"Ernst Spengler estava sozinho no seu sótão, já com a janela aberta, preparado para se atirar quando, subitamente, o telefone tocou. Uma vez, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze, treze, catorze, Ernst atendeu." Foi com este parágrafo inquietante, que Gonçalo M. Tavares iniciou o romance "Jerusalém", um dos seus livros mais premiados. Por ocasião do lançamento da obra, o jovem compositor Vasco Mendonça (n. 1977) ouviu o escritor ler algumas passagens e ficou impressionado. A leitura posterior acentuou o interesse e assim nasceu o desejo de transformar o livro numa ópera. "Achei que 'Jerusalém' tinha um potencial dramático muito grande", contou o compositor ao Ípsilon. "Para a transposição dramática não passam todos os pormenores da narrativa, mas permanecem muitas ideias que inspiram uma caracterização sonora. Por outro lado, atraiu-me o facto de a acção se concentrar numa só noite e a grande densidade das personagens." O libreto resultou de um trabalho conjunto entre o compositor, o escritor e Luís Miguel Cintra, responsável pela encenação. "O conceito do espectáculo e a dramaturgia foram evoluindo em paralelo com a música, a cena e as palavras", sublinha Vasco Mendonça, que já tinha escrito música para várias peças de teatro, entre as quais "Júlio César", de Shakespeare, apresentada no Teatro São Luiz, com encenação e interpretação de LuÍs Miguel Cintra.
Editado em 2004 pelo Círculo de Leitores e em 2005 pela Caminho, "Jerusalém" recebeu os prémios Ler Millenium/BCP (2004), José Saramago (2005) e Portugal Telecom de Literatura (Brasil, 2007) e já deu origem a várias adaptações teatrais. Foi agora convertido em música, numa ópera que hoje se estreia na Culturgest. O elenco é constituído por Alexandra Moura, Inês Madeira, Manuel Brás da Costa, João Rodrigues, Luís Rodrigues e Manuel Ferrer e a componente instrumental está a cargo da Orquestra Metropolitana de Lisboa, sob a direcção de Cesário Costa.
"Jerusalém" mostra-nos pedaços da vida de seis personagens que deambulam pela noite: Mylia, incapaz de dormir por causa das dores resultantes do seu grave estado de saúde; o seu antigo companheiro Ernst, que se preparava para o suicídio antes do telefonema de Mylia; Theodor Busbeck, ex-marido de Mylia, que procura uma prostitura (Hanna); o seu filho Kaas que fica assustado por se ver sozinho em casa e se cruza com Hinnerk, que o assassina brutalmente...
Na concepção do espectáculo, este jogo de existências toma forma através de uma estrutura bastante clara: uma abertura ou introdução orquestral que serve de retrato global; uma primeira parte ("Noite 1") em que as histórias daquela noite começam a desenhar-se em simultâneo; uma zona que pretende revelar o mundo interior e alguns fragmentos de memória das personagens através de árias, duetos, tercetos e coros; e uma conclusão ("Noite 2") que retoma a narrativa.
Jogo de espelhos
Luís Miguel Cintra colocou um grande espelho em cena representando "os diferentes espelhos em que cada um se busca constantemente no romance" - a janela de onde Ernst se quer atirar ou de onde Theodor olha o Mundo, a porta da igreja a que Mylia vai bater - e funciona também como a "imagem-símbolo da esquizofrenia de todos e de cada um." O espelho, escreve o encenador no programa, serve também "para desdobrar as figuras e nos fazer perder a realidade do espaço, criando, com a luz, o espaço sem espaço daquelas acções". Todos os outros elementos do cenário habitam esse mesmo não-lugar: cadeiras, camas brancas de hospital, um banco de jardim e uma cabine telefónica.
As figuras que se vêem desdobradas nesse espelho não brilham na escuridão, antes pelo contrário. "Todas as personagens carregam qualquer coisa de escuro. Funcionam como uma espécie de visão de uma pequena parte da condição humana. Cada uma delas transporta um tipo particular de sofrimento, de história de violência. São figuras em queda", explica Vasco Mendonça. Ao nível da escrita vocal, sobretudo na parte central da ópera em que a narrativa é interrompida e as personagens surgem como "uma procissão de sombras", o compositor quis dar uma impressão sonora particular de cada um. "Por exemplo, no caso da Mylia, as linhas vocais ecoam o seu lado espiritual e etéreo e a assertividade de Theodor traduz-se um bocadinho na escrita orquestral feita de cortes radicais", explica. Nalguns momentos, achou ainda oportuno introduzir uma espécie de oráculo: "As personagens em segundo plano formam um coro que pode ser entendido como a voz do mundo e que acaba por ser uma transformação dramática do que é o narrador no livro."
A paixão pelo texto literário tem sempre acompanhado Vasco Mendonça, Actualmente tem um projecto de doutoramento no King's College de Londres, onde trabalha com o compositor George Benjamin em torno do modo como determinados tipos de texto (dramático, narrativo ou poético) podem influenciar a forma de uma peça musical. Formado pela Escola Superior de Música de Lisboa, Mendonça fez depois estudos de aperfeiçoamento na Holanda com Klaas de Vries e tem tido a sua obra interpretada em vários países europeus.
No plano da linguagem musical "Jerusalém" representa uma continuidade em relação a este percurso, mas o facto de se tratar de uma ópera condicionou a escrita, não tanto pelo peso histórico desta forma de expressão artística mas pela sua natureza teatral. "O mais específico desta peça não é tanto o tipo de material musical e a sua utilização mas o facto de se tratar de uma obra de teatro e música. Não tenho a visão de que é preciso sempre aperfeiçoar qualquer coisa quando criamos. Essa visão unidireccional da história pode ser contraproducente. O que me interessa é encontrar um equilíbrio entre uma abordagem mais sistemática e estruturalista da música e uma certa liberdade. Caso contrário, a música corre o risco de ficar um bocadinho asséptica."