Um perfume de filme

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Colin Firth, actor, 50 anos, desafia-nos a esquecer a moda. "Se as pessoas não soubessem a história de Tom Ford, quem é Tom Ford, olhariam para 'A Single Man' e pensariam: 'Que maravilhosa sensibilidade cinematográfica!' Não ligariam aos elementos decorativos. Sim, a roupa é maravilhosa, mas para mim, quando vestia as roupas de George [a personagem que interpreta na estreia na realização de Tom Ford], não pensei que tinham sido desenhadas por um 'designer' de moda. Senti que falavam do desespero de George. É claro e explícito no filme que a personagem veste, entediadamente, uma armadura de que precisa para sair de casa. É para isso que servem os botões de punho e o alfinete de gravata. Se se lhe retirar uma dessas peças, o homem pode desmoronar-se."

O "homem Tom Ford" veste de impecável negro. E assim também a personagem George, professor de Inglês, expatriado em Los Angeles, homem retirado da vida que habita uma perfeição hermeticamente selada na Los Angeles dos anos 60.
"Lá fora" é a Guerra Fria, o medo dos comunistas, e acabou de estrear "Psico", de Hitchcock. E "cá dentro", em casa de George (na realidade, uma das casas com que John Lautner - 1911-1994 - contribuiu para o mapa da experiência arquitectónica que é Los Angeles), este "englishman in LA" faz o luto pela morte do companheiro de 16 anos.
Uma solidão é coisa resistente. Não vacila perante companhias. Pode é tornar-se mais produtiva, caminhando em direcção ao desenlace final, uma espécie de lucidez, se for adubada com outras solidões. É o que se passa com George e com a amiga (na verdade, uma antiga amante...) que partilha com ele essa estufa - no passado, as coisas não correram bem, em termos amorosos, entre as personagens de Colin Firth e de Julianne Moore, o que foi meio caminho andado para o princípio de uma bela amizade.
E assim George prepara o seu suicídio.

O "look"

George e esta estufa de fantasmas são criações do escritor Christopher Isherwood (ver texto nestas páginas). Tom Ford leu "A Single Man" nos anos 80, mas voltou a lê-lo, e ao resto de Isherwood, mais recentemente, num contexto de realização profissional e de necessidade de renovação "espiritual", quando os livros lhe falaram então de outra maneira. Alguém que já dominou o (seu) mundo - a moda - precisava de outros estímulos como quem precisa de nova religião. Eis Tom Ford, 48 anos, e a crise de George.
"Não podia ter feito este filme há 15 anos. Sou um sortudo, porque tive muito sucesso comercial na vida [foi Ford que financiou o filme], mas ganhei isso sacrificando alguma espiritualidade. E redescobri-a quando voltei a ler o livro. George, a personagem, tem uma epifania, percebe tudo o que lhe aconteceu na vida, percebe que não precisa de viver mais. Aprende uma lição - que é o que espero que todos consigamos quando chegarmos ao fim; espero que aprendamos sempre até morrer", diz o realizador que se estreia.
"A moda e o cinema são, para mim, duas formas de expressão completamente diferentes. A moda é uma coisa criativa, mas tem um objectivo comercial. O cinema é pura expressão. O cinema é a coisa mais expressiva e pessoal que já fiz. O sortilégio da moda não dura muito. Quando vemos uma mulher vestida com algo que nunca vimos antes, é inacreditável, mas ao fim de seis meses passa a ser apenas bonito. Eu gosto de personagens, gosto de aprisioná-las em cápsulas que possam durar 500 anos. Reabrir mundos para sentirmos de novo as mesmas emoções vivas... é das experiências mais compensadoras que se podem ter."

