Os Cage The Elephant querem uma casa em Coura e não é difícil perceber porquê
Depois da noite de quarta-feira, tornou-se evidente porque se mudaram os concertos da “recepção ao campista” para o palco principal do Vodafone Paredes de Coura. Nunca se viu enchente assim na abertura do festival. Os Cage The Elephant renderam-se ao público, nós rendemo-nos a Janelle Monáe.
Se esta é então a noite de recepção ao campista, assinale-se que o campismo nunca esteve mais saudável, nunca teve tantos e tão entusiastas praticantes. Os Cage The Elephant sentiram-no – e eis o vocalista Matt Shultz a tirar a camisa aprumadinha com que iniciou o concerto para se transformar em Iggy Pop do Kentucky (estado americano de onde é originária a banda); tronco nu exposto à noite de Paredes de Coura, corpo misturando-se com os dos público. Não foi deles o concerto mais memorável no arranque do Vodafone Paredes de Coura (estava ainda para chegar a magnífica “soul revue” de Janelle Monáe), mas foi com eles que se tornou óbvio que esta primeira noite não seria como as outras.
Às 21h, hora em que muitos ainda terminavam o jantar ou aguardavam pelo final do jogo do FCP que decorria em simultâneo, Capicua já tinha perante si um anfiteatro muito bem recheado de gente. De tarde, ouvimo-la a sós com as suas palavras (e alguns versos de Cesário Verde), perante algumas dezenas de felizardos, numa ponte romana nos arredores de Paredes de Coura. À noite, com os habituais companheiros de palco a seu lado, o DJ D-One e a MC M7, deu mais um concerto sem mácula. As palavras denunciam, acariciam, provocam, divertem. A música dá-lhes força, torna-as maiores. De Maria capaz a Mulher do cacilheiro, com a terna Casa no Campo, a irresistível Vayorken e o dedo acusador de Pedras da calçada, Capicua, num concerto mais curto que o habitual, teve o público do festival consigo, acompanhando-a na rima e no balanço do ritmo.
Um furacão de talento
Três horas depois, já era uma evidência. O público preenchia todo o anfiteatro natural, numa enchente como não se vira na história do festival numa primeira noite – e como, arriscamos, não se vira noutras edições em dias de pleno funcionamento. Lá em cima, no palco, um pequeno furacão de talento chamado Janelle Monáe. A cantora do Kansas chegou a palco empurrada por dois “enfermeiros” e enfiada num colete-de-forças. Libertou-se, abanou a poupa e tomou conta das operações, liderando uma banda totalmente versada na soul e no funk de todas as eras (metais, percussão, bateria, teclas, guitarrista devoto de Hendrix e de Ike Turner, duas vocalistas suporte, quais Ikettes – ou melhor, Janealettes). O aprumo é notório: banda em branco integral, cenário igualmente, e as duas vocalistas em vestidos listados de preto e branco para contraste cromático. Nada fica ao acaso.
Um concerto da autora de The ArchAndroid e do mais recente Electric Lady é uma encenação prodigiosa – há-de cair “inanimada” em palco, despertada depois, qual Frankenstein que resultou muito humano e muito bonito, pela descarga eléctrica libertada em palco. Acontece isto e vemos igualmente, pouco depois, como subverte graciosamente os códigos de género (e eis que a cantora, de suspensórios, calças e botas de jockey, se ajoelha para receber a capa que lhe depositam nas costas, tal como o maior aristocrata funk da história, James Brown).
Tudo é encenação, certamente, e essa é a melhor forma de chegar à verdade desta música: porque tudo concorre para a tornar mais intensa e o espectáculo mais aliciante; porque, enquanto ouvimos essa ponte tão perfeita entre a Motown de ontem e o hip-hop de hoje que é Dance apocalyptic, o R&B mutante com Isaac Hayes como figura tutelar de Sincerely, Jane ou o funk acetinado, insinuante, de Electric lady; enquanto ouvimos essa música e o talento dos músicos (máquina de precisão, livre e sem falhas), não há qualquer encenação à vista.
