Um festival para descobrir uma nova geração (e perceber o que ainda está por fazer)
A “edição-teste” do novo DDD – Dias da Dança continua até sábado. Nos próximos dias haverá nomes como João Fiadeiro e Raimund Hoghe, mas a passadeira vermelha é mesmo para os novos criadores do Porto.
Os primeiros dias do DDD – Dias da Dança confirmam que algo se passou no tecido de artes performativas do Porto durante o último ano e meio. A cidade voltou de facto a trepar no mapa da dança nacional graças à reactivação do Teatro Municipal do Porto (TMP) e à sua programação regular de artistas de dentro e de fora, mas também por causa de novos espaços como a mala voadora.porto e o A22, parceiros do DDD. Uma dinâmica revitalizada que contribuiu para o reencontro semanal, sobretudo no Rivoli, de uma comunidade de espectadores, criadores e agentes culturais, até então mais dispersa – ou mais concentrada em Lisboa.
Essa comunidade andou pelos vários espectáculos da primeira semana do festival, inaugurado na passada quarta-feira e organizado pelo TMP juntamente com Gaia e Matosinhos e uma série de estruturas das três cidades. Há no ar um processo de repatriamento em curso de alguns criadores portuenses, ainda que parcial. É o caso de Dinis Machado, um dos primeiros dos jovens coreógrafos a mostrar-se no DDD, que tem como âncora programática os trabalhos de uma geração mais recente da dança portuguesa, com foco no Porto: estreou um dos projectos mais interessantes da primeira etapa do festival, Paradigma, no Cine-Teatro Constantino Nery, em Matosinhos.
Dinis, 29 anos, continua a viver e a trabalhar entre Estocolmo e o Porto, mas admite que a sua presença por cá tem sido mais assídua. “Tenho vontade de estar no Porto. É um momento de reconstrução de muita coisa e quero participar nisso”, diz. O facto de se ter tornado artista associado do Ballet Contemporâneo do Norte no biénio de 2015/16 faz também com que essa relação esteja mais nutrida. Apesar de já ter um corpo de trabalho consistente, e uma considerável rotação internacional, este foi o seu primeiro trabalho, em dez anos, em que teve “um orçamento a sério”. “É um investimento raro em Portugal entregar um número alargado de co-produções a jovens criadores e confiar neles. Há um certo paternalismo na política curatorial nacional em que não se programa jovens artistas porque se acha que não têm qualidade suficiente.”
Há um lado afectivo e celebratório nestas reuniões e neste festival (e a festa de abertura no sábado, no meeting point instalado na mala voadora, foi de facto intensa), mas existe também um reverso menos cor-de-rosa. Exceptuando as apresentações em espaços exteriores (secção Corpo + Cidade/DDD Out), e apesar de as salas estarem bem compostas, o público que circulou nos primeiros dias do DDD foi, na sua maioria, sempre o mesmo; um público mais próximo do Rivoli. O que revela que o circuito continua fechado, mesmo com a entrada de uma geração mais nova. E que é preciso trabalhar mais na mediação de públicos e em rede, não só dentro da órbita do TMP, demasiado omnipresente.
É também para fazer este tipo de diagnósticos que serve uma “edição-teste” de um festival, considera Nayse Lopez, directora do importante festival Panorama, do Rio de Janeiro, e uma das programadoras internacionais presentes no DDD. “Acho que todas as primeiras edições são testes, tal como foi o Panorama no início [anos 90]. Servirá ao Tiago Guedes [director artístico do TMP e do DDD] e aos colaboradores do festival entender que demandas há nessas comunidades. Fora da programação do TMP, perceber o que se pode fazer neste festival e no resto da cidade.”
Pedagogia
Os pontos mais interessantes e menos óbvios do primeiro DDD, a par da aposta nos jovens artistas, são a vertente de reflexão (encontros como o Diz que Diz e as conferências de Georges Didi-Huberman e Victor I. Stoichita) e o trabalho junto do público escolar. Este último aspecto está em consonância com o investimento sério no serviço educativo levado a cabo no TMP.
Um dos projectos mais pertinentes até ao momento foi mesmo a apresentação, em versão redux, da peça do espanhol Aimar Pérez Galí nas escolas de dança das três cidades e na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Sudando El Discurso: Una Crítica Encuerpada é uma conferência-performance, materializada em livro, sobre a posição de subalternidade do bailarino, e do seu corpo-máquina, no contexto da arte contemporânea, em particular nas artes performativas, papel que é perpetuado pelo sistema de ensino e pelos próprios intérpretes. Segundo Aimar, que por ter sido um aluno demasiado questionador foi convidado a sair do curso logo no primeiro ano, é preciso maior consciência de classe, um “trabalho de emancipação” e uma história da dança menos branca, binária e falocêntrica, “escrita por quem dança e não pela academia”.
