do Porto, fui presidente do Porto de Leixões e sei bem que elas existem”, diz Matos Fernandes ao PÚBLICO. “O caminho que a Galp fez, desde uma companhia de petróleo e gás, como eu conhecia, até ao que é hoje, está muito mais alinhado com aquilo que são as políticas públicas no ramo da energia.”
As costas da moeda?
O ministro defende que a transição energética não é apenas favorável ao ambiente, mas também à economia, uma crença sustentada por um relatório recente da Organização Internacional de Trabalho (OIT), que conclui que a economia verde gerará globalmente 24 milhões de postos de trabalho até 2030, contra apenas seis milhões de empregos perdidos noutros sectores. Em Portugal, espera-se que a transição energética abra terreno para a criação de 100 mil empregos nos próximos anos, mas, para já, com o despedimento previsto de milhares de operários na central de Sines e na refinaria de Matosinhos, a balança ainda não pende marcadamente para esse lado. “São nove mil empregos que já foram criados pelas energias renováveis em Portugal, três mil só no cluster eólico de Viana do Castelo”, sublinha Matos Fernandes. “Tem de haver uma transição justa, temos de saber apoiar os perdedores no imediato desta transição. Mas esta é a grande fonte de riqueza e de emprego qualificado nos próximos tempos. Estão completamente enganados aqueles que ainda acham que o ambiente representa as costas da moeda do crescimento económico”.
Não é segredo que o Ministério do Ambiente gostaria de implementar no país uma indústria de lítio e de baterias eléctricas e que, para tal, conta com a Galp, a empresa melhor capitalizada para avançar com investimento. É público que, já em 2019, a Agência para o Investimento e para o Comércio Externo de Portugal (AICEP) mediou um encontro entre o Executivo e a Northvolt, o fabricante sueco de baterias que pretende rivalizar com a norte-americana Tesla na Europa e que, em finais de 2020, essa aproximação desembocou numa reunião entre os escandinavos e a Galp para o possível desenvolvimento de projectos conjuntos na área das baterias.
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“São nove mil empregos que já foram criados pelas energias renováveis em Portugal, três mil só no cluster eólico de Viana do Castelo”, sublinha Matos Fernandes
Nuno Ferreira Santos
Esta semente parece estar prestes a dar frutos: no dia 2 de Junho, Andy Brown, o gestor inglês que no início do ano substituiu Carlos Gomes da Silva como CEO da Galp, anunciou que a empresa está em conversações avançadas com um fabricante de baterias do norte da Europa (leia-se Northvolt) para criar em Portugal a primeira unidade de processamento de lítio na Europa com capacidade para, pelo menos, 25 quilotoneladas. “A Galp quer estar em todo o processo da cadeia de valor das baterias de lítio. O nosso objectivo não é minerar, mas sim o processamento do lítio”, afirmou Brown, que confirmou ainda manter as negociações com uma empresa mineira do Norte de Portugal (leia-se Savannah, em Covas do Barroso) para compra da matéria-prima.
Até 2025, mais de 10% do investimento da Galp — 800 a 1000 milhões de euros — será direccionado para o hidrogénio verde e para o lítio. “Em toda a Europa não há uma única unidade de processamento de hidróxido de lítio. Isto num continente que terá necessidades de 400 quilotoneladas de lítio. Portugal tem a geologia, os portos de águas profundas, mas também a energia renovável a um custo-eficaz”, justifica Andy Brown. A Northvolt também não nega o namoro: “Portugal tem todas as vantagens: cadeias de abastecimento curtas, fontes de energia renovável e exploração de depósitos nacionais de lítio”, diz. “A Northvolt tem estado em contacto próximo com a AICEP para identificação do potencial nacional para acolher projectos de investimento no âmbito da actividade desenvolvida por esta empresa sueca”, remata a agência para o investimento externo.