Um concerto de Janelle Monáe é muito real, muito intenso e recheado de história (para criar uma história nova). É um tratado de elegância e fervor com direito a uma versão de James Brown (I feel good, o clássico dos clássicos), uma balada soul iluminada por centenas de isqueiros acesos (era Primetime), um momento activista (“we jump in the name of love, peace, equality!” – e saltámos, obviamente) e à libertação pela música nessa Tightrope que mostra o poder de síntese que faz de Janelle Monáe um caso especial: conjuga-se o “stomp” Stax com o cintilância soul movida a sintetizadores dos Outkast, vemo-la a deslizar junto ao estrado da bateria com a agilidade de Brown ou Michael Jackson, e o resultado é um portento que não deixa ninguém indiferente. Houve dois encores, houve um público conquistado pelo furacão em palco, houve uma banda e uma cantora igualmente conquistada.
Apresentada a banda em modo viagem pelos Estados Unidos (o ritmo sendo adaptado ao som de Ohio, de Atlanta, Nova Iorque ou de Miami, conforme a proveniência de cada um dos músicos), conseguida a proeza de pôr uma plateia inteira a baixar-se até ao chão, seguindo as ordens da mulher já deitada em palco, para que a libertação dançante final fosse ainda mais efusiva, Janelle Monáe despede-se com um segundo encore. What an experience, balada soul digital, agradecimento pelo que acabara de viver nas horas anteriores. "Foi fixe o concerto”, ouvimos comentar atrás de nós. É certo que devemos proteger-nos da hipérbole, mas digamos que “fixe” não faz jus ao que acabáramos de assistir. Com Janelle Monáe, vimos que é possível alguém erguer-se nos ombros de gigantes e tornar-se, também ela, gigante. Nada menos que magnífico.
Depois dela, chegaria a música cerebral do duo inglês Public Service Broadcasting, que parte de imagens de arquivo britânicas de outras eras e que recolhe samples de voz da mesma proveniência e usa-os como rastilho criativo. O problema é que o rastilho se apaga logo depois e imagens e samples tornam-se meras peças decorativas acompanhando o baterista e guitarrista (e homem do banjo, ocasionalmente) entregues a mecânicas kraut, a pedaços de big beat, a estridência shoegaze e moléculas rock – arriscam-se demasiadas direcções sem um rumo definido e o público acompanha com curiosidade, mas sem a euforia que marcara as horas anteriores.
Porque antes de Janelle Monáe e depois de Capicua, os Cage The Elephant levaram para os Estados Unidos uma história bonita para contar. A do maior público que viram perante si na digressão europeia, a dos milhares que lhes conheciam todas as músicas e que se fartaram de levantar poeira. É certo que falta à banda a consciência do que deseja realmente ser (os Pixies?; os White Stripes?; David Bowie fundido com os Interpol?; tudo junto ou nada disso?), mas conseguiram reunir nos últimos dois álbuns uma mão-cheia de canções que, neste contexto, perante um público eufórico e eufórica a banda ela mesmo perante o que via, resultaram particularmente bem. Há muito que o Vodafone Paredes de Coura não é exclusivamente do rock, mas quando o rock’n’roll se ouve por aqui, a reacção é esta: um dos guitarristas, o não bardudo, o devoto dos Pixies, certamente, a tocar num frenesim no fosso frente ao palco, agarrado pelo público; gente pondo-se em pé nas costas de amigos para ver melhor o que se passa; um vocalista incapaz de conter o entusiasmo a deixar-se cair sobre as primeiras filas, felicíssimo.
Pouco antes, entre canções como a explosiva No rest for the wicked, Telescope ou Back against the Wall, Martin Shultz exclamava que aquele era o melhor concerto da digressão europeia da banda, agradecia uma e outra vez ao público, declarava querer comprar uma casa em Paredes de Coura para que o sonho que vivia naquele momento se prolongasse. Muito bem, senhor Shultz. Por estes dias, todos queremos o mesmo. Respira-se muito bem em Paredes de Coura. E o festival, que termina sábado e que nos mostra Franz Ferdinand, Mac DeMarco, Thee Oh Sees ou Thurston Moore esta quinta-feira, ainda agora começou.