Foi um processo rápido e identificável numa geração (aceitando que o tempo de uma geração são 30 anos, por mais que a obsessão pelos “balanços” tenha vulgarizado uma ideia muito pouco rigorosa de geração), aquele que conduziu às campanhas eleitorais feitas segundo o modelo do carnaval. Mas a carnavalização a que assistimos desencantados é muito imperfeita, fica-se pelo mimetismo de algumas manifestações de superfície, longe de conseguir a inversão dos signos que é fundamental no rito carnavalesco: a Morte que se transforma em Vida, o Baixo que é tomado pelo Alto, o Ignóbil pelo Nobre, o assunto sério que se torna objecto do riso. O carnaval, nos seus rituais antigos, instaura um tempo da festa e cria um mundo alternativo; as eleições, pelo contrário, já não têm o poder de interrupção do tempo profano e não conseguem impor um espaço simbólico que faça concorrência ou transtorne o real. A carnavalização torna-se assim um espectáculo triste, às vezes grotesco. Ao ponto de, se aderimos a um candidato, evitarmos olhá-lo nas representações de bouffon a que ele inevitavelmente se presta. Reservamos o prazer de espectadores da palhaçada olhando para os candidatos concorrentes. Ou então fazemos um esforço para compreender melhor o que se passa e absolvemos com maior ou menor benevolência os protagonistas da carnavalização: o que se passa é que a campanha é o momento em que se exibem sem filtros nem pudor os restos da política, em que esta se torna objecto de uma comemoração mortífera (um carnaval tétrico) da sua condição espectral, isto é, da sua condição mediática, muito especialmente televisiva. A televisão tornou-se um encenador do carnaval político e de muitos outros carnavais. A antiga magia do pequeno ecrã está hoje limitada à encenação de um ininterrupto e pindérico carnaval. E é só isto, o espectáculo carnavalesco, que resta da política? Não. Temos também, para ajudar à festa, um outro factor coercivo: o princípio anti-político da “força das coisas”. O que resta da política nestes momentos festivos do jogo eleitoral é pouco mais do que a urgência da questão sobre o que fazer com o que resta da política, muito embora seja hoje um anacronismo recitar a ideia sartriana das “Élections, piège à cons” (ou seja, “Eleições, armadilha para idiotas”). A lógica da carnavalização significa a impossibilidade de uma repolitização do espaço político. O que resta da política, tal como ela se apresenta nas suas manifestações mediáticas, é uma coisa sem nome para indivíduos tratados como intelectualmente retardados ou como crianças. O regime de infantilização do eleitor tornou-se uma regra, um jogo a que todos se vão acomodando. Ele é cúmplice de um discurso hegemónico a que se chama “comentário político” e cujo modelo tanto é a palestra didática do mestre-escola sobre as margens anedóticas da política, como um divertimento à volta das manobras tácticas do jogo político. Há em todo este fenómeno — que ora é popular, ora é infantilizante, ora é carnavalesco — um autoritarismo doce e invasivo. Esta subcultura já forneceu matéria para um debate sobre os fascismos sem fascismo, sobre novas formas de fascismo que não são incompatíveis com as democracias liberais do nosso tempo. Este “novo fascismo”, profetizado por Pasolini, apresenta-se sob a forma de uma verdadeira política da felicidade e tanto pode ser identificado na transformação da política em entretenimento como numa “nova cultura” empresarial. Desta campanha eleitoral que hoje termina, o que sobra são os restos da política. Já nem é sequer a questão: o que resta da política?
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