O que se esconde por trás da voz e do mito, Janis?
Tem sido difícil arrancar Janis Joplin à caricatura de uns anos 1960 de excessos e libertinagem. Little Girl Blue procura além do mito para nos mostrar o que estava por trás daquela voz tão poderosa, tão eloquente, tão sofrida.
Uma multidão encavalitada na escadaria fronteira de uma mansão vitoriana em Haight-Ashbury, o bairro central da contracultura de São Francisco. Estão lá os Grateful Dead, habitantes da casa, os Jefferson Airplane ou os Quicksilver Messenger Service. Estão lá os Big Brother & The Holding Company, a banda que tinha como vocalista Janis Joplin. Janis enviará a foto à família. Um círculo desenhado sobre ela, para que os pais a distinguissem entre a sorridente agrupamento, outros círculos sobre os companheiros de banda, para que os pais soubessem com quem andava a filha a passar os dias.
“Eles não se aperaltaram para a foto. Andam mesmo assim no dia-a-dia”, escreveu na carta que acompanhava a foto. “Talvez afinal não seja assim tão estranha”, rematou. Ouvimos-lhe a voz, ou melhor, ouvimos a voz que passa por voz de Janis Joplin, a de Chan Marshall (Cat Power), sotaque igualmente do sul norte-americano, em Janis: Little Girl Blue, o documentário sobre a cantora de Try (Just a little bit harder) que, depois da passagem pelo último Indie Lisboa, conhece agora estreia comercial.
Criado ao longo de quase uma década por Amy J. Berg (Deliver Us From Evil) e contando com a colaboração próxima da família de Joplin, em especial a sua irmã e irmão mais novos, o documentário mergulha como nunca na intimidade de Janis Joplin, naquilo que era a mulher por trás do mito (falamos de cinema ou televisão, esclareça-se, não de biografias literárias). Além disso, e contrariamente ao que é habitual num documentário supervisionado pela família do biografado, não há em Janis: Little Girl Blue a tentação de fazer hagiografia e esconder os elementos mais sensíveis do seu percurso e personalidade. É certo que estamos perante o corriqueiro formato documental em que depoimentos alternam com imagens de arquivo, mas são muitas e raramente vistas essas imagens (gostaríamos de ver o filme que D.A. Pennebaker teria feito com o registo das sessões de gravação de Cheap Thrills, o primeiro álbum), bem como as cartas que nos revelam quem era e que pensava Janis Joplin fora do palco e do estúdio. E isso, falando de Janis Joplin, a desconhecida Janis Joplin, é precioso.
Ouvimo-la: “Querida família, consegui passar o meu – ufff – 27º aniversário sem o sentir verdadeiramente… Estive a olhar em volta e reparei numa coisa… de quanto precisas realmente. A necessidade de ser amada e a necessidade de te orgulhares de ti própria. E acho a ambição é isso – não é uma procura depravada por um posto ou dinheiro. Talvez seja amor. Muito amor!”.
Janis: Little Girl Blue é aquela história. A de uma cantora arrebatadora que se entregava sem restrições à música que cantava – “eu sei perfeitamente o que significa cada palavra desta canção”, diz à banda que tenta corrigi-la em Summertime. A de uma performer que ocupava o palco como um furacão, ou seja, incontrolável por definição. A de uma pessoa que cresceu em Port Arthur, Texas, ou seja, no sul racista, misógino e conservador do Sul dos Estados Unidos recusando conformar-se e pagando por isso enquanto vítima de ostracismo e bullying cruel. A mulher que contrariou o que se esperava de uma mulher no seu tempo – “se te defines como alguém que nasceu para lavar pratos, esse é um problema teu”, respondeu à imprensa que a confrontava com as críticas à forma aberta como vivia a sua sexualidade – e que acabaria por encontrar lugar para si entre a comunidade de músicos e artistas de São Francisco, os “esquisitos” ocupados a serem criativos e a planearem “mudar o mundo”. Parece uma grande ambição, mas é coisa pouca. Janis Joplin sabia viver no palco, mas não sabia o que fazer quando ele lhe desaparecia e ficava sozinho consigo mesma. “Meu deus, quero tão desesperadamente ser feliz”, ouvimo-la novamente – isso era bem mais difícil que mudar o mundo.
Para além da caricatura
Janis Joplin é aquela que raramente vimos para além da caricatura. A cantora de vozeirão imponente e vida vivida no limite, entre libertinagem sexual, drogaria a rodos e copo sempre cheio de generosas doses de whisky – e foi isso, mas não enquanto poster sem vida. A mulher que representou como nenhuma outra a mitologia dos anos 1960: e depois sai uma versão de Mercedes Benz, canção paródia sem importância alguma, porventura e menos relevante que alguma vez gravou, interpretada por uma qualquer concorrente a um qualquer concurso de talentos televisivo, obviamente enfiada em calças à boca-de-sino, camisa de cores garridas, muitos colares ao pescoço e penas na cabeça.