Enfrentemos, então, as cores, as sedas, o irremediável bom gosto de "A Single Man", o "look", a casa de Lautner...
"O 'look' tem de vir da personagem. Que tipo de casa é aquela em que George vive? Que tipo de pessoa é? Claro que a casa é belíssima, mas mais importante do que isso serve para nos dar informações sobre a personagem. Los Angeles é uma capital da arquitectura residencial. Achei que a casa tinha de ser de madeira, escura. Teria que representar a atracção da personagem pela liberdade americana, mas ao mesmo tempo uma certa qualidade inglesa, porque George é inglês: daí a madeira escura. O livro é uma espécie de monólogo interior deste homem. Não há uma narrativa. Foi necessário, por isso, encontrar certos dispositivos para o filme" - como desenvolver outras personagens, o que Ford fez durante ano e meio, quando trabalhou sobre o argumento.
"Não sei o que se passa com os outros, mas quando estou deprimido não há cor nenhuma na minha vida. Quando este homem decide que estes são os últimos dias que vai viver neste planeta, começa a olhar para as coisas de maneira diferente. A beleza do mundo, as cores e sons tornam-se intensas no filme, para ajudar o espectador a sentir os sentimentos de George. E é assim que ele acaba como se estivesse a viver em 'technicolor'. O 'look' sem substância é insignificante em termos cinematográficos."

Moda e cinema

E, no entanto, assume que há "semelhanças" entre os dois mundos, o da moda e o do cinema. "É preciso ter uma visão, conseguir trabalhar com um grupo de técnicos para que a nossa visão seja materializada. A moda é muito mais um trabalho de colaboração do que as pessoas supõem, temos de encorajar os nossos colaboradores, dar-lhes liberdade para tirarmos o melhor deles - e simultaneamente conduzi-los em direcção à nossa visão. Trabalhar com uma equipa incrível e actores fantásticos tira-nos um enorme peso de cima. Com Colin, basta colocar a câmara e ele interpreta."

Firth foi a primeira escolha do realizador (com este papel o actor recebeu o prémio de interpretação no Festival de Veneza e nomeação para o "scar), embora a colaboração quase tenha falhado.
"Não há muito mais pessoas que pudessem fazer George, que tivessem a idade certa, que tivessem a subtileza e a emoção que Colin tem", diz Ford. "E Colin é um tipo muito 'sexy', algo que muitas vezes não é muito subtil [nas pessoas]. Felizmente que as nossas agendas se compatibilizaram. Mandei-lhe o argumento, voei para Londres [de LA], convenci-o a aceitar o papel em 24 horas e três semanas depois já estávamos a filmar."

Quanto a Colin, assume que no seu trabalho como actor procurou muito menos em Isherwood (mesmo que "muita da textura do amor entre as personagens possa ser encontrada na relação real entre Isherwood e o seu amante Don Bachardy") do que em Tom Ford. Conta que bastaram "dois dias" de rodagem para perceber "claramente" o que o realizador queria e para sentir a confiança que Ford depositara nele com esta personagem e um filme tão pessoais.

Ajuda a explicar a intensidade deste "huis clos" - mesmo quando o filme se passa em exteriores, é uma Los Angeles subtilmente sugerida, como uma fantasmagoria interior - o facto de a rodagem ter decorrido de forma íntima, durante cinco semanas, trabalhando quase sempre de noite, um mundo isolado do mundo; ainda, a "meticulosidade" de Ford, testemunha o actor, que não se confunde com "o controlo cansativo sobre as coisas", antes cria "espaço para que a imaginação possa florescer, e é isso que é dirigir". (Serve para a "petite histoire" de "A Single Man": a sequência em que George recebe a notícia, ao telefone, da morte do seu companheiro Jim, e onde, não tão subtilmente assim, lhe informam que ele não é desejado no funeral, "foi rodada na noite em que Barack Obama foi eleito [para a presidência americana], por isso não foi o dia mais fácil para estar arrasado pelo luto", brinca Colin.)

Regressando à epifania de George, que é a epifania de Tom. Diz o realizador de "A Single Man" que a sua redescoberta de Isherwood foi uma lição de vida: "Se começamos a vida como água de 'toilette', devemos ter a possibilidade de a acabar como perfume." Que é o mesmo que dizer que não há aqui fantasmas (da moda), há só um cineasta.

Para as citações deste artigo foram usadas declarações entrevista ao Ípsilon (Colin Firth) e conferências de imprensa em Cannes e em Toronto (Tom Ford)

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