Mac DeMarco, o homem duplicado

Quando se fecha no quarto cria uma pop solar e terna que parece nascer sem esforço. Quando sai para o mundo, é um espalha-brasas tresloucado com gosto por violência cartoonesca e humor escatológico. Ele não vê contradição nisso. Nós temos as canções de Salad Days, um dos álbuns do ano, na cabeça. Vamos ouvi-lo em Paredes de Coura. Chegaram os dias de Mac DeMarco.

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DANNY COHEN

Os amigos zangam-se e um deles acaba com os miolos espalhados pela banheira da casa. O assassino, que é também o cantor no vídeo, continua na sua fúria violenta, absurda, descontrolada: o tipo que o pôs a alucinar com um cigarro demasiado aromatizado não sobreviverá à brincadeira, o homem que o abordou na rua e lhe chamou cretino acabará com a cabeça esmagada no passeio. O assassino, enquanto relaxa com um banho de imersão, sem sais, com vegetais, há-de dar à luz uma criança-alface.

O assassino no vídeo, que é cantor, canta: “Can’t claim to care/ Never been reluctant to share/ Passing out pieces of me/ Don’t you know nothing comes free?” É uma canção pop delicada e serena, indie à antiga com grão de areia na engrenagem (é isso que lhe dá um charme especial), entoada em voz sonolenta como se nascida em momento de vigília, quando o sono se aproxima do sonho. Nos antípodas, portanto, das imagens que vemos.

O cantor é Mac DeMarco, autor de Salad Days, um dos mais belos, solares e contagiantes álbuns pop que ouviremos este ano. DeMarco estreou-se em longa-duração em 2012, com 2, e todos viraram a cabeça na sua direcção. Quem era este canadiano com poucos traços do literato, intelectual e bem-comportado Canadá que irrompia pelo cenário musical com canções de uma sensibilidade pop imaculada e misteriosamente onírica? Pop de guitarras, mas guitarras de som subaquático. Pop que, por vezes, encontra salvação nos teclados e se entrega a delícias movidas a sintetizador, nocturnas e misteriosas, quais épicos portáteis, do-it-yourself, de uma década de 1980 mais imaginada do que real. Quem é Mac DeMarco? Vamos descobri-lo já esta próxima quinta-feira, dia 21, no Vodafone Paredes de Coura, onde cumprirá mais uma data da digressão europeia iniciada na Suécia.“Tenho de apanhar um avião daqui a duas horas e meia, mas temos tempo”, avisou quando recebeu o telefonema do Ípsilon. Não estava a mentir. Tivemos.

O festival minhoto, que cumpre 21 anos de vida, arranca na próxima quarta-feira, dia 20, com Janelle Monáe ou Capicua como destaques, e prolonga-se até sábado, dia 23. Ao longo dos quatro dias veremos em palco Franz Ferdinand, CHVRCHES, Thurston Moore, Thee Oh Sees, Cut Copy, Black Lips, Yuck, James Blake, Beirut, Kurt Vile, Sensible Soccers, Linda Martini ou Goat.

Quinta-feira, às 21h20, no palco principal, estará Mac deMarco e a sua banda, que é a sua família, músicos tão dados ao humor pop (revolta dos geeks meets niilismo punk) quanto ele mesmo. Será a estreia de Mac DeMarco em Portugal. Aproveitemo-la bem. Pode muito bem ser que, daqui a alguns anos, exibamos a memória da experiência como medalha particularmente valiosa: “Eu estive lá!”

Dois anos depois da edição de 2, conhecemos Mac DeMarco bastante melhor. É impossível não reparar nele, boné de beisebol gasto e sujo na cabeça, cabelo desgrenhado e um ar permanentemente alucinado, acentuado por contingência genética: a falha entre os dentes incisivos. Mas depois ouvimo-lo de coração totalmente exposto, tremendamente frágil, a cantar algo como Let my baby stay. É dedicada à namorada, antiga colega de liceu, e, enquanto olhamos para fotos dele, enquanto lemos relatos da caótica rebaldaria que são os concertos, que podem incluir nudez e escatologia variada (e não estamos a falar das ocasionais versões da banda-caricatura Limp Bizkit), ouvimos e, num estado de perplexidade, somos conquistados: “I was made to love her, been working at it/ Half of my life, I’ve been an addict/ And she’s been good to me/ Far as I can tell she’s happy, livin’ with her Macky/ So please don’t take my love away/ Let my baby stay, let my baby stay”.

