O “dirigismo cultural” - o caso do cinema português

Escolhidos a dedo, os júris do ICA favoreceram ao longo dos últimos trinta e tal anos uma certa ideia de cinema: a de que os realizadores têm de “ser protegidos do peso morto do público”.

Sempre que algum responsável pela tutela da cultura anuncia que vai mexer na legislação do cinema, o meio agita-se e assiste-se a um alarme mediático por parte dos cineastas (realizadores e produtores, sempre os mesmos) que, de há 30 anos para cá, mais têm sido favorecidos pelos apoios do Estado para fazer os seus filmes. Este alarido acaba por abafar e inviabilizar qualquer debate sério sobre o que devem ser as políticas para a cultura, especialmente aquelas que, pelos elevados custos face à exiguidade do mercado e à falta de internacionalização, exigem, directa ou indirectamente, financiamento público. Não se conhecem ideias nem propostas concretas para alterar o sistema de intervenção do Estado no cinema e (e na produção audiovisual) – sistema cujos resultados têm sido desastrosos, como teremos oportunidade de ilustrar.

A polémica centra-se sempre nos subsídios e na escolha dos jurados que devem decidir quem deve e quem não deve filmar. O exemplo mais recente aconteceu há dias, numa altura em que se encontra em fase de consulta-pública uma alteração cosmética do Decreto-Lei n.º 124/2013, de 30 de Agosto, quando esse grupo de cineastas, num abaixo-assinado divulgado neste jornal, pedia ao Ministro da Cultura que devolvesse à direcção do Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA) a escolha dos jurados dos concursos que decidem os apoios à produção, com o estafado argumento de que é ao Estado que cabe decidir quais os filmes que se devem fazer (que definem como sendo os que “não seguem as regras instituídas de modelos industriais”), sob o pretexto de que os realizadores devem ser protegidos do mercado e do escrutínio do público, ignaro e boçal, viciado pelo consumo de películas americanas, numa palavra, que cabe ao Estado escolher quem é e quem não é artista. Dito de outro modo, ter uma “política do gosto”.

Não se dão conta os signatários (ou dão?) de que, embora num novo ambiente político e com outros destinatários, o que pretendem é prolongar a “política do espírito” de António Ferro e, depois, o “modelo soviético” da lei 7/71 com que, nesse ano, o governo de Marcelo Caetano, ao mesmo tempo que criava uma taxa sobre os bilhetes de cinema para apoiar a produção de novos filmes portugueses, instituía também um sistema de júris que controlava os filmes que o Regime entendia que deviam ser feitos e podiam ser vistos.

Felizmente, António Costa, faz agora um ano, num encontro com apoiantes da área da cultura, veio esclarecer que, se viesse a ser Primeiro-Ministro, iria alterar esse paradigma, que vigora nas “políticas da cultura” há 42 anos, e que, ao arrepio do que está consagrado na Constituição (“O Estado promove a democratização da cultura, incentivando e assegurando o acesso de todos os cidadãos à fruição e criação cultural” - capítulo III, artigo 73º), se esquece dos cidadãos e tem privilegiado o apoio directo aos artistas, sobretudo na área do cinema.

O que António Costa veio dizer, no dia 28 de Setembro de 2015, perante uma plateia de artistas seus apoiantes, foi que era preciso pôr fim a essa herança e a esse paradigma: “O Ministério da Cultura, disse ele, não é um Ministério para os agentes culturais; pelo contrário, é para o país." E acrescentou: "Ao Estado e ao governo não cabe escolher artistas nem ter uma política de gosto. Mas, é obrigação do Estado tornar a cultura acessível a todos."

O que o actual PM veio justamente lembrar com estas palavras foi que as políticas públicas na área da cultura se devem dirigir aos cidadãos e não directamente aos artistas, do mesmo modo que as políticas da saúde ou da educação se dirigem aos cidadãos e não aos médicos ou aos professores. No caso do cinema, o que se deduz das suas palavras é que cabe ao Estado criar as condições para que os portugueses tenham direito a ver filmes na sua língua, mas não cabe ao Estado decidir quais. Do mesmo modo que ninguém aceitaria que fosse o Ministério da Cultura a decidir, todos os anos, quem deve escrever romances (Lídia Jorge ou Lobo Antunes?), quem deve pintar (Júlio Pomar ou Jorge Martins?) ou escrever canções (Sérgio Godinho ou Jorge Palma?).

Ora, o que os subscritores desse abaixo-assinado vêm dizer é que António Costa está errado: que cabe sim ao Estado, através de jurados nomeados pelo ICA, a escolha dos filmes que os portugueses têm direito a ver, e não, democraticamente, ao órgão consultivo do Ministério da Cultura para o sector - a Secção Especializada do Cinema e do Audiovisual (SECA), onde estão representados democraticamente todos os agentes do sector, desde distribuidores a canais de TV, de associações de produtores a associações de realizadores - ou seja, desde quem paga os filmes a quem os produz e realiza. Vindo de cidadãos que se dizem democratas (mas porque será que gostam tanto do povo e tão pouco do público?), esta aberração só se explica pelo desespero de querer manter privilégios e assegurar a manutenção de um sistema - o dirigismo cultural - que é exactamente o contrário do que deve nortear a intervenção do Estado em regimes democráticos, como defende, e bem, o PM.

