Uma exposição em Paris para a história de arte comer Amadeo
Na quarta-feira abre no Grand Palais uma exposição que reúne mais de 200 obras do pintor modernista português e que quer apresentá-lo ao público internacional. Para que este o descubra como ele merece ser descoberto. O primeiro-ministro já lá esteve.
É impossível não pensar no que Amadeo de Souza-Cardoso podia ter sido se não tivesse morrido aos 30 anos. “É muito irritante, porque ele está sempre a pensar em novas direcções e morre a desenvolver um trabalho fulgurante”, diz Helena de Freitas, comissária da exposição dedicada ao pintor modernista português (1887-1918), que na quarta-feira abre no Grand Palais, um espaço emblemático de Paris. “É muito irritante pensar no que podia ter sido, mas não vale muito a pena.”
É inevitável que a conversa surja à volta da obra inédita mais badalada desta exposição, que quer devolver Amadeo à cidade de Paris e montar uma estratégia de internacionalização do pintor português, tentando inscrevê-lo na história de arte mundial. Estamos na última sala da exposição em frente da colagem sobre cartão com 15 por 24 centímetros que a família mostrou a Helena de Freitas há não mais de dois anos, depois de a encontrar na famosa casa de Manhufe, um dos sítios míticos na biografia do artista e que ainda está nas mãos dos descendentes de Amadeo de Souza-Cardoso.
Vemos três pernas com meias de senhora sobrepostas, um "S" que identifica as máquinas de costura Singer, a palavra “woman”, material retirado da revista feminina americana McCall’s. É provavelmente um dos seus últimos trabalhos, uma nova pesquisa sobre a relação entre arte e publicidade.
A colagem é mostrada entre as suas pinturas mais conhecidas, as da fase final, que pertencem todas à Fundação Calouste Gulbenkian (à excepção da da colecção Ilídio Pinho), que organiza com o Grand Palais esta exposição, um dos grandes eventos pensados para comemorar os 50 anos da fundação em Paris.
“Retoma o tema do feminino. Percebe-se a sua identidade. Muitas destas pinturas já têm marcas publicitárias. Aqui vê-se a utilização das palavras como símbolos gráficos, que já vinham de trás misturadas com os seus próprios elementos de promoção pessoais.” Se Laurent Salomé, o director artístico do Grand Palais, usa a palavra “pop” para falar deste trabalho no catálogo, Helena de Freitas, que em 2006 organizou uma exposição na Gulbenkian que comparava Amadeo com as vanguardas da sua época, diz que não se pode afirmar que o artista português antecipe a pop art. “Podemos dizer que ele tem momentos de antecipação” e voltamos às novas direcções que Amadeo está sempre a testar. “É certo que ele quer ter uma identidade autoral muito forte. Em Manhufe não podia ver as coisas que os outros andavam a fazer, como aconteceu em Paris.”
Helena de Freitas ainda pensou pôr esta colagem inédita – há mais duas semelhantes que estão em mau estado de conservação, que não foram recuperadas a tempo – ao lado de um trabalho do artista alemão Kurt Schwitters, mas não conseguiu o empréstimo necessário. E cita uma frase de Amadeo para falar desta busca identitária – “eu nem a mim próprio me imito” – ,para falar de um artista muito livre que não queria ser cubista, nem futurista, mas que, paradoxalmente, também dizia ser tudo isso. Helena de Freitas diz que é preciso não nos esquecermos de que estamos a falar de um artista jovem, “que estava a atingir a maturidade quando morreu”.
Uma descoberta
A exposição que a Gulbenkian mostra em Paris é muito diferente da que Lisboa viu em 2006 e ultrapassou os cem mil visitantes. Esta é para falar de Amadeo a quem não o conhece ainda. Não há só uma mensagem, mas muitas: “Que é uma personagem muito complexa. A mensagem é a pluralidade, o sentido experimental.”
A exposição começa, aliás, com a famosa frase “Tenho mais fases do que a lua”, ao lado de um diaporama com várias fotografias do artista em várias poses. Se o título é apenas o nome do pintor, o subtítulo podia ser “um dos segredos mais bem guardados do modernismo”, e é por aí que tem passado o marketing da exposição. Um dos segredos, relativiza a comissária, e não “o segredo”.
Em conversa com os jornalistas no final de uma visita guiada à exposição, Laurent Salomé, o director do Grand Palais, sublinhava a sensação de descoberta: “Esta exposição é um capítulo completamente novo na história de arte”, disse, salientando o “papel essencial” de Amadeo nas vanguardas artísticas antes da Primeira Guerra Mundial, papel “que está completamente esquecido”. E ainda acrescentou: “É um momento raro e uma oportunidade importante” poder mostrar as suas obras.
Como se trata exactamente de mostrar alguém que é desconhecido, a exposição “é muito focada no trabalho de Amadeo”, diz a comissária, estando apenas representados outros artistas internacionais com quem teve relações pessoais, como Brancusi, o casal Delaunay e Modigliani. Entre as mais de 200 obras de Amadeo, há uma dezena de outros artistas. “Na exposição sente-se o espírito de Amadeo com toda a sua complexidade. Ele é capaz de desenvolver experiências diferentes em simultâneo na sua obra.”