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Um relatório recente da Organização Internacional de Trabalho conclui que a economia verde gerará globalmente 24 milhões de postos de trabalho até 2030, contra apenas seis milhões de empregos perdidos noutros sectores. Em cima, instalações da refinaria da Galp de Leça da Palmeira, Matosinhos
Paulo Ricca
A concretização deste investimento seria do agrado do Governo. “Portugal quer uma refinaria” tem sido uma resposta em jeito de slogan frequentemente dada tanto por João Galamba como por Matos Fernandes. A sua possível localização, porém, não tem sido consensual. Até há poucos meses, os governantes da pasta do ambiente sublinhavam a sua preferência por um lugar no litoral, próximo de um porto, com o de Leixões (em Matosinhos) como favorito. Como prova, aliás, o depoimento dado por Galamba ao PÚBLICO em Junho de 2020: “O que o Governo quer é uma refinaria de lítio em Portugal. Ou mais [que uma]. Acreditamos que será melhor que ela exista junto ao mar e aos portos do que no interior do país”. No entanto, o discurso mudou nos últimos meses, coincidentemente após a Galp ter afastado de momento a conversão da sua refinaria numa unidade de processamento de lítio. “É verdade que sim [que preferiam uma refinaria junto a um porto], num momento em que também imaginámos que uma parcela significativa do minério podia ser usada para exportação”, afirmou Matos Fernandes ao PÚBLICO já este mês. “Mas nós não queremos exportar nenhum lítio [em bruto], queremos sim exportar o lítio já transformado em Portugal, os produtos que daí resultam”.
Por conseguinte, o posicionamento geográfico preferido pelo ministro para a refinaria é agora outro: “Cada vez mais estou convencido de que é da maior importância que a refinaria fique o mais perto possível da mina. Se nós tivermos — e tudo parece apontar para que assim seja — quantidade de lítio suficiente para justificar, sem importação, a produção de lítio que depois pode integrar as células das baterias, quanto mais próximo da mina essa refinaria estiver, melhor”. Tendo em conta que, de momento, existem apenas dois projectos de minas em fase de licenciamento — a da Savannah, em Covas do Barroso, e a da Lusorecursos, em Morgade (Montalegre) —, o Governo quer com isto dizer que gostaria que os privados encostassem a unidade metalúrgica à zona do Barroso, onde ambos os projectos se situam. Todavia, por ali o povo e as autarquias não querem ouvir sequer falar de minas de lítio, muito menos de refinarias. Perante a resistência popular nestas duas regiões a tudo o que envolve indústrias ligadas à mineração, terá sido uma bênção para o Executivo saber, no final do ano passado, da disponibilidade de dois concelhos vizinhos para receber a fábrica. “Já há manifestações de interesse e de disponibilidade de dois municípios, Vila Pouca de Aguiar e Ribeira de Pena, para aí terem a refinaria”, sublinha Matos Fernandes. Os dois concelhos apresentaram um dossier conjunto em que mostravam interesse em receber a refinaria na Serra do Alvão, num espaço actualmente ocupado por um grande estaleiro para construir as barragens do Alto Tâmega, entretanto em processo de desmantelamento. Fica a 50 quilómetros de Montalegre e a 30 de Boticas. Contactado pelo PÚBLICO, o município de Ribeira de Pena fez saber que ainda não recebeu uma proposta concreta para a implementação de uma refinaria. De Vila Pouca de Aguiar não chegaram respostas até ao fecho desta edição.
A fatia de leão
Há um significativo pormenor a que o Governo nunca deu grande crédito: um dos projectos contratualizados com o próprio Estado, o da Lusorecursos, já contempla a implementação de uma refinaria. E respeita os actuais requisitos preferenciais da tutela — está perto de uma mina e da fronteira com Espanha. O complexo industrial tem um custo superior a 500 milhões de euros, para o qual o director Ricardo Pinheiro afirma já ter investidores, passando o plano por despachar os produtos refinados através da ferrovia galega para o coração da Europa: “Está previsto a refinaria ter uma capacidade de produção suficiente para receber matéria-prima de outras minas. Até porque é aí que se concentram os maiores ganhos”, diz Pinheiro.
Mas tal não convence Matos Fernandes que, recorde-se, em Abril disse ao jornal Politico que via como “pouco provável” a possibilidade de haver uma mina em Montalegre e que acusou a Lusorecursos de “falta de profissionalismo”. A empresa diz ter sofrido perdas com essa declaração e critica o ministro por se ter substituído à Agência Portuguesa do Ambiente (APA) na avaliação, levantando dúvidas sobre o conluio entre o Executivo e uma entidade pública independente. O certo é que a entrega do Estudo de Impacte Ambiental (EIA) da Lusorecursos tem estado envolto numa enorme confusão: depois de a APA o ter considerado deficitário por duas ocasiões, a empresa entregou a 13 de Agosto, último dia do prazo alargado de que dispunha, um EIA para um projecto que não era o originalmente previsto. O emaranhado burocrático adensou-se.