Entre a edição de 2 e Salad Days, Mac deMarco não parou de crescer em protagonismo. Já vimos escrito mais do que um par de vezes na imprensa anglo-saxónica estarmos perante um dos maiores talentos da sua geração. Já vimos, com a edição do último álbum, como os elogios têm repercussão no público que ainda compra discos: Salad Days subiu às portas do Top 10 da Billboard. Enquanto isso, o agora habitante de Brooklyn fala ao Ípsilon desde o quarto minúsculo, também estúdio de gravação, que tem no loft partilhado com uma dezena de pessoas (todas com bandas). O sucesso recente não trouxe euforia ou angústia: “Não tenho quaisquer expectativas. Neste momento estou feliz e, enquanto a música me mantiver feliz, continuarei a fazê-la. Quando isso deixar de acontecer, despeço-me desta vida. O problema, se tal acontecer, é que não sei fazer mais nada. Assim sendo, não penso nessa possibilidade. A melhor forma de pôr as coisas em perspectiva é não o fazer." A voz é grave e pausada, reflectida. Não há sinais de sangue ou alucinação. Mac DeMarco: a extrema sensibilidade de um espalha-brasas tresloucado. Contradição é o seu nome do meio, apetece dizer. Sê-lo-á realmente?

O sítio onde tudo nasce foi fotografado para a arte gráfica de Salad Days. Vemos as escadas que conduzem ao beliche, tira fina no topo do enquadramento. Cá em baixo, os teclados, as guitarras, os posters dos seus concertos, o gravador de bobinas, um baixo encostado à parede no canto direito, ao lado de um armário de metal enferrujado. Ao centro, um pano com o esqueleto vermelho e azul dos Grateful Dead. Do lado esquerdo, meio escondidos, olham-nos Mac e a namorada, Kiera, que veste uma t-shirt dos Simpsons.

Foi naquele espaço minúsculo que nasceu a música de Salad Days. Mas nada tem de lo-fi esta gravação caseira de um músico que tem no seu panteão pessoal o cantor soul Shuggie Otis, os Steely Dan e o seu rock cintilante tingido de jazz ou esse ser inclassificável, proto-punk e neo-folk, chamado Jonathan Richman. Mac DeMarco não tem qualquer fetiche pela precaridade sonora. “Tento fazer o melhor que consigo, tendo em conta que gravo em casa. Mas à medida que os anos passam, vou ficando um bocadinho melhor. Se tiver sorte, chegará o dia em que a minha música soará realmente a um estúdio a sério." Sem exageros. “Não quero soar aos Asia [super-banda prog formada no início dos anos 1980]. Os Asia soam perfeitos e esse é o problema. Tudo é perfeito. E eu preciso que se sinta que há qualquer coisa errada ali no meio. Se não, tudo se torna demasiado aborrecido."

É quase espantoso ouvi-lo enquanto conversa, muito sério e concentrado, sem digressões, sem que por um momento que seja se revele o rodopio de excessos que o mundo da Internet expõe diariamente. Quando vagueia pelo universo, o palpálvel e o on-line, vemos o rapaz cómico na fila para entrar na Cidade Proibida, em Pequim (imagens do documentário Pepperoni Playboy), a gozar com situação: “Estamos quase a entrar em Madison Square Garden para a Heart Shaped Tour dos U2." Vemo-lo improvisar rimas hip-hop sobre uma garganta cortada a frio (rimas bem medidas, curiosamente). Vemo-lo satirizar o discurso de artistas que se levam demasiado a sério  “Tenho de mudar as coisas do mundo, é para isso que estou aqui”, exclama antes de lançar uma sonora gargalhada.

Os relatos dos concertos, por sua vez, dizem-nos que, além das inesperadas versões de Coldplay (defende que são a melhor banda para ouvir enquanto se conduz), Metallica, Deep Purple ou Red Hot Chili Peppers (nenhuma destas bandas é minimimante identificável na sua música), há nudez, cantoria com miúdas às cavalitas, arrotos e cuspidelas, todo um caos endiabrado que no passado teve ponto alto, quanto a espanto e ignomínia, na actuação em que, depois de se despir, virou o rabo para o público e lhe espetou uma baqueta. Ouvindo-lhe a música, nunca o imaginaríamos nesses preparos – e esse contraste causa perplexidade e torna-o particularmente fascinante.

Num extenso artigo publicado no site da Red Bull, Katie Garcia, directora geral da Captured Tracks, a editora de Mac DeMarco, põe a questão da forma mais simples possível. “Ele enquadra-se tão bem na Captured Tracks porque é um compositor incrível." Dito isto, acrescenta: “E o indie-rock precisava de alguém como o Mac para ganhar tomates e ter ao mesmo tempo um espírito alegre. A cena pode tornar-se tão entediante com o passar do tempo que é bom haver uma personalidade condimentada como a do Mac para animar as coisas."

