Este corpo é nosso
Um desempregado tenta o regresso ao mundo do trabalho. O mercado cobra-lhe, quer controlar o seu espírito. Vincent Lindon – actor que dá o seu corpo, as suas dificuldades e reservas, entrega-se e resiste – tem a sua moral. Um dos filmes do ano, A Lei do Mercado.
Stéphane Brizé não gosta do título em inglês de A Lei do Mercado/La Loi du Marché. Chama-se The Measure of a Man/A Medida de Um Homem. Explica porquê (adiantamos já que não concordamos nada): “A Lei do Mercado é um título melhor, porque também ressoa como A Lei da Selva, pelo menos em francês. Quando se falou na tradução em inglês surgiu Market Forces, mas disseram-me que era demasiado económico. Também me propuseram Dog Eats Dog. Preferiam um título que fosse mais ligado a um homem. Em muitos países traduziram a partir do título inglês encontrado, The Measure of a Man. Mas acho que empobrece. Não sei o que é ‘a medida de um homem’. Não iria ver um filme com esse título.”
Discordamos: iríamos. Fomos. Quem viu A Lei do Mercado/La Loi du Marché viu também “a medida de um homem”. Esse título dá, mais do que o original, a dimensão moral de Vincent Lindon — como em alguns corpos dos westerns, e aliás podia ser o título de um filme de Budd Boetticher. É a moral de um corpo porque a disponibilidade de Vincent Lindon, como naqueles actores de uma tradição mais antiga e que actualmente é pouco francesa, é dar o físico, as suas dificuldades e reservas, entregar-se e ser invadido. Resistir.
É esta a história de A Lei do Mercado: o conflito pela ocupação do corpo e da mente de Thierry Taugourdeau/Lindon. E é por esta forma íntima de sondar as mensagens que emitem os corpos — veja-se aquela sequência de dança em que ensinam Thierry a dançar, e como ela, aparentemente alegre e generosa, pode ressoar a algo de violento — que nada neste filme sobre um desempregado que tenta regressar ao trabalho é reduzido à retórica do cinema social. (Estamos a pensar na vertente Dardenne, os belgas Jean-Pierre e Luc, que fizeram com Marion Cotillard um simplório action movie moral, Dois Dias, Uma Noite, 2014.) A Lei do Mercado é um filme social, mas foi sujeito a um processo de decantação. Como seria um “filme social” realizado pelo Anthony Mann dos westerns desencantados?
Desempregado, na idade em que se complica de forma irreversível o regresso ao mercado, na idade em que a falta de emprego é o desapossamento de tudo, é a anulação, Thierry inicia cursos de formação, de aconselhamento profissional. Finalmente, é integrado numa empresa: vigilante num hipermercado, controla os gestos e delitos dos clientes. No processo para aí chegar, para ser seleccionado, já se iniciara a tentativa da sua despersonalização — já era ele próprio que estava a ser controlado. Já se iniciara o trabalho de invasão sobre um corpo e um espírito. Primeiro subtilmente ocupado, por fim praticamente violado.
Terceira colaboração de Stéphane Brizé com o actor, depois de Mademoiselle Chambon (2009) e de Quelques heures de printemps (2012), é o resultado apurado do encontro entre dois homens de mundos diferentes, o realizador Brizé e o actor Lindon, que se descobriram numa mesma forma de se construírem com as suas falhas. O passo dado do habitat íntimo, sentimental, dos dois filmes anteriores para as “leis do mercado” é, em si, a exposição e violentação de um corpo, das suas dificuldades, reservas. O íntimo e sentimental torna-se público e político.
E é política de actor. Se o filme é uma decantação do “cinema social”, também é uma síntese da “persona” Lindon: o caos, a desordem do mundo — como em La Moustache (2005), de Emmanuel Carrère, em que Lindon sentia o reconhecimento ausentar-se, de forma assustadora, a partir do momento em que cortava o bigode — e o melancólico heroísmo de títulos como Welcome (2009), de Philippe Lioret (em que, professor de natação, ajudava um imigrante curdo a atravessar o canal de França para Inglaterra) ou Les Salauds, de Claire Denis (em que, marinheiro, vinha de longe, como um vingador, para resolver o problema dos seus: era a sua família que estava em causa e pagava com o corpo). Sacrifício e erotização: o corpo não escapa nem a uma coisa nem a outra, filmado por homens ou por mulheres.
