Como poderão os portugueses responder ao FMI?
Nunca no valor da ética jornalística a liberdade de opinião pode soçobrar ao calor da responsabilidade.
Em primeiro lugar, talvez seja de levantar a interrogação: tem o provedor do leitor do PÚBLICO legitimidade para meter o bedelho nestes assuntos? É verdade que os leitores já conhecem a minha propensão para abordar nestas crónicas temas gerais que abrangem as práticas do jornalismo, nem sempre redutoramente encarados na estrita visão de problemas atinentes à ética e deontologia manifestas e exigentes a essas práticas. Por outro lado, se eu, habitualmente, tomasse em linha de conta as muitas críticas e contestações que recebo a propósito de artigos de opinião divulgados no PÚBLICO, várias vezes teria de aludir a questões deste tipo. Porém, como sabem os habituais leitores deste espaço, eu, por compromisso assumido desde o princípio, não me intrometo nos artigos de opinião.
Todavia, anteontem, ao reler o terceiro relatório de monitorização pós-programa a Portugal do FMI, aliás com largo destaque na Economia do PÚBLICO (pág.26, 02-04-2016), comecei a pensar se e como podem os portugueses responder, e se têm o direito de responder, ao FMI. Como é óbvio, este relatório pode ser o terceiro ou o enésimo e não faz mais do que repetir milhentas vezes as mesmas receitas. As críticas são aquelas já tantas vezes feitas e têm a preocupação geral de temer que a economia portuguesa resvale para situações de défice incomportável e, sobretudo, ponha em perigo o pagamento devido aos nossos credores. Provavelmente, não cabe mais aos petrificados peritos do FMI do que fazer este papel. Mas, sinceramente, sempre julguei que uma instituição internacional deste jaez e “repleta” de competências, aliás algumas com processos judiciais que se vão dilatando no tempo, tinha condições para ser mais inventiva e criativa. Mas não, a receita da cartilha da austeridade pura e dura repete-se. “Não há lugar para aumento de salário mínimo, os cortes de salários e pensões não devem ser repostos, pelo menos com esta velocidade que o Governo sustentado pela esquerda está a praticar, e este é que é o grande engulho do senhor Subir Lall.” Coisa insana procurar valer aos mais desprotegidos. O Governo português, através do Ministério da Economia, de alguma maneira, respondeu bem, chamando à atenção para a crónica falta de memória ou comprometedora omissão de o FMI não referir que as ditas metas orçamentais do ano passado não foram cumpridas e “de algumas das deficiências estruturais que o FMI identifica na economia portuguesa não terem sido resolvidas durante o programa de ajustamento”.
É evidente que só uma “cegueira inconsciente” de distorcida visão ideológica ou de recusa à realidade dos números que fazem as nossas contas podem tentar negar a “periclitante instabilidade” da nossa economia e a “grande engenharia” em que foi montado o OE entrado agora em vigor. Mas criar esta consciência nos portugueses, em minha opinião, terá de passar por poderosas acções de marketing e não na continuada e nevrótica sequência de painéis televisivos com que os nossos ecrãs nos vão atemorizando diariamente. Há dias, ouvi um painel na área da economia, com um habitual moderador, jornalista profissional, mas indisfarçável temeroso da situação, com dois convidados. Um reconhecido moderado e preocupado por ter uma leitura do OE completamente destrutiva, arrasadora e exibindo como é seu hábito o tom de uma “pitonisa” que prevê para muito breve o caos, o tsunami da economia portuguesa. E mais me perturbou como o moderador deu mais corda a este comentador e conclui: pois é, brevemente, cá estaremos para o doutor comentar essa desgraça.