O sistema de concursos, com critérios abstractos e sem transparência, como única forma de apoiar uma actividade com um mercado exíguo e que não exporta, como é o cinema português, é uma forma totalitária e iníqua de exercer uma “política do gosto” e constitui a perpetuação de uma aberração, que, ao longo de 42 anos, nos conduziu à situação alarmante em que nos encontramos: Portugal é o país da Europa com os índices mais baixos de filmes produzidos per capita e com menos espectadores para os filmes nacionais (chegando a ser quarenta a cinquenta vezes inferior à média europeia, em anos “normais”, ou seja, em anos em que não é exibido um filme que ultrapassa os 100 mil espectadores). E, dos 40 filmes portugueses mais vistos nos últimos 12 anos, apenas três são da autoria de subscritores do abaixo-assinado que, no entanto, são os que mais beneficiam dos apoios do ICA.

É esta realidade que os autores do abaixo-assinado vêm defender que se mantenha. E, para isso, é necessário que haja concursos com júris iluminados, nomeados pelo Estado, que detectem os projectos que têm aquilo que a lei designa como “potencial artístico e cultural” ou “coerência plástica na conjugação dos elementos artísticos” (sic), o que, como se imagina, dá margem para cometer toda a espécie de arbitrariedades.

Alegando que se trata de dinheiros públicos, os signatários acham-se no direito de serem financiados pelo Estado, em nome da excelência da sua arte. Omitem que o dinheiro não vem do OE, mas sim de taxas impostas ao sector de comercialização (que vai dos distribuidores aos canais VOD) – taxas que, de facto, constituem uma forma disfarçada de impostos, uma vez que os visados não só não participam na decisão sobre o destino das verbas que são obrigados a entregar ao ICA, como vêem parte dessas verbas servir para financiar aquilo que deviam ser obrigações do Ministério da Cultura: o funcionamento da Cinemateca-Museu do Cinema e do próprio ICA! Ou seja, desde sempre, em Portugal, ao contrário do que se dá a entender – e do que acontece em praticamente todos os países europeus –, o Estado não investe um cêntimo no cinema!

Este abaixo-assinado é, portanto, uma forma de pressionar o Ministro da Cultura para que nada se altere na forma de intervenção do Estado no sector, e para assim perpetuar o poder do lobby que, há mais de 30 anos a esta parte, tem dominado o cinema português. Um lobby que qualifica de “filmes de autor” os que têm mais estrelinhas da “crítica especializada” e remete para a desprezível qualificação de “realizadores comerciais” todos os que assinam filmes que cometem o pecado de recolher os favores do público. Se esta aberrante filosofia se aplicasse à História do Cinema, teríamos de condenar implacavelmente “realizadores comerciais” como foram Chaplin e Hitchcock, Capra e John Ford, Fellini e Visconti, Kubrick e Spielberg, David Lean e Truffaut.

Escolhidos a dedo, os júris do ICA favoreceram ao longo dos últimos trinta e tal anos uma certa ideia de cinema: a de que os realizadores têm de “ser protegidos do peso morto do público”. Foi graças a esta “linha estética” que um verdadeiro autor como é António Macedo, está há 20 anos “proibido” de filmar; que António da Cunha Telles vê os seus projectos chumbados há 12 anos e que José Fonseca e Costa, ao cabo de 11 anos em que viu os seus projectos sistematicamente rejeitados, só conseguiu filmar no ano precisamente em que os jurados foram eleitos democraticamente, e acabou por morrer em plenas filmagens!

O que os signatários pretendem é que caiba aos jurados escolhidos pelo representante do Estado (neste caso, a presidente do ICA), como no tempo de Marcelo Caetano ou na Coreia do Norte, decidir sobre a carreira dos cineastas, favorecendo os que seguem aquela “linha estética” em detrimento quase sempre de realizadores com provas dadas e de muitos jovens, que lhes vêm sistematicamente fechadas as portas para uma carreira, acabando a fazer curtas-metragens sem dinheiro, trabalhar na publicidade e escrever ou dirigir telenovelas.

Mas, sobretudo, focar nos júris do ICA o debate sobre as “políticas de cinema” é fazer o jogo dos que pretendem eternizar o papel do Estado no apoio directo aos cineastas, ao contrário do que defende, e bem, o PM. O que é urgente, por isso, é rever a Lei n.º 55/2012 e retirar ao Estado o papel de “polícia do gosto”. Lamentavelmente, um conveniente manto de silêncio oculta do público estas práticas aberrantes, desastrosas e promíscuas. Felizmente, António Costa já deu o mote para que o seu Ministro da Cultura ponha cobro a uma prática de várias décadas e tome as medidas legais que consagrem uma nova política, que permita que o cinema português reconquiste finalmente o seu público e se aproxime rapidamente das médias europeias.

Cineasta

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