“Esta história cresceu com a leitura dos jornais e reportagens que nos falam de uma tragédia, o desemprego, que é aceite por todos, especialistas, economistas, que dizem que isto é normal”, conta Brizé. “Não me parece que seja normal. Deram as chaves dos países aos bancos. Ora o interesse dos bancos não é o dos cidadãos. Os cidadãos passaram a dar conta aos bancos das suas próprias perdas e os bancos vão ganhar ainda mais dinheiro e limpar as pessoas dos seus próprios bens. No momento em que escrevi esta história, não conhecia pessoas que tinham vivido isto. Quando filmei, encontrei pessoas e escolhi-as para interpretar as personagens para que o seu social fosse para além do cliché no filme, para captar o real. Discuti muito com profissionais que me descreveram os mecanismos, e projectei, claro, algo de íntimo. Thierry [a personagem que interpreta Lindon], sou eu. Escrevo sempre projectando-me. E escolhi o nome da personagem a partir de alguém que eu conhecia, eu conhecia um Thierry. Peguei apenas no nome, só isso... Um dia depois do filme feito, encontrei de novo Thierry. Tinha sido despedido. E começou a ter vida igual à do filme.” Foi por aqui, pela verificação do caos do mundo, que começámos esta conversa com Brizé sobre um dos grandes filmes do ano.
Depois dos seus dois filmes anteriores, Mademoiselle Chambon (2009), história de uma relação amorosa que quebra uma estabilidade conjugal e profissional, e de Quelques heures de printemps (2012), sobre a difícil coabitação entre um filho e a mãe que tem um tumor cerebral, A Lei do Mercado faz figura de declaração, de afirmação: sair da intimidade, do espaço interior dos sentimentos, que era o habitat dos outros filmes, quebrar com isso alguma coisa. O que se passou no seu percurso, ou seja, de onde vem A Lei do Mercado?
Senti a necessidade absoluta, neste momento da minha vida, de me confrontar com o caos do mundo e de observar o laço entre o íntimo e o social. Abriu-se espaço em mim que me permitiu sair da minha personagem principal, da sua nevrose pessoal, para a colocar em relação com o exterior.
O que nos leva a Vincent Lindon, que era já o intérprete dos outros filmes: as suas dificuldades em verbalizar, os gestos — tudo o que nos filmes anteriores era uma reserva da personagem — permitem aqui um acréscimo de ressonâncias. O que era pessoal, íntimo, vibra agora, com a exposição de Lindon ao social, com uma dimensão política. Fale-me dessa utilização da “persona” Lindon neste novo contexto, mais aberto e mais violento...
Neste filme a violência vem do exterior, do social, enquanto em Quelques heures de printemps a violência era íntima — quer do lado da personagem interpretada por Lindon, quer do lado da mãe. Aqui Lindon confronta-se com a instituição. Tenta fazer-se compreender, ouvir, exprimir o seu ponto de vista. Não é uma disfunção íntima que faz aqui progredir a história mas uma disfunção social.
Mas se o contexto destes filmes são diferentes, eles são igualmente violentos. Só que aqui a personagem não tem de dar contas das suas próprias disfunções. É um homem de rectidão, vertical, que querem colocar de joelhos. Vincent Lindon é todos estes homens: honesto, recto, doce e violento ao mesmo tempo. E era interessante observá-lo já não em dificuldades em relação a si mesmo mas em relação ao mundo que o rodeia.
Há uma sequência em que alguém tenta ensinar Lindon a dançar, como mover o corpo. Tem o ar de experiência calorosa, mas há também algo de violentação ali: como se alguém quisesse tomar o controlo daquele corpo. É esse, afinal, o tema do filme, é tudo o que se passa nele: o controlo do corpo e do espírito de alguém.