Assim, não surpreende que chamado à atenção pelo PÚBLICO para a existência de um projecto de refinaria em Portugal, Matos Fernandes tenha respondido secamente: “Pelo que sei, sim, existe”. De nada valeu à empresa instalada em Montalegre ter sido a primeira a chamar a atenção ao Governo para um problema que os governantes acabariam por reconhecer um ano depois: o transporte rodoviário do lítio de Trás-os-Montes até ao litoral ia aumentar drasticamente a pegada carbónica da indústria.
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Ricardo Pinheiro, fundador da Lusorecursos, em Montalegre, numa das áreas concessionadas à empresa bracarense
Adriano Miranda
A empresa liderada por Ricardo Pinheiro também teve a sua oportunidade de negócio com a Galp. Fonte oficial da Lusorecursos afirma que no final do ano passado a companhia foi contactada por um agente a residir na Califórnia que dizia ter um cliente interessado numa reunião: “Estranhamente, só depois desvendou que era a Galp”, refere a mesma fonte. A sociedade mineira afirma ter ficado desapontada por os interlocutores não apresentarem um conhecimento fundado sobre a indústria do lítio. “Eles tinham questões mandatórias. A refinação era para eles, não para nós. E a localização da refinaria no litoral também não era negociável. Recusámos porque para nós o projecto não tem viabilidade económica sem a parte da transformação do lítio”, diz o fundador da Lusorecursos. As grandes empresas que têm abordado as mineiras em Portugal não se têm mostrado interessadas em parcerias na mineração — uma área com muito maior contestação social e menos dividendos —, mas especialmente na refinação e no fabrico de baterias.
As outras duas empresas adiantadas na corrida ao lítio não têm uma agenda tão marcada em relação à metalurgia. A Savannah defende que não vale a pena preocupar-se com a refinação antes de uma mina abrir: o director David Archer gostaria que ela existisse em Portugal, mas está pronto para exportar o lítio em bruto se tal não vier a acontecer. “A mina vai ser desenvolvida independentemente de termos uma refinaria em Portugal ou na Europa”, diz. “A maioria da espodumena no mundo é refinada na China. Se a vendermos as exportações portuguesas vão subir”. Já Humberto da Costa Leite, CEO da Almina (que detém a PANNN), considera fundamental que o lítio da Serra da Argemela seja transformado em Portugal, embora afaste a possibilidade de investir numa fábrica. “Fomos nós quem apresentou pela primeira vez a ideia de se fazer uma refinaria de lítio, em Bruxelas, no Verão de 2018. Achamos que se devia fazer uma fábrica para refinar o lítio e que se devia agregar as minas todas que existam para se produzir aqui o grau de bateria, de forma a fornecer as fábricas na Europa e no mundo”, diz. “Mas uma refinaria custa centenas de milhões de euros. Portanto, uma mina de dimensão média não pode assumir esse investimento. É muito arriscado porque depois tem de ir comprar o concentrado de lítio e ainda não se sabe bem onde.”
No maravilhoso mundo do lítio, tudo é ainda novo e incerto. A única certeza é que o metal vai dominar a mobilidade eléctrica nos próximos 10 a 15 anos, mas a sua aplicação em baterias está em permanente mutação e desenvolvimento. Por isso, as apostas económicas têm necessariamente de ser acompanhadas por investigação tecnológica. “Sabemos bem que o maior valor acrescentado está em duas coisas: primeiro na refinação, segundo, na fabricação de células”, diz o Ministro do Ambiente. “Mais ainda na fabricação de células de nova geração e aí está na vanguarda o INL (Laboratório Ibérico de Nanotecnologia), que sendo português e espanhol, está instalado em Braga”.
Baterias boas em tudo
Entrar no edifício do INL é como ser teletransportado para o futuro: o átrio, branco, desimpedido, redondo, reduz o visitante à dimensão de uma molécula observada ao microscópio, o corredor é metalizado e exibe pequenas janelas quadradas para os laboratórios, algumas delas iluminadas por lâmpadas rubras. Do outro lado, cientistas equipados como astronautas trabalham com tecnologia de escala mínima, próxima do tamanho dos átomos. São as chamadas “salas limpas”, cuja entrada a estranhos é quase sempre vedada. “É preciso ter um controlo brutal de tudo o que entra ali”, avisa Pedro Salomé, 36 anos, líder de investigação do INL na área da optoelectrónica e energia. “O ar passa por filtros de alta eficiência para que cada partícula seja mais pequena do que um cabelo. Controlamos o tamanho e a quantidade do pó, a humidade e a temperatura. Qualquer pó é um Evereste, um planeta, face ao tamanho das coisas que estamos a construir. Usamos esta vestimenta para proteger as salas da nossa pele. Até os óculos são obrigatórios”.
