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Raquel Tavares percebeu que não é só fadista

Oito anos sem gravar, mas a cantar e a viajar muito, levaram Raquel Tavares a testar-se para lá do fado. Raquel, o novo disco, é hoje mostrado ao vivo no CCB.

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Miguel Angelo

Raquel Tavares fez o que já vários outros fadistas das gerações mais recentes fizeram: descobrir-se cantora para lá do fado, mas sem o abandonar. Raquel, disco resultante dessa descoberta, foi produzido a quatro mãos. Ela explica: "Começámos, eu o João Pedro Ruela, que depois desafiou o Tiago Bettencourt e mais tarde o Fred Ferreira. Foi uma escolha muito feliz, para aquilo que tinha em mente. Eu não tinha um conceito, só sabia que não queria um disco de fado tradicional." Porquê? "Nestes oito anos sem gravar cantei muito, em muitos lugares, viajei imenso, apaixonei-me por novas musicalidades, redescobri-me enquanto cantora e intérprete e percebi que não era só uma fadista." Isto sucedeu quando fez o espectáculo Sombras, de Ricardo Pais. "Na altura, aquela encenação foi muito estranha para mim, quando comecei a ensaiar. Porque era tudo muito fora daquilo que eu faria. Mas deixei-me levar, porque era o Ricardo Pais."

Essa experiência, aliada a outras descobertas musicais, empurrou-a para um conceito descoberto a meias com João Pedro Ruela: "Este disco é feito de muita portugalidade, quer do ponto de visto poético quer do ponto de vista musical. É composto por guitarra, viola, baixo e uma percussão muito à maneira portuguesa, os baiões, os viras. É praticamente todo ele escrito e tocado por portugueses, tirando os temas da Mallu Magalhães e do Caetano Veloso [cruzado com outro do Vinicius de Moraes]." O facto de o disco se chamar simplesmente Raquel tem a ver com uma questão de identidade: "Esta sou eu, hoje, Raquel, com 31 anos, com mais algumas certezas do que tinha há oito anos, mais madura, mais mulher, mais viajada, com mais conhecimento e mais ferramentas de trabalho. Sou eu como me chamam os amigos."

Esta sexta-feira, num concerto integrado no ciclo Há Fado no Cais, Raquel apresenta Raquel no Grande Auditório do CCB, em Lisboa, às 21h. Com André Dias (guitarra portuguesa), Bernardo Viana (viola), Daniel Pinto (baixo) e Fred Teixeira (bateria).

Primeiro, o fado

Mesmo assim, o disco abre com um fado: Deste-me um beijo e vivi, criação histórica de Beatriz da Conceição (1939-2015), a quem Raquel, aliás, dedica o disco. "Não deixei de ser fadista. Fiz questão de o gravar, porque é um fado que eu canto há muitos anos, com a devida autorização da dona Beatriz da Conceição, e eu senti — ainda antes de ela ter, infelizmente, partido — que estava na altura de lhe fazer uma homenagem. Já o tinha feito, no Bairro [seu segundo disco, de 2008], quando gravei o Lisboa garrida, que era dela, mas este é um fado que caracteriza a Bia. E é um dos fados de que eu mais gosto, o fado Cravo [de Marceneiro]." A fadista ainda autorizou a gravação, mas já não a ouviu.

O alinhamento do disco, daí em diante, alterna inéditos com clássicos em versões novas. "Em concerto, gosto de criar dinâmicas, emoções nas pessoas. Não sou daquele género ‘agora vou fazer uma parte muito triste, agora uma muito alegre’, não, eu quero mesmo baralhar as pessoas. E este disco é feito de picos: ora muito feliz, ora muito triste. Mas é uma tristeza serena, menos densa, mais contida, porque também estou assim, sem aquele fatalismo. É uma tristeza bonita de se cantar."

Saindo do fado, mas continuando no repertório mais clássico, neste caso forjado na tradição folclórica, ela recupera Limão, de Arlindo de Carvalho. "É uma criação de Celeste Rodrigues, a quem eu também pedi autorização para gravar. E é exactamente da peça Sombras. Eu cantava-o deitada no palco, com um foco a apontar para mim como se fosse o luar, e apregoava: ‘Ó luar da meia-noite... Alumia... cá p’ra baixo’. Como um pregão da Beira. Depois comecei a fazê-lo em concerto, resultou lindamente, e pensei: porque não gravá-lo? Não há nada mais tradicional do que isto, é um baião!" E gravou também um tema que é "uma história de amor tristíssima", o Rapaz da camisola verde, de Pedro Homem de Mello, a partir da interpretação de Frei Hermano da Câmara.

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Miguel Angelo

Nos restantes temas, há várias assinaturas de relevo: Rui Veloso, António Zambujo, Miguel Araújo, Tiago Bettencourt. "O Rui é o meu cantor-fétiche. Acho que o primeiro disco que me lembro de ouvir e cantar foi Mingos & Os Samurais, que sei de cor. Mas ao invés de o convidar para cantar, o que seria óbvio, preferi que ele me acompanhasse à guitarra numa das coisas mais lindas que o Carlos Tê escreveu, Regras de sensatez."

A conexão brasileira

Zambujo, diz Raquel, é seu amigo há anos. "A composição dele e do Paulo Abreu Lima é um casamento perfeito, acho que sou a primeira pessoa para quem ele faz uma música, que não para ele." Já Miguel Araújo está aqui por outras razões. "É muito descritivo e eu gosto de escrita descritiva. Esta história que ele me escreveu, a de uma menina que herda as dores e a vida e a roda que girava da sua mãe, é uma história de valores." Mas o que levou a tudo o resto foi Meu amor de longe, de Jorge Cruz: "Assim que eu o ouvi achei que era tema para single. É como uma Lisboa menina e moça contemporânea. É a história de uma rapariga que espera o seu amor que vem de longe e nunca mais chega, e vai passeando pela cidade, descrevendo-a e aos seus turistas. Ainda não conheci o autor, mas esta canção é a minha cara. E é o retrato do meu disco."

Antes de falar dos dois temas com assinaturas brasileiras, há ainda Tiago Bettencourt, com Gostar de quem gosta de nós. "É dos poetas mais lindos da actualidade. Quis fazer-me um fado e fez. Parece um tema muito feliz, mas é denso e duro de cantar."

Mallu Magalhães, conheceu-a num estúdio, com Marcelo Camelo. "Sou fã da Banda do Mar, é dos melhores projectos que se fizeram nos últimos anos. Disse-lhes isso, e o Fred Ferreira desafiou ali mesmo a Mallu a fazer um tema para mim. Apareceu-me com ele no dia seguinte, Para o destino, que é uma história de gratidão. Sou grata a tudo o que me tem acontecido. E isto é verdade, diz-me muito respeito. Só espero que o destino não se esqueça do lado emocional, do coração, do amor. Porque tenho tudo o resto."

Coração vagabundo, de Caetano Veloso, surge aqui por iniciativa da própria Raquel e tem uma história curiosa. "Eu ouvi no disco Lágrimas Negras, de Diego Cigala e Bebo Valdés, que é um dos discos da minha vida, o Diego a cantar Eu sei que vou te amar, com Caetano Veloso, no meio, a declamar Coração vagabundo. Achei aquilo a coisa mais genial do mundo e pensei: porque não fazer, aqui o contrário?". E assim fez. Ela canta Coração vagabundo, acompanhada ao piano por Rui Massena, e Carlão, a convite dela, recita Eu sei que vou te amar. "É um dos meus temas preferidos do álbum."

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