“A estrutura organizativa é um obstáculo à evolução do desporto adaptado”
A mentalidade tem evoluído, o nível de conhecimento também e há interesse dos treinadores no trabalho com atletas portadores de deficiência. O que falta, no entender de Leonor Moniz Pereira, professora catedrática, é uma rede de apoio eficaz.
Há talento, há competência e há comprometimento, mas há uma falha na cadeia de apoio aos praticantes que impede que o desporto adaptado vá mais longe. O diagnóstico é feito por Leonor Moniz Pereira, coordenadora da Pós-Graduação em Desporto Adaptado na Faculdade de Motricidade Humana. Em entrevista ao PÚBLICO, a professora catedrática sublinha a necessidade de uma maior articulação ao nível do ensino para facilitar a identificação de potenciais atletas.
Formar treinadores vocacionados para o desporto adaptado obriga a ajustes significativos no programa curricular? Que requisitos é que devem ter?
Há um padrão formativo genérico, mas com algumas especificidades. É preciso dar mais atenção à análise biomecânica do gesto e a avaliação da fisiologia do exercício tem de ser mais aprofundada, porque o tempo de recuperação dos atletas não é o mesmo e a sobrecarga exercida também varia. Puxar uma cadeira de rodas, por exemplo, é um movimento muito dependente do ombro e do braço, para além do tronco, e o corpo humano não está feito para a tracção feita pelo braço. Isso exige especificidade de conhecimento. Para não haver lesões e haver trabalho continuado, exige mais conhecimento específico.
De que forma é que o plano de treino se adapta às limitações individuais?
Partimos sempre de um padrão de treino, mais geral. Mas depois olhamos para cada atleta e temos de delinear um plano individualizado em função das características de cada um. Aquilo que tenho de saber é como introduzo no treino a assimetria entre o lado esquerdo e direito num atleta com amputação, por exemplo. Se há uma assimetria maior entre os lados esquerdo e direito, tenho de saber como é que ela influencia os exercícios. Tenho de fazer uma análise técnica e isso é mensurável.
E a gestão da fadiga precisa de atenção extra?
O esforço que cada um faz também depende muito da classe [funcional] em que o indivíduo se situa. Mas também depende muito do treino. Um dos grandes objectivos é conseguir incorporar a limitação no planeamento do treino. Quanto mais adaptado, menor será o gasto energético dos atletas. Qual a duração do treino, quantas vezes se treina, tudo deve ser feito em função do nível de desempenho do atleta naquele momento. No fundo, estamos a falar dos grandes princípios do treino, da preparação física, isso não é muito diferente. Depois, claro, há especificidades, em função da classe e do nível de desempenho dos atletas.
Essas especificidades estendem-se à nutrição?
A alimentação e a nutrição também podem variar em função da limitação, como variam de pessoa para pessoa em qualquer circunstância. Uma pessoa que não movimenta bem o tronco, que não respira da mesma forma, tudo isso tem influência, mas em todos os casos é uma questão a ter em conta e com impacto no rendimento.
Para os atletas com deficiência, a adaptação ao equipamento convencional de ginásio muitas vezes não é possível. Como se contorna o problema?
Não é muito possível, porque não estamos em igualdade de circunstâncias nesse sentido. É a mesma coisa que os atletas olímpicos que se treinam nos Centros de Alto Rendimento… Normalmente, quem tem melhor equipamento e apoio tem melhores resultados. Nesse aspecto, estes atletas são mais dependentes do equipamento de ginásio. Aqui, em Portugal, não temos algumas soluções que existem noutros países, como treinar no ginásio numa cadeira de rodas como se estivesse numa passadeira, no mesmo lugar. Esse equipamento existe, mas nós não o temos. E é evidente que isso traz diferenças nos resultados.
No seu entender, qual o primeiro passo que é preciso dar para garantir a evolução do desporto adaptado?