É nestes redutos imaculados que os cientistas do INL estão a preparar as baterias das próximas décadas; desenvolvem os sensores das baterias actuais, de geração 2, procuram tornar as baterias de terceira geração mais recicláveis, mas é o início de investigação aos acumuladores de energia de quarta geração, com utilização prevista dentro de 15 anos, que mais impressiona. As baterias de revestimentos baseadas em estado sólido vão ser revolucionárias: “Vão poder utilizar bastante menos metais raros, como o lítio e o cobalto, podem ter um aumento de segurança se tiverem algumas propriedades de auto-conservação, mas essencialmente o que as define é que vão poder ser parte integrante da estrutura de um carro ou da fachada de um edifício”, diz Pedro Salomé. Ou seja, tudo o que hoje tem um revestimento, poderá no futuro incorporar uma bateria que, consequentemente, se tornará invisível.
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Interior do Laboratório Ibérico de Nanotecnologia, fundado por Portugal e Espanha e com sede em Braga
Paulo Pimenta
Com a extracção de lítio a levantar dilemas ambientais um pouco por todo o mundo, o investigador do INL afirma que a investigação se encaminha para que as baterias se tornem mais recicláveis e precisem de menos lítio para atingir maiores autonomias: “Prevê-se que se consiga que as baterias de iões de lítio aumentem a sua densidade num factor entre cinco a dez, isto é, para termos a mesma autonomia num carro, vamos conseguir usar até 10 vezes menos lítio do que usamos actualmente”, diz Salomé. Além disso, há cada vez mais materiais a serem estudados por laboratórios e universidades dos cinco continentes para integrarem baterias: sódio, zinco, grafeno ou vanádio. O paradigma é o surgimento no mercado de diferentes tipos de baterias adequadas a utilizações específicas. “Se agora temos uma bateria de ião de lítio que é muito boa em várias coisas, mas não é excelente em tudo, vamos assistir a uma polarização em que vamos passar a ter uma bateria excelente para fazer controlo de frequência de rede, uma bateria excelente para um bloco residencial, outra óptima para o sector industrial e em que a bateria de um camião vai ser diferente da de um carro”, antecipa o cientista. “Porém, não vejo um futuro em que o lítio vá ser substituído completamente. Porque as baterias de lítio têm essa vantagem de serem boas em tudo”.
O INL está no epicentro da criação em Portugal de uma indústria dedicada a potenciar a aplicabilidade do lítio nas baterias estacionárias e de veículos eléctricos, pois é a entidade responsável pela formação e intermediação da BATPower – Associação Portuguesa para o Cluster de Baterias, que agrega 39 agentes do sector, desde a investigação até à indústria. “Estou a tentar utilizar o lítio como catalisador de uma indústria revolucionária e mostrar que o cluster está aqui para colocar toda a gente a trabalhar em conjunto, empresas com empresas, institutos de investigação, litoral com o interior, cientistas com economistas”, diz Salomé. “É uma tarefa difícil, mas não impossível. É uma realidade a que não estou habituado, porque os cientistas colaboram mais entre si do que as empresas”.
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Pedro Salomé, 36 anos, líder de investigação do INL na área da optoelectrónica e energia
Paulo Pimenta
O investigador sentiu essa complexidade na pele quando a Galp, 1.º vogal da direcção da BATPower, decidiu em Julho abandonar a candidatura conjunta da associação aos fundos do PRR dedicados à transição energética e mobilidade eléctrica. “Sobre esta proposta, de preparação e apresentação de uma agenda PRR comum a todos os associados ou tendente à integração da sua larga maioria, entendemos que a mesma, apesar de reflectir um louvável esforço de agregação, não é a que melhor serve os fins da associação, sendo promotora duma agenda cuja execução se adivinha impraticável (…) Acresce que existem associados que têm planos de investimento que competem entre si, não sendo expectável nem desejável que os mesmos integrem a mesma agenda (…) Pelos motivos acima expostos, a Galp vem informar que não se apresentará a uma Agenda Comum”, escreveu a empresa num comunicado interno a que o PÚBLICO teve acesso.