Depois da introdução, o visitante descobre logo três das oito pinturas que foram ao Armory Show (1913), em Nova Iorque. Paysage, Le Saut du Lapin e Château Fort, e que pertencem ao Art Institute of Chicago. Se se olhar para o lado esquerdo, está também Avant la Corrida, que além dessa exposição esteve antes em Paris, no X Salão de Outono, em 1921, exactamente no Grand Palais (hoje integra a colecção de arte moderna da Gulbenkian). As quatro pinturas não estavam juntas desde 1987, uma vez que Le Saut du Lapin não foi à grande exposição de Lisboa em 2006.
Thierry de Fages, que tem o blogue cultural Blog de Phaco, está de visita à exposição nesta manhã dedicada à imprensa, antes da inauguração marcada para as 18h30, onde esteve o primeiro-ministro português. É a primeira vez que vê Amadeo, que considera “muito interessante”. Cita semelhanças com Picasso, Delaunay, Modigliani e Braque, e diz que “ele é completamente internacional”. “É raro um artista desconhecido ser exposto no Grand Palais, mas Portugal está actualmente na moda.”
Leonor Oliveira, que trabalhou com Helena de Freitas na exposição, diz que é um ponto de partida para uma circulação internacional da obra de Amadeo. Porque, afirma Helena de Freitas, “a história de arte [mundial] está escrita e o nome de Amadeo não está lá”.
Mas como é que se internacionaliza um artista cuja obra está quase toda em Portugal, principalmente na Fundação Calouste Gulbenkian, e que tem apenas cinco obras em museus estrangeiros? Além do Art Institute of Chicago, há uma obra no Centre Pompidou e outra no Muskegon Museum of Art, também nos Estados Unidos, se falarmos das colecções institucionais. “Essa é uma pergunta delicadíssima. Acho que a viúva, por ter escolhido um museu português, acabou por condicionar a visibilidade do artista”, porque são as instituições internacionais mais conhecidas que acabam por construir e legitimar o discurso da história de arte. “Mas para um artista ser conhecido tem de ser visto. Ele foi, de facto, esquecido e está aqui para ser descoberto. E apesar de os franceses estarem sempre a perguntar quem fez primeiro, isso não me preocupa nada, porque a obra é muito boa e o artista é muito sólido”, diz a comissária.
A história de arte, afirma outro jornalista e crítico de visita à exposição que não quis ser identificado, “é muito impositiva”. “Devemos deixá-lo livre. Ele tirou coisas do cubismo, mas tem uma maneira especial de fazer. Ele ficou muito impressionado pelo futurismo, mas as suas coisas são mais orgânicas. Ele não é um seguidor.”
O facto de ser um desconhecido “talvez seja triste para Amadeo, mas essas são as regras da história de arte”, acrescenta: “É pena que tenha de se validar sempre com o cubismo e o futurismo, porque assim estão a dizer-nos para fechar os olhos quando fazemos a nossa aproximação artística a Amadeo. É refrescante ver alguém que é completamente desconhecido. Mas a família da história de arte vai eventualmente comê-lo e eventualmente nessa altura será um sucesso.”
O filme de Christophe Fonseca Amadeo de Souza-Cardoso: O Último Segredo da Arte Moderna, que passa na quarta-feira na RTP e a 8 de Maio na televisão francesa, pega exactamente na história do pintor que está a ser descoberto para agarrar o público. Há vários especialistas internacionais que entram na narrativa, que o realizador considera “arrebatadora”.
100 mil visitantes
No Grand Palais, uma das últimas exposições, dedicada à pintora da rainha Maria Antonieta, Vigée Le Brun, teve 237 mil visitantes, sendo a primeira retrospectiva dedicada à artista francesa (está agora no Metropolitan, em Nova Iorque). Já uma sobre Picasso teve 393 mil. Para Amadeo, e segundo Sandrine Mahaut, do gabinete de imprensa, são esperados cerca de cem mil visitantes.
O primeiro-ministro, António Costa, que reservou as declarações para o final da inauguração, disse aos jornalistas que se tratava de “uma exposição fantástica”. “É uma grande oportunidade para mostrar mais um grande artista português em França. Neste momento, dá-se o facto de termos aqui várias grandes exposições: uma grande exposição de arquitectura, uma grande exposição de Helena Almeida e agora esta de Amadeo. Demonstram bem, em várias gerações e em épocas diferentes, a criatividade do país.” Isso, continuou António Costa, “é muito importante para valorizar a imagem de Portugal em França”.
O presidente da Gulbenkian, que saiu da inauguração da exposição pouco tempo depois do primeiro-ministro, disse que o investimento para trazer Amadeo a Paris, incluído na operação dos 50 anos, será revelado na devida altura, depois de se fazer contas à bilheteira. Artur Santos Silva, muito “feliz” com o resultado, reconheceu ser responsabilidade da fundação “divulgar a obra deste pintor extraordinário”, uma vez que detém uma parte muito relevante do acervo do artista. Quanto ao futuro da internacionalização de Amadeo, Santos Silva não adiantou mais nenhuma iniciativa, mas lembrou que estiveram dois anos para conseguir trazê-lo a Paris: “E felizmente encontrámos este espaço do Grand Palais.”
O PÚBLICO viajou a convite da Fundação Gulbenkian