“Reformas do mercado de trabalho”: a lei do mais forte?
São nefastas as consequências humanas, sociais e económicas de as relações e condições de trabalho serem deixadas em “roda livre”.
“Reformas do mercado de trabalho”. É o que, mais uma vez, no contexto da terceira avaliação da troika pós “programa de ajustamento” (Janeiro de 2016), o FMI propõe ao governo português. Insistindo também nesse domínio, a Comissão Europeia (CE) veio dizer que “as reformas do mercado de trabalho ficaram aquém do esperado”.
Vindas de quem vêm, estas posições não surpreendem. Mas, atenção, convém que esta linguagem com pendor essencialmente financeiro-mercantil não nos deixe indiferentes pela sua suposta inocuidade. Já sabemos (pelo menos os últimos quatro anos ensinaram-nos muito sobre isso…) o significado de “reformas do mercado de trabalho”: mais precarização das relações e condições de trabalho, mais facilitação de despedimentos, mais bloqueamento da contratação colectiva, mais desvalorização do trabalho, enfim, diminuição ou eliminação de direitos do e no trabalho.
De facto, nos últimos anos, tem sido esse o caminho seguido pelas tais “reformas do mercado de trabalho”, ao, centrando-se em alterações do Direito do Trabalho (designadamente pelo Código do Trabalho e suas revisões de 2004, 2009 e, sobretudo, 2011/2012 e 2013), inverter o sentido da sua evolução desde a sua génese, há mais de um século.
Consequência perversa desta senda de desregulamentação das relações e condições de trabalho, de eliminação ou diminuição de direitos do e no trabalho, tem sido o empobrecimento humano, social e económico e, até, retrocesso civilizacional. Mas, além disso, dessa desregulamentação de direitos do e no trabalho, pela consequente fragilização da condição dos trabalhadores nas relações de trabalho, tão ou mais perversa tem sido a maior desregulação das condições de trabalho, isto é, o aumento do incumprimento da legislação do trabalho.
Na penumbra do que se faz (e não se deveria fazer), não se faz (e dever-se-ia fazer) e se desfaz (e não se deveria desfazer) dentro das empresas (e, mesmo, da administração pública), cresceu nas pessoas a insegurança profissional, económica e social decorrente, não apenas, “cá fora”, do desemprego (com cada vez menor apoio social), dos impostos, do aumento do custo de vida, da dificuldade de satisfação das necessidades essenciais das famílias, mas também, “lá dentro”, nos locais de trabalho, da precariedade e, muito, da crescente desprotecção legal e institucional.
Acentuada pela fragilidade económica e social decorrente dos baixos salários, esta crescente diminuição de direitos no trabalho induz nas pessoas o medo da reivindicação e exercitação dos seus direitos, da denúncia da sua não concretização pelas entidades empregadoras e, por reflexo disso, o enfraquecimento da acção dos sindicatos e dos tribunais e a perda de eficiência e de eficácia do sistema de controlo público (Autoridade para as Condições de Trabalho e outras entidades), fragilizado pelo depauperamento de meios humanos nesta e noutras áreas funcionais.
Por outro lado, associadamente, a difícil situação económica (e também muita falta de informação e de qualificações de gestão) de muitas empresas, é contexto propício à germinação e crescimento de modelos (e sobretudo práticas) de gestão assentes na premissa da falta de cumprimento da legislação do trabalho (mesmo “flexibilizada”, “reformada”) como instrumento de “competitividade” (ou de sobrevivência empresarial), à custa, inclusive, da concorrência empresarial desleal por dumping social.
E, contudo, as “reformas do mercado de trabalho” para as quais, do “exterior” (e do interior), continuadamente nos empurram com argumentos económicos e (sobretudo) financeiros, não se têm concretizado afinal nesses argumentos, no crescimento económico e em mais (e sobretudo em melhor) emprego. Bem pelo contrário.
Sobretudo, não têm sido sinónimo de melhores condições de trabalho, de trabalho digno (decent work), essência da análise e acção da Organização Internacional do Trabalho.
Bem sabemos que, de momento, não existem, conhecidos, quaisquer propósitos governativos para, no sentido sempre proposto pelo FMI e CE, alterar mais uma vez a legislação do trabalho. De qualquer modo, sendo, como é, o trabalho tão central e determinante na vida das pessoas e da sociedade, sob pena de regredirmos humana e socialmente (e, por conseguinte, económica e politicamente), importa reafirmar que urge que seja parado e, mesmo, invertido o sentido deste caminho de desregulamentação de direitos laborais e outros direitos sociais que lhes estão associados.
E essa é também uma das vias para combater a crescente desregulação das condições de trabalho face à inerente regulamentação, na medida em que cria condições para a exercitação de direitos (via mais sustentada e sustentável da sua efectivação generalizada) por parte dos trabalhadores e de aplicação por parte dos empregadores (que, afinal, também deverão ser dos primeiros nisso interessados, pelos prejuízos que aos cumpridores faz a concorrência desleal e ilegal dos incumpridores).
Isto, sem prejuízo da necessidade criação de outras condições, nomeadamente. a divulgação de inerente informação (em que a comunicação social muito mais pode e deve fazer) e, claro, do aumento de eficácia da acção do sistema de controlo público (Autoridade para as Condições de Trabalho e , articuladamente, outras entidades), o que requer, para além de um reforço de meios humanos (sobretudo de inspectores do trabalho e outros técnicos com funções e competências associadas à missão da ACT) e materiais e de adequadas medidas (re)organizacionais e de decisões legislativas de ordem substantiva, processual e administrativa que, justamente, tornando-a mais exequível, confiram a essa função pública mais eficiência e eficácia reguladora.
São nefastas as consequências humanas (designadamente, de afronta à dignidade), sociais e económicas de, face ao confronto leonino (pela cada vez maior subordinação jurídica e de facto, económica, dos trabalhadores) que se desenvolve na “caixa negra” dos locais de trabalho, as relações e condições de trabalho serem deixadas em “roda livre”, o que implica, neste domínio, uma maior atenção (e, sobretudo, acção) social, institucional e política.
Como escreveu há mais de um século Henri Lacordaire, “entre o forte e o fraco, a liberdade escraviza e a lei liberta”.
Inspector do trabalho (aposentado)