 

Algum ruído

Mac DeMarco tem, de facto, animado o cenário, exibindo uma naturalidade desarmante em tudo o que faz. Não percebe, por exemplo, porque se fala tanto da aparente contradição entre a música que cria e a forma como se apresenta publicamente. “Quando estou a compor uma canção e a gravá-la no meu pequeno estúdio, estou completamente sozinho, isolado no meu espaço. Quando tomo o palco, por sua vez, tenho comigo os meus melhores amigos. É um espectáculo rock’n’roll e, de meu ponto de vista, se vais a um concerto rock’n’roll, queres divertir-te. É isso que tento ter presente. Por vezes sofro um bocado com isso e as coisas descontrolam-se, mas o que me interessa é manter tudo o mais refrescante possível, dia após dia."

Eis então Mac DeMarco, o homem em exposição pública, colaborador recente de Tyler, The Creator, rapper da mesma geração. Aparentemente, o cantor de guitarra em punho e o criador hip-hop saído do colectivo Odd Future não têm nada a uni-los. Essa é, porém, uma visão demasiado superficial. Unem-nos uma forma semelhante de comunicar, o gosto pelo humor e uma atracção irresistível para a violência cartoonesca. A colaboração que os juntou, muito a propósito, consiste num curto vídeo em que Tyler The Creator dá rédea livre a um acesso, gratuitamente cómico, de gerontofilia (Granny é o título).

“A violência, tal como a retratamos, e especialmente no caso do Tyler, torna-se simplesmente cómica. Ninguém sai magoado. Estamos a fazer algum ruído, a manter as pessoas interessadas”, afirma Mac DeMarco. “Ao mesmo tempo, confunde o público e é bom confundi-lo um pouco. Obriga-o a olhar mais atentamente, a olhar uma segunda vez, e mantém-no perto de nós." Este é um lado de Mac DeMarco. Mas olhemos o seu reverso, o lado privado, recatado, sensível. Aquele que ouvimos na sua música, como se só nela deixasse cair a máscara de galhofeiro descontrolado.

Mac DeMarco é um enfant-terrible; Mac DeMarco é um doce. 2 acaba com a voz dele a acordar com carinho a namorada que adormecera enquanto a canção era gravada. Antes disso, respondera ao episódio das baquetas, depois de a família começar a contactá-lo por recear pela sua sanidade, com Freaking out the neighbourhood, canção em forma de carta que começa assim: “Sorry, mama/ There are times I get carried away/ Please don’t worry/ Next time I’m home/ I’ll still be the same”.

Põe, sem subterfúgios, a sua vida em canção. “Não quero escrever sobre o que não conheço verdadeiramente, não saberia como fazê-lo. Sinto-me confortável a escrever sobre a minha vida. É o que tenho. O dia-a-dia é feito de pessoas diferentes a viverem experiências diferentes. Ando por aí no mundo e isso entranha-se no sangue." Resumindo: anda pelo mundo, recolhe histórias, regressa a casa e fecha-se no quarto-estúdio. Depois, as canções nascem como que em fluxo de consciência: “Aquilo que trabalho não é tanto uma questão de som, mas a procura de um certo espaço mental. Quero sentir-me confortável e deixar que a música flua simplesmente. É isso que adoro em música. Apanhá-la no momento em que é libertada."

Com os Beatles, a banda que o fez perceber que queria ser músico (“Demorou muito tempo até me deixar cativar, mas quando isso aconteceu foi uma revelação: 'estes gajos estão a falar a minha linguagem'”), aprendeu o valor de ter uma identidade vincada sendo, ao mesmo tempo, generosamente universal. Com um músico como o excêntrico Connan Mockassin, figura de culto neo-zelandesa e autor de uma obra-prima recente do psicadelismo, Forever Dolphin Love (2011), descobriu um inimitável som de guitarra que é marca identitária inconfundível – um som cristalino sabotado, como se filtrado por uma fita de cassete gasta (obtém-no com uma guitarra barata que lhe custou 60 dólares e pedais de efeitos que diz que nenhum músico sério experimentaria). “Depois de ouvir Connan Mockassin cruzei-me com sons muito, muito estranhos. As pessoas dizem-me que não soo a ninguém e que a guitarra tem um som muito estranho. A quem o dizem. A minha reacção foi a mesma: 'Mas que raio é isto?'”.