Janis Joplin desapareceu cedo demais, aos 27 anos, em Outubro de 1970. Deixou quatro álbuns, Big Brother & The Holding Company e Cheap Thrills, ancorados no rock psicadélico de São Francisco, I Got Dem Ol’ Kozmic Blues Again Mama!, entre a soul, o blues e o funk, e Pearl, o seu álbum mais celebrado, síntese inspirada de todas as suas referências. Mas Janis Joplin não desapareceu mais cedo que os outros membros do dito clube dos 27, como Brian Jones, afogado numa piscina um ano antes, Jimi Hendrix, desaparecido em Setembro do mesmo ano, ou Jim Morrison, traído pelo coração numa banheira em Paris, em 1971. Como Kurt Cobain, 27 anos quando disparou uma caçadeira sobre si mesmo em 1994, ou Amy Winehouse, que tinha a mesma idade quando o corpo cedeu por fim em 2011. Joplin, porém, mantém-se em grande parte desconhecida.
A posteridade não a tratou da mesma forma, mesmo tendo em conta que rivalizava em popularidade e respeito crítico com os seus contemporâneos desaparecidos precocemente. Talvez o explique o facto de, ao contrário de Hendrix, não ter uma família que inunda o mercado constantemente com novas edições de novo material, de material quase novo, de material redundante. Talvez tal se justifique por, ao contrário de Jim Morrison, o seu legado não ter servido de referência para uma série de bandas nascidas tão distantes quanto os anos 1980, ou por não ser rosto de um momento zero, irrepetível, na definição da cultura popular juvenil e do imaginário rock’n’roll, como o foi Brian Jones nos Rolling Stones. Faltar-lhe-á um biopic (há três décadas que correm rumores de que um estará a caminho), como aquele em que Val Kilmer encarnou Jim Morrison, nos anos 1990, e que deu nova vida e novas gerações aos Doors. E não negligenciemos a questão do género. Janis Joplin foi mulher sob os holofotes num meio quase exclusivamente masculino, numa sociedade marcada pela misoginia, e que assim se manteria nas décadas seguintes: Joplin contou como, num concerto no Madison Square Garden, um ano antes de morrer, o público seguiu cada minuto à espera que um desastre pudesse acontecer – como que um eco do que, quatro décadas depois, aconteceria com Amy Winehouse.
Little Girl Blue, se não por tudo o resto, e mesmo que falte rasgo ao documentário, tem essa grande virtude: a justiça para com o que foi Janis Joplin, a cantora que surgiu de rompante na São Francisco contracultural da década de 1960, que se apresentou ao resto da América e ao mundo através do Monterey Pop Festival, que se emancipou desse caldo cultural para se afirmar, pela força e aguda sensibilidade que transmitia a sua voz maturada pela adulação devotada a Bessie Smith, Odetta, Aretha Franklin ou Otis Redding.
Janis: Little Girl Blue mostra a beatnick que se apaixonou pela soul e pelos blues e que, logo à primeira canção registada em fita, era ela ainda estudante da Universidade do Texas, deixou ecoar o sentimento que atravessaria tantas das suas cartas, tantas das canções: “What good can drinkin’ do / Lord, I drink all night / but the next day I still feel blue”. Mostra a rapariga que, apesar de incapaz de ser como os pais ambicionavam, se enchia de preocupação quando a mãe a visitava – gostaria da casa nova, do seu namorado Country Joe, do chao-min que preparara para ela? Deixa-nos conhecer a cantora que, entre a heroína e o álcool, que abandonava ocasionalmente para sempre voltar, foi uma intérprete magistral, vivendo cada verso à flor da pele. Frontal, sem traços de cinismo, expôs-se sem restrições: disse o que quis dizer, viveu como quis viver.
“Billie Holiday, Aretha Franklin. Elas são tão subtis, conseguem ‘milk you’ com duas notas. Conseguem fazer-te sentir que te explicaram todo o universo”, elogia no documentário. “Eu ainda não consigo isso. Tudo o que tenho agora é poder. Se continuar a cantar, talvez o consiga”. Morreu cedo demais. Não nos chegou a mostrar o universo como pretendia. Essa tragédia é nossa. A tragédia dela, entre a música que a preenchia como nada mais, o desejo de viver plenamente, excessivamente, e a implacável angústia que a consumia, explica-se agora.