O crime real está a dar na televisão — agora é a vez de O.J. Simpson
Nova série da Fox junta-se a Serial ou Making a Murderer na oferta de programas sobre casos reais. E mostra onde é que os americanos estavam n'O Caso de O.J. Simpson e onde estão agora.
É uma série que se junta à recente oferta de títulos sobre crimes reais em forma de conto semanal, na esteira do podcast Serial, e que junta ingredientes de uma certa história da América: “A história de O.J. foi uma tragédia americana épica e os temas que envolve – celebridade, raça – são mais relevantes do que nunca”, resume ao PÚBLICO Robert J. Thompson, director do Bleier Center for Television & Popular Culture da Universidade de Syracuse. Terça-feira estreia-se em Portugal um dos fenómenos do ano televisivo americano e um raro caso que reúne a quase unanimidade da crítica em elogios.
Era um dia normal. Sexta-feira, calor de Junho, ano 1994. Disputava-se o quinto jogo das finais da NBA e de repente o caso que viria, anos mais tarde, a resultar no que ficou chamado “o julgamento do século”, entrava-lhes pela televisão. A América sentou-se no sofá, incrédula e dividida, para ver uma perseguição alucinante pelas auto-estradas de Los Angeles com uma das suas estrelas maiores, o ex-jogador de futebol americano, O.J. Simpson, a fugir da polícia dias depois de a sua mulher e um amigo terem sido encontrados mortos na casa do casal. Foi um momento mediático.
O Caso de O.J. – American Crime Story estreia-se terça-feira, às 22h15, na Fox, com um episódio duplo que chega até essa perseguição e que é mais um título – provavelmente o de maior impacto popular – no rol recente de programas centrados em casos reais de crimes americanos. O podcast Serial desenterrou o caso do jovem Adnan Syed, preso desde 1999 pela morte da ex-namorada Hae Lee (já vai na segunda temporada, sobre o caso mais mediático do soldado Bowe Bergdahl). O documentário Making a Murderer do Netflix reacendeu este ano a polémica em torno das condenações de Steven Avery, e até uma mini-série sobre Bernie Madoff, o gestor financeiro condenado a 150 anos de prisão por fraude, foi lançada (sem grande sucesso) há semanas.
Os procedurals criminais são um dos mais duradouros, populares e vistos tipos de ficção televisiva norte-americana. Campeões de audiências, por vezes acusados de uma visão securitária e algo reaccionária, foram exactamente títulos como A Balada de Hill Street, Lei e Ordem ou CSI que primeiro começaram a pegar em casos reais e a inspirar-se neles para criar séries. Juntemos-lhes, como explica Robert J. Thompson, “uma das muitas formas em que esse interesse [do público] se manifestava, os magazines noticiosos televisivos como o 48 Hours ou Dateline”, e estava pavimentado o caminho para outro formato ser contaminado, defende o professor. Os documentários.
“O que é interessante e intrigante é o tempo que demorou para que os documentários, incluindo as histórias de crimes reais, pegassem na ideia da serialização”, diz Thompson, e dessem ao público um pedaço de história verídica por semana. “Serial, sendo sobre um crime real, e pegando num caso em particular, trata-o ao longo do tempo como vemos nas ficções da HBO ou do Netflix, e parece ter posto as coisas a mexer. E agora temos Making a Murderer, por exemplo, ou O.J.”. Que é um passo mais além, uma versão ficcionada de um caso de grande notoriedade feita por uma equipa de nomes conhecidos.
A série do canal FX e os acontecimentos em que se baseia são um cruzamento de referências tão rendilhado e engarrafado como o complexo sistema de auto-estradas de Los Angeles onde tem lugar um dos seus mais emblemáticos episódios. Os ciclos noticiosos de 24h na televisão, a reality TV (o pai da agora poderosa família Kardashian é um dos advogados de O.J.), o estatuto das estrelas e, sobretudo, a tensão racial poucos anos depois dos motins após a ilibação dos polícias que espancaram Rodney King… E hoje continua tão actual que faz com que a série, indirectamente, “evoque o escândalo Cosby e [o movimento] Black Lives Matter, o debate sobre gostar ou não de Hillary e o legado de Obama”, assinala Emily Nussbaum na New Yorker.
