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Ricardo Pais numa manhã de nevoeiro

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Estes pés, diz Ricardo Pais, foram feitos para dançar o fandango.

Não apenas os dele, também os deste país com os pés para a cova, mas sempre a sapatear em cima do cimento debaixo do qual enterrámos em vida os nossos melhores mortos, todos sibilantes, da Castro ao D. Sebastião, do Frei Luís de Sousa ao Pessoa. Como num espectáculo de variedades onde tudo vai nu, artistas e apresentadores, reis e Presidentes da República, a nossa irredutível tristeza é uma imensa alegria.

Desde ontem e até dia 28, no Teatro Nacional S. João (e a seguir do Minho ao Algarve, passando pelo Brasil e pelo Théâtre de la Ville, em Paris), somos ao mesmo tempo fadistas e fandangueiros, cantando e rindo em cima desses mortos-vivos que edificaram Portugal - mas também em cima do património pessoal e colectivo que, desde "Ninguém" e "Saudades: Um Hetero-Cabaret-Erosatírico", experiências fundadoras de 1978, Ricardo Pais foi construindo, e portanto desconstruindo. "Sombras - A nossa Tristeza é uma imensa alegria", o novo "espectáculo de variedades" (sic) do ex-director do S. João (ele próprio um fantasma, pelo menos desta casa), é o último capítulo desta descida aos abismos do modo de ser português que nas mãos de qualquer outra pessoa podia ser só uma operação demolidora, mas que nas mãos de Ricardo Pais também tem um efeito regenerador. E é uma maneira de o encenador ressuscitar os seus fantasmas mais obstinados, revisitando textos que, mesmo depois de resolvidos em montagens anteriores - o "Frei Luís de Sousa" de Garrett relido em "Ninguém" (1978), a "Castro" de António Ferreira (2003), os vários Pessoas de "Turismo Infinito" (2008), e os "Figurantes" de Jacinto Lucas Pires (2004) -, continuaram a falar uns com os outros dentro da sua cabeça, e cruzando-os com a natural reverberação do fado, repetidamente sondado em "Fados" (1994), "Raízes Rurais, Paixões Urbanas" (1997), "Regressos" (2004) e "Cabelo Branco é Saudade" (2005).

Nessa sua ambição de tudo digerir num novo espectáculo, "Sombras" é um "digest" de Ricardo Pais e a porta por onde entram aquisições novas como os fadistas Raquel Tavares e José Manuel Barreto. Mas é, sobretudo, uma festa de família (ver caixas) em que o Mário Laginha que fez a direcção musical de "Raízes Rurais, Paixões Urbanas" encontra, em carne e osso, o Paulo Ribeiro que coreografou várias sequências de "Fados", o Fabio Iaquone que fez os vídeos da "Castro" e de "Um Hamlet a Mais", e o Carlos Piçarra Alves que Ricardo Pais transformou no primeiro actor-clarinetista do país em "Figurantes" - e em que os actores Emília Silvestre, Pedro Almendra e Pedro Frias são assombrados pelos fantasmas dos Natais passados João Reis, António Durães, Albano Jerónimo,  Glicínia Quartin e Teresa Madruga.

Demasiadas vozes, aparentemente (e ainda há os bailarinos Carla Ribeiro, Francisco Rousseau e Mário Franco e os músicos Miguel Amaral, Paulo Faria de Carvalho, Diogo Clemente e o mesmo Mário Franco que há umas linhas atrás era bailarino e agora é contrabaixista). Até abrirem a boca e percebermos que falam todos do mesmo: do amor e da morte, do destino e dos malditos espanhóis, de pela pátria lutar e do desejado que há-de chegar, numa manhã de nevoeiro.
Como se conseguíssemos falar de outra coisa.