 

O melhor possível

Mac deMarco nasceu Vernor Winfield McBriare Smith IV a 30 de Abril de 1990, em Edmonton, Alberta, no Canadá. Quando tinha cinco anos, a mãe registou-lhe um novo nome, McBriare Samuel Lanyon DeMarco – o Mac usado por família e amigos colou-se-lhe a partir daí. A mudança tinha uma razão forte. O pai de Mac abandonara a família e a mãe fez-lhe um ultimato. Caso não começasse a pagar pensão de alimentos, os seus apelidos e o nome próprio, em homenagem ao avô paterno, seriam apagados. O pai, a braços com álcool e outras dependências, não pagou. Visita Mac de tempos a tempos, sem aviso. “É suposto eu agir como um filho perante este homem, mas vejo-o apenas como um tipo qualquer”, dizia DeMarco em entrevista prévia à edição de Salad Days.

A música sempre esteve presente na família. A tia era cantora, o avô tocava saxofone, a avó foi cantora lírica em Nova Iorque durante vários anos, antes de se tornar professora no Conservatório de Música de Alberta – DeMarco dedicou-lhe Sherrill, a penúltima canção de 2. Por teimosia adolescente e sobreexposição familiar, DeMarco só tardiamente, “aos 15 anos”, recorda, despertou para a música. E depois espantou-se: escrever canções era-lhe muito natural, quase demasiado fácil. O espanto transformou-se em fascínio, o fascínio numa certeza. Músico seria e só isso lhe interessava.

Teve uma diversidade de bandas. Um punhado de colectivos indie armados ao pingarelho a que não achava a mínima piada. Uns Meat Cleavers criados à imagem dos Gories, banda histórica do rock de garagem de Detroit, que marcavam concertos recorrendo a tácticas de guerrilha, ou seja, enviando cartas ameaçadoras, mafiosas, aos proprietários dos bares. Depois deles, surgiriam os Sound Of Love, uma banda de R&B acetinado em que cada canção era dedicada a uma colega de escola diferente (por cada uma delas, Mac DeMarco ganhou uma nova inimiga). No final da década passada, passou a gravar como Makeout Videotape – já estava mais próximo do Mac DeMarco que conhecemos: “Poderia ter começado a usar o meu próprio nome mais cedo, mas preocupava-me demasiado que as pessoas pensassem que eu era uma espécie de DJ italiano de tecno”, contou à imprensa americana.

Pouco depois, já em Montreal, já depois de ter trabalhado a asfaltar estradas ou como cobaia em experiências científicas para ganhar o dinheiro para a renda que a música não lhe dava, gravou Rock’n’Roll Night Club, álbum atípico que acabou por oferecer-lhe uma carreira. Nele, surge em várias canções como crooner da Twilight Zone, qual cantor saído de uma dimensão alternativa do rock dos anos 1950, e foi por esse disco que a Captured Tracks o assinou. “Fiz esse álbum em duas semanas. Era simplesmente um pequeno disco estranho, acontece que foi esse pequeno disco estranho que chamou a atenção da minha editora e foi a primeira vez que muita gente me ouviu...”

Mac DeMarco, o homem que só se revela verdadeiramente, profundamente, quando fechado no quarto com os seus pensamentos, estava quase a revelar-se. 2 não tardaria. Deliciámo-nos com ele. Nós e muitos mais: andou um ano e meio a mostrá-lo mundo fora, com uma digressão com os Phoenix pelo meio, e, quando regressou, sentia-se tão esgotado e confuso (“Já cheguei mais longe do que alguma vez julguei possível, e agora?”) que deu por si a lamentar-se. Não por muito tempo: “No meio do processo de estar constantemente a queixar-me de estar cansado, compreendi quão idiota era essa atitude. Não podia comportar-me assim. Afinal, era isto que queria há muito tempo. Tenho muita sorte." Salad Days nasceria alguns meses depois. Confirmou-se: o travesso que não deveríamos levar a sério é autor de algumas das melhores canções pop que ouvimos nos últimos tempos.

Mac DeMarco não esperava nada disto. Mac DeMarco não parará para pensar no que lhe aconteceu. “Vivemos num mundo todo fodido, todo lixado, e temos de seguir em frente. Tudo se resume a isso." Assim se despede do Ípsilon. Desligamos o telefone. Assalta-nos a melodia de Goodbye weekend, canção cristalina, solar, reconfortante. “So don’t go telling me/ how this boy should be/ leading his own life/ Sometimes rough/ but generally speaking/ I’m fine”. Sim, contas feitas, talvez tudo esteja o melhor possível. Chegaram os dias de Mac DeMarco.

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