O Caso de O.J. é produzida por Ryan Murphy e Brad Falchuk (American Horror Story, Glee), e baseia-se no livro The Run of His Life, de Jeffrey Toobin, jornalista da New Yorker. Dos dez episódios, um é realizado por John Singleton, e a segunda temporada será sobre um outro caso – mais uma American Crime Story para continuar a explorar esta temática. Cada fala foi revista por pelo menos cinco advogados, diz a Variety, e mais de 20 anos depois dos acontecimentos que recupera “não é um projecto de época, tenho a sensação de que é muito moderno”, diz Ryan Murphy.
A mini-série da CNN
O caso O.J. Simpson, que chegava um pouco a todo o mundo e se tornava parte do folclore dos anos 1990 da mesma maneira que o caso de Bill Clinton e Monica Lewsinky, por exemplo, “foi uma história que durou dois anos”, recorda Thompson. Logo a seguir, “fizeram dois telefilmes [sobre o tema], que não tiveram grande atenção, nem audiências. Porque toda a gente já tinha visto este filme – era a mini-série que viam na CNN e em todos os telejornais. Agora já passou tempo suficiente, e há muita gente, incluindo os meus alunos, que não se lembram dessa história. E que história!”, suspira.
Nicole Brown Simpson e Ronald Goldman foram encontrados em casa do casal Simpson brutalmente esfaqueados. Seis dias depois, Simpson foge armado e com um amigo pelas estradas de Los Angeles, no dia em que era suposto entregar-se à polícia para ser formalmente acusado do crime de homicídio da sua mulher e do amigo - ambos brancos. Noventa e cinco milhões de pessoas viram a corrida desenfreada ao vivo na TV, e a NBC, que transmitia o jogo da NBA, interrompeu-o para acompanhar a perseguição do Ford Bronco pela polícia. Tornou-se um tema que espelhava "que americanos brancos e negros podem ver exactamente a mesma cena e ver realidades completamente diferentes”, como lembra James Poniewozik, crítico do New York Times, não só devido ao contexto social mas também pela orientação escolhida pela defesa de Simpson, que enfatizaria o papel da raça no caso.
Na série, o jogador de futebol é interpretado por Cuba Gooding Jr. (cuja estatura, distante da do possante ex-jogador de futebol, é um dos factores de crítica ao casting), cujos advogados são John Travolta (Robert Shapiro), David Schwimer (o Ross de Friends é Robert Kardashian), e Courtney B. Vance (Johnnie Cochran), e O Caso de O.J. conta ainda com Connie Britton ou Robert Morse. Cuba Gooding Jr. ficou feliz, em Outubro de 1995, quando o veredicto foi “inocente” – mais de 100 milhões de pessoas assistiram à emissão do tribunal. Nunca questionou se O.J. era ou não culpado e “nem queria saber, porque era como se outro homem negro que parecia ter sido incriminado por algo que não fez”, disse num podcast da revista New Yorker.
“As pessoas têm dúvidas sobre o sistema judicial pelo menos desde o caso O.J. Simpson no que toca ao tratamento indevido de provas, [à existência de] detectives tendenciosos e técnicos laboratoriais que não são super-heróis” como os que trabalham em salas high tech de paredes de vidro de CSI, acrescenta na Reuters Mark McBride, advogado especializado no sector criminal, sobre o impacto do caso na vida corrente da América. “As pessoas dizem-no e é verdade: a perseguição do [Ford] Bronco aproximou-nos enquanto país, porque todos a vimos juntos; e o veredicto do caso dividiu o país de muitas formas”, disse à Variety Ryan Murphy, que espera que a série permita “perceber verdadeiramente como se chegou ao veredicto”.
O. J. Simpson foi então considerado inocente no caso de homicídio, para surpresa de muitos americanos – a série não diz se a decisão foi ou não certa, mas o livro de Toobin, como lembra Poniewozik, é taxativo: “Simpson assassinou a sua ex-mulher e o seu amigo”. Libertado na altura, a sua vida tornou-se cada vez mais turbulenta. Está preso desde 2007 por roubo, rapto e outros crimes na sequência de um assalto à mão armada em Las Vegas. Não dá entrevistas – segundo a Hollywood Reporter está a salvaguardar-se devido à iminente possibilidade de liberdade condicional – e a sua pena é de 33 anos. Apesar de não poder ver a série, diz um antigo guarda prisional que com ele contactava, não está contente nem com o casting, nem com a forma como é retratado.