Tanto na apresentação completa da peça, sábado no Rivoli, como nas escolas, o coreógrafo parece ter gerado algumas epifanias, confissões e discussões. “A reacção dos alunos foi muito diferente nas várias escolas, mas notei que havia necessidade de falar, de debater”, refere Aimar, cujo próximo trabalho, The Touching Community, parte de uma investigação sobre o impacto da sida nos contextos da dança da América Latina e da Península Ibérica (incluindo Portugal) dos anos 80 e 90.
E depois?
Tentar pôr no mapa nacional e internacional uma geração mais nova da dança portuense foi um dos objectivos-basilares desta edição inaugural, que conta também com nomes fundadores da dança contemporânea portuguesa, como Vera Mantero e João Fiadeiro, e um espectáculo de encerramento do celebrado Raimund Hoghe. Por isso – e porque um festival também é sempre uma operação de charme – foram convidados vários programadores estrangeiros (França, Coreia do Sul, Áustria), que ultrapassam em 50% os nacionais presentes no festival. “Acho que não há muito espírito de prospecção nos programadores nacionais, o que também tem a ver com os orçamentos e o facto de agora se poder ver quase tudo em vídeo, o que não é de todo a mesma coisa”, justifica Tiago Guedes.
“Uma das principais razões que me fez vir do Brasil – e foi um esforço grande, pois tive de trazer o meu filho – foi querer descobrir essa geração mais jovem de criadores”, diz Nayse Lopez, do festival Panorama. O objectivo é partilhado com Eliane Dheygere, do teatro Le Vivat, em França, que elogia “o cruzamento de gerações” do DDD.
Para Joana Castro (n. 1988) e Flávio Rodrigues (n. 1984), que estreiam a sua segunda criação em conjunto, Everlasting, esta terça-feira, às 21h30, no Teatro Campo Alegre, ter programadores internacionais a vê-los “é positivo”, até porque gostavam de “circular com este trabalho”. Mas isso não lhes tira o sono. “Há uma necessidade sufocante de internacionalizar as coisas, de ver isso como um carimbo de qualidade”, nota Flávio. Interrogar as hierarquias da produção cultural é, precisamente, o ponto de partida de Everlasting, uma peça-manifesto que termina com um palco destruído, num processo em que se procura voltar a um território primevo, acompanhado por materiais brutos e pela Sinfonia nº9 From The New World, de Dvorák.
“Fizemos questão de apresentar num espaço institucional porque a peça lida com essa necessidade de ruptura com a instituição e com o lado interpretativo do bailarino”, explica Joana. Reconhece, porém, que não pretendem declarar morte à instituição e que se não fosse ela muito provavelmente esta não seria a primeira vez em que conseguiu pagar a toda a equipa.
“O circuito independente está mais escasso e acho que o TMP está a engolir um bocadinho as coisas”, diz Joana. Soluções intermédias? “Uma plataforma de produção e um espaço de residência que congregue os novos criadores”, sugere Flávio. Para haver mais partilha e evitar que o próprio tecido de jovens criadores se torne num clube restrito e repetitivo. “Eu própria sinto que me fecho em mim e no meu circuito de amigos”, confessa Joana.
Além desta dupla, de Mara Andrade (n. 1987) e de Gonçalo C. Ferreira (n. 1995), outro dos novos a apresentar-se no DDD é André Mendes, 25 anos, coreógrafo e bailarino que se tem destacado sobretudo como intérprete em peças de Victor Hugo Pontes, Joclécio Azevedo ou Mariana Tengner Barros. Hector (sábado, 19h, Auditório Municipal de Gaia) é a parte final de um díptico mitológico, que se segue a Trojan Horse (2015) e que conclui esse acto corajoso de mergulhar a fundo na Ilíada de Homero. Neste solo, com música original de Ghuna X, André Mendes preferiu focar-se em Hector e não em Aquiles, o herói do costume.
“Considero o Hector o ideal de homem e uma personagem muito mais complexa”, diz. A peça – em que os 50 minutos são como se fossem os 50 dias de guerra, numa blackbox despida de artifícios e transformada num ringue – é uma digressão emocional e física na qual o autor opera sobre “as ideias de repetição, insistência e resiliência”, com um corpo que é levado ao limite mas que no final continua de pé, “pronto para o que vier a seguir”.
Um percurso “árduo e de resistência”, mais ou menos como a vida real dos jovens criadores. Contudo, André considera que começa a haver mais abertura. “Já vejo pequenos teatros municipais, como o da Guarda e o de Ovar, a terem algum interesse em programar-nos.” E quanto aos dias que se seguem, espera que o DDD lhe abra outras portas. “Para mim, que até agora só apresentei cá dentro, é muito importante ter programadores internacionais a ver o meu trabalho e trocar opiniões com eles.”