A notícia causou desconforto à maioria dos associados: fonte de um deles afirmou que a decisão provocou divisões no seio do Governo. Matos Fernandes desmente: “Se me pergunta se eu acho que numa tecnologia nova vale a pena juntar todos os esforços, a resposta é sim. É também verdade que a Galp se quis pôr ao lado da plataforma. Isso significa o quê? Que vai haver certamente dois projectos a concorrerem para os mesmos dinheiros na componente das alianças inovadores para a indústria, no valor de mil milhões de euros, e eu entendo isso com naturalidade”, afirma. “Foi uma opção que a Galp fez consciente certamente de que vai ter concorrência.”
Um peso insuportável
Com as candidaturas aos fundos do PRR a decorrer, processos de licenciamento ambiental em curso para as minas e o concurso nacional de lítio previsto para o último trimestre de 2021, aguardam-se novidades definidoras no sector até ao final do ano. Entretanto, muitos dos agentes lamentam que as eleições autárquicas de Setembro coloquem em pausa decisões urgentes. Nas povoações em que a exploração mineira se afigura mais premente, os protestos populares intensificam-se.
Na Argemela, o pedido de concessão de exploração está parado na DGEG. Ao contrário do que se chegou a esperar, o projecto da PANNN não se adiantou como os seus congéneres transmontanos e, segundo a direcção-geral, encontra-se “na fase final de definição das cláusulas contratuais”. Vai ter de passar, como as áreas propostas a concurso de lítio, por uma Avaliação de Impacte Ambiental estratégica, prevista para o último trimestre do ano, e só mediante a sua aprovação se poderá celebrar o contrato de exploração. O procedimento obedece já à nova lei das minas. O chefe da PANNN, Humberto da Costa Leite, lamenta os sucessivos atrasos. Já Maria do Carmo Mendes, a professora universitária que encetou a oposição à mina na região, não suspira de alívio: “Não há qualquer motivo para júbilo, antes pelo contrário. Se a Argemela for inscrita nas áreas para concurso público, perderemos todos os direitos de oposição”, afirma.
Em Covas do Barroso, a Savannah continua a aguardar as deliberações das entidades competentes de Portugal e de Espanha relativamente ao seu EIA, mantendo ainda vivas as suas negociações com a Galp com a perspectiva de uma futura parceria. O centro de informação da empresa, no centro da aldeia, foi reaberto em Maio, agora com uma maqueta 3D do projecto de mineração. Mas continua deserto.
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Amostra de rocha retirada do subsolo de Covas do Barroso
Adriano Miranda
Participada foi a acampada de protesto que se realizou naquela povoação entre os dias 14 e 18 de Agosto. Para além dos habituais movimentos anti-lítio portugueses, a manifestação ganhou contornos internacionais: teve a organização dos mexicanos da Organização Zapatista pela Vida, e contou com a participação de activistas de várias coordenadas, desde a Galiza à Colômbia, Alemanha e Dinamarca. Oferecem como alternativa uma proposta de consumo de menos recursos — o fim da ideia de crescimento económico obrigatório; de um carro por cada indivíduo; e da mobilidade constante —, como argumento para travar a indústria mineira. Lembram que em países como a Islândia, Escócia ou Nova Zelândia, os governos comprometeram-se publicamente a dar prioridade ao bem-estar futuro da população e não apenas ao crescimento financeiro. Querem o mesmo para Covas e para Portugal. “Se a população continuar com a mesma resistência e se todos perceberem o que está aqui em causa, dificilmente qualquer empresa conseguirá aqui fazer uma exploração”, disse Nélson Gomes, líder da Unidos em Defesa de Covas do Barroso (UDCB), no arranque de mais uma jornada de protesto.
Em Montalegre, já ninguém sabe o que vai acontecer a seguir. Após a APA ter dito ao PÚBLICO que pretende encerrar o procedimento de avaliação ambiental que tinha aberto para a Lusorecursos — devido ao facto de a empresa ter apresentado documentos que não correspondiam ao projecto inicial —, a companhia mineira poderá ter apenas quatro meses para regularizar o procedimento, sob risco de perder o contrato de concessão. Algo que não assusta o seu director: “Se este projecto não for aprovado, então não há minas em Portugal nos próximos 30 anos”, vaticina, confiante, Ricardo Pinheiro. O resumo não técnico do último EIA apresentado, assinado pela Agri-Pro Ambiente Consultores S.A., deixou de fora elementos do projecto inicial como uma central de biomassa, uma unidade de reciclagem de baterias e uma fábrica de cerâmica para aproveitamento do quartzo e feldspato excedentário. Por isso, a APA considerou que o projecto não é o mesmo: refere-se apenas à mina e à refinaria.