Variedades e microfones

"Sombras" é um dos espectáculos mais complexos de Ricardo Pais - um prodígio de engenharia teatral, atendendo à quantidade de elementos e de personalidades em jogo -, mas, diz o encenador, foi montado em tempo-recorde. Talvez por isso ele ainda esteja a tentar perceber que óvni é este: "Parte do seu fascínio está em não conseguirmos rotulá-lo. Mesmo tendo raízes em muitas coisas que fizemos no passado, não é igual a nada. Eu próprio decifro o espectáculo dentro de mim todos os dias", explicou aos jornalistas depois de mais um ensaio. No limite, a verdadeira pátria deste espectáculo de teatro, de fado e de fandango, entre outras variedades, é a língua portuguesa: "Mais importante do que pormos a Raquel Tavares a dizer uma parte do texto da Emília no 'Frei Luís de Sousa' ou na 'Castro' ou o Mário Franco a circular entre o fandango do Paulo Ribeiro e o contrabaixo, é o que cada uma destas pessoas traz à nossa língua".

O trabalho dele, sublinha Ricardo Pais, tem sido esse: fazer reverberar o português, e com ele uma identidade colectiva que textos como os que aqui ecoam escavam até fazer sangue. Porquê voltar a mexer na ferida agora? "Estes textos não precisavam de ser revistos - eles andam aí, mas andam aí como fantasmas nossos, e também como prazeres que temos. São assombrações, atormentam-nos, mas também brincam connosco, entram no jogo".

Para o espectador, em parte o jogo é procurar onde está o Ricardo Pais escondido, mas com o rabo de fora, por trás de cada frase destas "Sombras" - e descobrir que ele está em todo o lado, ainda que o facto de este exercício de auto-citação não seja necessariamente narcísico. "Definitivamente, o que me interessa aqui é o património colectivo; o meu património pessoal não interessa nem ao menino Jesus. Isto é uma maneira de irmos às nossas memórias, mas para perceber se o vocabulário que usámos no passado ainda significa alguma coisa", explica.

Foi surpreendente verificar que sim: que cada peça tem o seu lugar neste puzzle acumulado ao longo dos anos e que agora, à distância, vemos melhor como corpo em construção. Ao ponto de textos sem parentesco conhecido - a "Carta da Corcunda ao Serralheiro", de Fernando Pessoa, os fados de Pedro Homem de Mello, o cancioneiro tradicional da Beira Baixa, as falas sibilantes que Alexandre O'Neill criou para o D. Sebastião de "Ninguém", os poemas de António Botto, as cançonetas de Frederico Valério e de Caetano Veloso, as grandes tiradas da "Castro" e os gerúndios de "Figurantes" - parecerem carne da mesma carne, textos do mesmo texto. "Tem a ver com o meu gosto pessoal por cruzar coisas. Mas são coisas que se cruzam, de facto: às tantas, o amante a quem recusam os gerúndios nos 'Figurantes' parece o amante que preparou a queca do século e nunca a chegou a dar do 'Frei Luís de Sousa'. Tem toda a lógica, mas aconteceu a brincar, na sala de ensaios, de um momento para o outro"

Que essa viagem tanto vá à alta como à baixa cultura também faz parte do método Ricardo Pais, que na verdade nunca quis ser mais do que um "compère" de espectáculo de variedades: "Aos quatro anos, quando o meu pai me perguntou o que é que eu queria, eu disse que queria um microfone". Portugal, acrescenta na entrevista incluída no programa do espectáculo, não passa aliás de um país de apresentadores: "Alguns políticos são verdadeiros 'compères'. Anunciam a entrada desta vedeta e depois daquela, que infalivelmente nunca chegam a horas: os achados económico-sociais, os choques tecnológicos, as fusões, os aviões 'low-cost', etc. São rapazes treinados para estarem ao microfone".

E aqui está ele, Ricardo Pais, de microfone na mão. A anunciar que, entre mortos e feridos, corcundas e trinca-corações, noivas de Viana e engenheiros navais, a nossa história é menos de morte do que de ressurreição.

Embora seja de esperar que também ela não chegue a horas.

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