É interessante essa interpretação que faz dessa cena e a conclusão a que chega é justa: efectivamente este filme fala da vontade de uma estrutura de assumir o controlo sobre o corpo e o espírito de um homem. Mas se se pode ler isso na cena da aula de dança, a verdade é que não a filmei com essa intenção. A minha intenção era mais simples: mostrar a ligação de um casal. Este homem e esta mulher têm 50 anos, têm um filho de 18, ou seja, estão há muito juntos. E quando os vejo a terem aulas de dança juntos, vejo uma conjugalidade viva, um casal que se ama, um homem e uma mulher que têm vontade de estar juntos. Com uma única cena mostro a força da sua ligação.
Vincent Lindon é um “profissional”. Contracena no filme com “amadores”. Mas a verdade é que o poder está com os segundos, são eles que controlam — pelas personagens que interpretam, pelo papel na narrativa — a informação, o acesso às palavras. É muito interessante — porque muito verdadeira — esta inversão de poderes. Como chegou aí, como manteve o “profissional” na situação mais frágil? Havia pedaços de argumento ou diálogos que Vincent ignorava e os outros actores sabiam?
Fala com propriedade da linguagem. Isso é o que é mais complicado de filmar em cinema, a linguagem de uma função. Uma profissão é uma forma de ligação ao mundo, uma linguagem, uma forma de ser, uma energia, e é tremendamente complicado reproduzir isso com os actores — porque é difícil contornar os clichés que podemos ter em relação a uma profissão. Ao procurar actores não profissionais que não interpretavam o seu papel íntimo, mas, na maioria dos casos, a sua própria função social, eu levava também uma linguagem para o plateau. Logo, uma verdade.
Quanto a Vincent, ele estava mais fragilizado porque, ao contrário de uma rodagem clássica em que um actor aprende o seu texto, havia ali apenas informações que lhe diziam respeito mas não um texto preciso. E ele estava sempre perante alguém que conhecia perfeitamente os mecanismos e as estratégias da situação. Isso criava um desequilíbrio extremamente precioso para conseguir fazer surgir o máximo de verdade.
Há qualquer coisa nele de antigo — penso nos actores do cinema clássico americano que falavam com os gestos ou com a sua reserva mas não com as palavras. Como Jimmy Stewart ou Gary Cooper nas suas versões mais sombrias em alguns westerns, por exemplo. Que “modelo” de actor é este no actual contexto do cinema francês?
O cinema francês tem a imagem de um cinema da palavra. Não era assim há algumas décadas com actores como Jean Gabin ou Lino Ventura. Mas a nouvelle vague trouxe o verbo, ao mesmo tempo que fez soprar um vento de liberdade sobre este cinema que em França chamavam “cinema de papa”. E o verbo tornou-se o epicentro do nosso cinema e fez surgir uma geração de actores. Alguns deles maravilhosos, como Mathieu Amalric, por exemplo. Dou muitas vezes este exemplo, porque ele nasceu com Arnaud Desplechin, realizador que coloca a palavra no centro da sua dramaturgia. Vincent Lindon escapa estranhamente a esse sistema. E a sua carreira construiu-se e desenvolveu-se ao mesmo tempo que um tipo diferente de actores emergia e se impunha também. Acabou por conquistar um lugar essencial. Penso também que Vincent representa todos os homens. Ele é viril, tem um corpo sólido, mas não tem medo de mostrar as suas falhas. Está a meio caminho entre os antigos e os modernos. Entre os que não diziam nada e os que falam em demasia.
Quem é Lindon no seu cinema? Um duplo? Um veículo? A vossa colaboração alimenta-se de quê? De amizade, de cumplicidade? Vêm de mundos diferentes. Qual foi o ponto de intercepção? Qual é o contacto e como é que as coisas se passam durante o processo criativo?