Em Morgade, aldeia adjacente à área de concessão mineira, a luta pela presidência da junta de freguesia nas próximas eleições autárquicas está ao rubro: Orlando Alves, presidente da câmara de Montalegre, sonha com a vitória do seu candidato socialista para calar as críticas do movimento anti-mina estabelecido na povoação, que por sua vez está do lado da lista do candidato apoiado pelo PSD. No meio de tudo isto, a Lusorecursos garantiu para esta temporada o patrocínio das camisolas do clube de futebol CDC Montalegre, da Liga 3, o emblema mais representativo da região. “Foi barato. Uns 20 ou 30 mil euros”, congratula-se fonte da mineira. O dinheiro chegou ainda para que a empresa com o projecto industrial de lítio mais ambicioso da Europa colocasse um autocolante no autocarro do clube e reclames no estádio, ao lado de patrocinadores como o restaurante A Gina, o bastião gastronómico dos montalegrenses no Parque Mayer, em Lisboa. Para Armando Pinto, o líder do movimento anti-lítio Montalegre com Vida (McV), foi uma decepção; adepto do clube, treinador das camadas jovens durante cinco anos, vai ter dificuldade em acompanhar os jogos esta época. “Continuo a ser do Montalegre, adoro o clube da minha terra, mas não vou conseguir olhar para aquelas camisolas”, diz.
Desde que irrompeu do incógnito subsolo do país, o lítio já provocou o boicote local de três eleições, a queda de uma direcção da RTP, investigações criminais por suspeitas de corrupção e de favorecimento, vários processos judiciais, dezenas de manifestações e ameaças de violência. E a febre ainda está no início. Matos Fernandes, porém, olha para trás e não consegue identificar em que momento o mais leve dos metais ganhou um peso insuportável: “Porque é que a palavra lítio se transformou num palavrão? Eu, palavra de honra que não sei. Em que é que uma mina de lítio é diferente de uma mina de feldspato, que há dezenas no país? A resposta é muito simples. Em nada! E porque é que todos acham normal terem uma mina de feldspato junto de si e acham mal uma mina de lítio? Eu, palavra de honra que não sei mesmo responder a essa pergunta. Gostava, mas não sei”.
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Pedro Salomé: “Prevê-se que se consiga que as baterias de iões de lítio aumentem a sua densidade num factor entre cinco a dez, isto é, para termos a mesma autonomia num carro, vamos conseguir usar até 10 vezes menos lítio do que usamos actualmente”
Tiago Carrasco
Óscar Afonso, sócio fundador do Observatório de Economia e Gestão de Fraude, fundamental na denúncia das suspeitas de fraude da EDP na venda de barragens em Trás-os-Montes, tem respostas: “Há muita falta de transparência nos negócios efectuados no ramo da energia”, diz. “E não devia ser assim, porque a energia é um bem crucial para todos os cidadãos, cujos negócios envolvem muito dinheiro. E quanto mais dinheiro está envolvido, mais transparência é exigida”. O ruído da suspeição é insuportável: os populares desconfiam das entidades públicas; as mineiras suspeitam de interesses particulares por trás dos movimentos contra o lítio; os movimentos acusam as mineiras de conluio com o Estado. “Acho que isto nunca aconteceria num país nórdico”, diz Afonso. “Mas aqui não se quer que as coisas se saibam. Porquê? Posso ficar a pensar nas razões... e, às vezes, parece que o Ministério do Ambiente devia preocupar-se com o ambiente, mas está mais voltado para os grandes negócios.”
A transição energética devia significar apenas menos poluição, mais sustentabilidade e oportunidade económica. Mas energia é também poder e dinheiro. E muitos têm ainda presente as dores que a transição para o petróleo causou: corrupção, desastres ambientais e conflitos. Desta vez, o desafio é transitar do petróleo para os metais raros que compõem as baterias de uma forma ambientalmente responsável, socialmente justa e globalmente paritária. Se isso falhar, o petróleo continuará a ser petróleo. Preto ou branco, não importa. Porque o dinheiro não tem cor.
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