A primeira coisa que é preciso é convencer as pessoas de que todos têm direito ao desporto e que o desporto não é terapia, embora seja um contributo para uma melhor terapia. Mas é mais do que isso, porque tem uma capacidade de gerar autoconfiança que não existe na terapia. Isso leva as pessoas a não desistirem e a atingirem níveis que não se pensava que fossem capazes de atingir.
É um problema de mentalidade, portanto.
A verdade é que a mentalidade tem evoluído ao longo do tempo. A estrutura organizativa é que é um assunto mais complexo, um obstáculo. É muito mais difícil a uma pessoa com deficiência deslocar-se a um ginásio e às instalações de um clube. Onde está a estrutura para tornar isso mais fácil? Ainda não chegámos a esse ponto. É complexo resolver esse prolema. Se, por exemplo, alguém se treinar na cidade de Lisboa e morar na Amadora, como se vai buscar a pessoa ao outro lado para vir treinar?
Mas parece-lhe que prevalece ainda uma abordagem demasiado caritativa?
Já melhorámos muito, como disse, e há que reconhecê-lo. Temos é de ser capazes de olhar cada vez mais para o desporto da forma mais natural possível e perceber que todos os cidadãos devem ter direito ao desporto. É preciso afastar o lado caritativo, mas sem afastar os apoios, porque eles reflectem-se de forma muito directa nas condições de participação e, mais tarde, nos resultados.
A igualdade é um tema recorrente, mas não existe uma certa discriminação no sistema de classificação dos atletas, em particular dos atletas invisuais, para as competições?
O sistema de classificação tenta ser o mais igual possível. De acordo com o conhecimento científico, o melhor que se tem conseguido fazer é o sistema actual, que funciona menos bem nos casos dos cegos e dos atletas com baixa visão. Sabemos pouco sobre a forma como usamos a visão para executar um gesto. E tem-se muita dificuldade em classificar. Não é por acaso que se começou a classificação pelas deficiências motoras. É difícil fazer uma medição para pôr todos os atletas em pé de igualdade. Na verdade, para todos os níveis, eles nunca são 100% iguais, assim como o Francis Obikwelu não é 100% igual aos adversários. É difícil clarificar e, por isso, a classificação tem estado a ser mudada para haver classificação desportiva, para além da clínica. O que é ser igual, neste sentido? Esse é um objecto de grande estudo científico neste momento.
Que interesse é que tem gerado o desporto adaptado junto dos alunos da Faculdade de Motricidade Humana?
Nós não pomos os alunos numa posição de alternativa. Dizemos-lhes que se querem ser treinadores, de futebol, andebol, natação, o que for, têm que saber o que é o desporto adaptado. E depois algumas dessas especificidades são analisadas e trabalhadas com eles. A maioria dos alunos, como não vê isso como alternativa, acha importante fazer esse percurso. Depois pode terminar a pós-graduação com um plano mais dedicado à investigação e ao treino na área adaptada.
Como é feita essa articulação?
Na pós-graduação, têm de trabalhar com pessoas com deficiência. Eles, normalmente, gostam de fazer esse trabalho e estão interessados, mas enfrentam dificuldades porque na escola as pessoas não estão classificadas por classificação desportiva e torna-se difícil sabermos onde estão para formar um grupo. Muitas vezes isso é facilitado pelo trabalho das federações. Falta captar atletas para irem treinar-se por causa dessa dicotomia. No plano individualizado de ensino, não está contemplado, como está nos EUA, um objectivo para a área do desporto. Se tiver de cumprir esse objectivo, é mais fácil identificar e promover qualquer atleta. A escola não consegue fazer essa ligação, isso não está bem articulado. Muitas vezes a escola também tem poucas condições e não tem capacidade de cumprir essa função. Repare, no caso de um aluno paraplégico, há uma data de desportos que não pode fazer e, por isso, não consegue cumprir o mesmo número de horas de prática desportiva. Às vezes, os professores de Educação Física fazem um bom trabalho e até os iniciam no desporto, mas depois é preciso toda uma estrutura, familiar e de apoio, para que possam continuar a praticar.