Cyborg Sunday, uma utopia para cinco performers
Dinis Machado imaginou um domingo numa ilha deserta – um futuro que se torna presente já hoje, no Porto.
Não chegou a esta ilha deserta por acaso: convocado para trabalhar, para um projecto do mestrado, sobre a ideia de utopia, o performer e encenador deu por si a questionar “esta espécie de sistema de mercado em que as práticas artísticas acontecem e circulam”. Isto enquanto, a milhares de quilómetros de distância, uma geração de artistas portugueses se via forçada a sair do país e, no seu isolamento, impossibilitada de “reconstruir uma comunidade e de se reconstruir na relação com essa comunidade”. Dinis Machado imaginou então um domingo de Verão e pôs lá dentro pessoas com quem se foi cruzando profissionalmente a fazerem aquilo que já fez ou imagina que seria possível fazer com elas – desse processo resultou um texto que descreve, “ao máximo detalhe”, esse dia vindo de um futuro excepcionalmente radioso.
Foi o primeiro passo para “consubstanciar um espaço que na realidade não existe”. O segundo foi dar-lhe uma forma em palco – uma forma suficientemente elástica para poder adaptar-se a sucessivos elencos e constituir uma utopia tão pessoal quanto colectiva. “Encontrei uma estratégia: ler o texto aos intérpretes mas nunca o facultar fisicamente. O trabalho que dou aos intérpretes em cada workshop é justamente o de reconstituirem o texto a partir dessa primeira audição, como se fosse uma memória fictícia. Dia após dia, eles tentam recuperar essa história que eu lhes contei, salvá-la do esquecimento. Não se trata portanto de decorar um texto, trata-se verdadeiramente de o fazer acontecer.”
Ágata Pinho, Ana Rocha, Cristiana Rocha, Gonçalo C. Ferreira e Gonçalo Valves, a equipa portuguesa de Cyborg Sunday, convocada através do Núcleo de Experimentação Coreográfica, teve então, como antes dela o fez uma equipa de intérpretes internacional, de incorporar esse texto a partir de uma série de parâmetros físicos definidos por Dinis Machado: “Construí práticas que, ao administrarem as relações entre estes cinco corpos presentes em palco, produzem movimento como uma espécie de efeito secundário. Tratou-se de os pôr a sentir e a manipular o corpo, de os tornar conscientes do facto de estarem presentes uns com os outros. E assim uma história que é inefável e invisível passou a ser tangível, quase palpável”, explica o autor de Cyborg Sunday.
No Porto, onde se encaixou no programa de reabertura de um teatro municipal à cidade que durante anos dele se viu privada, o processo adquiriu uma dimensão suplementar: “Senti nos intérpretes que se inscreveram nas audições uma grande curiosidade e uma grande vontade de voltar a fazer coisas, mas ao mesmo tempo o enorme vazio da falta de referências. Acredito que uma cidade esvaziada como o Porto tem dificuldades especiais mas que essas dificuldades só podem ser superadas se se confiar nos seus agentes. E confirmou-se completamente essa minha intuição: uma comunidade fragilizada tem tanta capacidade de criar como os intérpretes privilegiados do centro da Europa”, diz Dinis Machado. Em parte, a sua utopia também é essa: não uma solução definitiva e plenamente afirmada, mas a própria ideia de “negociação entre várias vontades” a partir de “um muito pessoal delírio”, inspirado, entre outras fontes, na reflexão sobre um país visto à distância e nas teses desenvolvidas pelo filósofo francês Jacques Rancière em The State of Things.
Longe deste mundo dominado pelas leis monetárias do capitalismo e pelos protocolos narrativos que essas leis engendram, a ilha deserta de Dinis Machado é o lugar onde um domingo como os outros pode ser dia de festa e de perdição, de solidão e de encontro, de busca pessoal e de comunhão, de sexo sem dilemas da manhã seguinte e de finais canónicos tipo “foram felizes para sempre”. Em suma, a utopia em construção que, no fundo, responde ao pedido do único slogan de Cyborg Sunday: “Quando aqui não é um bom sítio para se estar, pode-se sempre inventar outro.”