Quando começo a escrever, a personagem que vai aparecer, homem ou mulher, sou eu. Construo a partir das minhas próprias falhas. E tive um encontro maravilhoso com este actor que, se vem de um mundo bem diferente do meu — vem de um meio muito burguês —, estruturou-se em redor das mesmas dúvidas que eu. E consegue reencarnar com uma força incrível trabalhadores e operários. Acho que é a pessoa que melhor faz esse tipo de homem de 45-50 anos sobre o qual tenho escrito. Demo-nos conta que nos fomos construindo sobre as mesmas falhas e problemas, somos homens que se parecem e que reagem da mesma maneira. As nossas cóleras, as nossas alegrias, as nossas penas, ecoam. Eu diria que Vincent Lindon é aquele que faz melhor de Stéphane Brizé no ecrã.
A Lei do Mercado é uma ficção. Porque é que não é um documentário? O que ganhou com a ficção?
O que me interessa é recriar o real dominando os contornos da história. A ficção permite-me decidir sobre o ponto de partida e o ponto de chegada e a minha necessidade de realismo permite-me alimentar essa ficção de verdade. A ficção dá-me também acesso a espaços aos quais eu não teria acesso com o documentário. Há lugares (a cama, por exemplo) onde o documentário não pode entrar. Tem limites. Eu quero entrar em todo o lado.
Utiliza como actores pessoas que pertencem ao mundo descrito no filme. Deve haver uma série de sobreposiçõs, jogos de ironia, como se fosse a história privada, secreta, do próprio filme. Conte algo dela. Como aconteceu o casting? A proximidade a um mundo específico era condição?
O director do hipermercado no filme, por exemplo, não é director de hipermercado na vida real. Dirige uma empresa que nada tem que ver com as grandes superfícies. Mas o director do hipermercado onde rodámos A Lei do Mercado interpreta no filme a personagem do homem que quer comprar a casa-caravana. Ele não queria interpretar a personagem do director do hipermercado, porque percebeu logo que o filme ia ser hiper-realista e não quis sofrer represálias, não quis que o desprezassem por causa disso. Ele não estava muito à vontade com aquela história da personagem da empregada que se suicida, para ele isso seria um pesadelo, não quis interpretar esse papel. Na vida real esse homem é um militante a criar no quotidiano condições de trabalho correctas, por isso não fazia sentido para ele mostrar-se num papel que podia atrair algum desprezo sobre a sua própria pessoa. Arranjei-lhe então outro papel: era divertido vê-lo discutir o preço a pagar por uma casa-caravana, porque ele é um comerciante, domina perfeitamente a argumentação nesse tipo de situações.
O casting processou-se da mesma maneira que um casting clássico. Só que não nos dirigimos a agentes de actores, mas propusemos a zés-ninguém que fizessem ensaios. É espantoso ver a capacidade de algumas pessoas de serem justas em frente a uma câmara e utilizei essa rara particularidade para alimentar o meu filme de realismo.
Com excepção dessa história que contei sobre o verdadeiro director de hipermercado que não quis interpretar esse papel para evitar confusões, na verdade toda a gente interpreta o seu próprio papel, ou melhor, utiliza a sua própria personalidade numa situação imaginária — o que não é a mesma coisa.
O cinema passou a ser algo de diferente para o realizador Stéphane Brizé?
A Lei do Mercado e sobretudo a maneira como o realizei, com equipa ligeira, permitiu-me adaptar o utensílio cinema à minha mão. Foi um alucinante sentimento de ligeireza a que tive acesso [pequena equipa e orçamento, realizador e actor prescindiram dos salários em favor de uma participação nos lucros para a equipa ser paga com dignidade, sem argumento, sem maquilhadora, sem iluminação]. Acabei de adaptar o primeiro romance de Guy de Maupassant, Une Vie. Nada que ver com as temáticas, mas impus a este filme de época a mesma, ou quase a mesma, ligeireza de A Lei do Mercado: poucos técnicos, rodagem com a câmara ao ombro, sem projectores no plateau. Essa ligeireza permite-me procurar, testar, enganar-me, fazer, refazer antes de encontrar.