Sinceramente, eu penso que os jornalistas têm de praticar a isenção. E muito especialmente aceito que, em especial os economistas com competência e saber para analisar a verdade crua e nua da realidade da economia portuguesa, não criem ilusões. Mas sobrepor o receio do desastre à procura dos caminhos e atitudes que podem contribuir para “travar” ou ultrapassar esta difícil situação sabe a uma certa doentia preconcepção. Nunca no valor da ética jornalística a liberdade de opinião pode soçobrar ao calor da responsabilidade.
Choca-me, por exemplo, na contracorrente que é legitima e necessária fazer à política e sequentes estratégias desta Comissão Europeia ou deste FMI, a imprensa portuguesa ter dado tão pouco destaque à carta dos países Espanha, Itália, Letónia, Lituânia, Luxemburgo (do senhor Juncker), Eslovénia, Eslováquia e Portugal, a pedir uma revisão aos procedimentos como a fórmula do défice estrutural é calculado. (O PÚBLICO dá conta dessa carta em notícia desenvolvida pela sua correspondente em Bruxelas, a jornalista Sílvia Amaro, em edição de 02-04-2016.) Por outro lado, não deixa de ser intrigante o silêncio feito, e porventura quase escondido do défice de 5 e tal por cento sobre o ano findo da nossa vizinha Espanha.
Não levem a mal este meu “lirismo”, mas eu julgo que há algumas atitudes, espontâneas ou organizadas, para fazer frente a esta táctica discursiva dissuasora do FMI e aliás da própria CE que os portugueses poderiam ter como resposta: contrariar este repetido discurso da previsão do desmoronamento da situação económica; solicitar abertamente à comunicação social esse apoio; tomar como compromisso privilegiar, sempre que possível, a aquisição de “produtos” portugueses (made in Portugal); procurar, com algum sacrifício, durante este próximos tempos, fazer férias, viajar, cá dentro, (Portugal tem tanta maravilha por descobrir); apoiar e facilitar as exportações, em especial, daqueles inventores e criadores quase desconhecidos do grande público e das entidades de produtos resultado de inovação e invenção de jovens produtores portugueses; um grupo de grandes e fortes empresas estabelecer uma “bolsa de emprego”, mesmo sem contar com o aval directo do Estado. E, já agora, para esta minha intromissão numa área, porventura, espúria às minhas delineadas competências de provedor, peço que os leitores me escrevam e abram uma frente com sugestões de vários procedimentos para equacionar uma resposta a que temos direito a dar ao FMI.
CORREIO LEITORES/PROVEDOR
Um retorno aos ardinas
Da leitora Ana Poeira recebi esta carta que me parece merecer registo e, porventura, apontar para um voluntariado a favor da imprensa a ser desenvolvido: “Li com atenção o seu artigo acerca da morte anunciada dos jornais em suporte de papel. Creio que, tal como os jornais, existem outros sectores da sociedade, como é o caso da produção artística e mesmo da culinária, que padecem do mesmo mal. Tudo o que antes era mais ‘artesanal’ e sustentado em conceitos como mestre, discípulo, talento, belo, génio, ganha, cada vez mais, contornos de funcional e digital. O fim do artesanal é uma questão também de educação e de tentar incutir esse gosto nos mais jovens e não só. Por exemplo, recentemente ao ver um anúncio no jornal O Setubalense, inscrevi-me para fazer a sua distribuição mediante uma pequena comissão por cada exemplar. Tornei-me assim, ardina, ou paper-girl, numa versão mais carinhosa. Se bem que muitas pessoas, incluindo donos de lojas ou cafés, habitualmente até comprassem o jornal, foi muito curioso ver que algumas pessoas ficavam satisfeitas por receber o exemplar em mãos e pelos minutos de conversa. O entregar, prestar um serviço ou fazer qualquer coisa na vez da outra pessoa é algo que se deve institucionalizar na sociedade portuguesa, talvez demasiado rígida e apegada a estigmas de patrão, empregado, muitíssimo pouco delicada para quem normalmente serve os/as outro/as e pouco dedicada a ensinar. O mandar, como o servir, é uma arte.”