Jacco Gardner: O sonho comanda a canção
O holandês que descobrimos com Cabinet of Curiosities superou-se. Hypnophobia é a magnífica obra de um músico fascinado com a possibilidade de "podermos moldar o futuro". Jacco Gardner toca sábado em Lisboa, domingo no Porto.
A hipnofobia é aqui de outra natureza. Se quando Jacco Gardner nos pega pela mão e nos convida a viajar pela sua música a realidade tem esta textura de sonho, então o sonho ele mesmo só pode ser desilusão. Será melhor mantermo-nos acordados.
A entrevista vai ainda no início. Não demorou até que Jacco Gardner se concentrasse no tema central do novo álbum. “Hypnophobia fala do momento em que o sonho e a realidade se misturam, quando desaparece o filtro da realidade e como que sentes os teus sentidos a expandirem-se. Imagino que seja semelhante a tomar drogas alucinogénias” – “eu não preciso de as tomar, imagino que algumas pessoas precisem”, acrescentará em aparte.
Gardner gravou Hypnophobia no seu estúdio caseiro em Hoorn, pequena localidade a 40 quilómetros de Amesterdão. É obra de um homem abençoado pelo tempo que habita. Quem lhe aplicar a palavra retro, acentuará, estará rotundamente equivocado. “É maravilhoso viver neste tempo em que podemos ver o passado tão claramente, através da Internet e de todos os diferentes media. Com o passado a revisitar constantemente o presente, temos o luxo de fazer exactamente o que quisermos com ele e moldar o futuro."
Olhando para trás, Gardner descreve o seu primeiro álbum como uma tentativa de “entrar em contacto com a criança” dentro dele: “Uma criança a quem não interessa se as ideias são boas ou más e que deixa simplesmente a imaginação fluir livremente." Hypnophobia, por sua vez, será uma tomada de consciência, a de que “essa inocência não desaparece no momento em que nos tornamos adultos”. Não é um disco para crianças. É o álbum de um músico que sintonizou “a qualidade infantil de uma imaginação ilimitada”.
Fantasia
Com o som característico do baixo tocado com palheta a dar corpo às canções, com a voz a tornar-se liquefeita ao sabor dos efeitos que lhe são aplicados, com esta capacidade de criar pop de câmara, folk psicadélica delicada, space-rock em mutação constante à medida que atravessa a galáxia ou pedaços de delicadeza barroca transformados em matéria eléctrica, o segundo disco de Jacco Gardner é uma fantasia sonora deslumbrante – acompanha-se a peça central, os oito minutos de Before the dawn, carrossel circense feito rock de batida insistente e propriedades hipnóticas assinaláveis (camadas e camadas de teclados a sobreporem-se em melodias cruzadas), a mente rodopia com o voltejar programado por Gardner e Hypnophobia torna-se um território que não mais queremos abandonar.
“Muita gente, a partir do momento em que acorda, só quer esquecer os sonhos que teve o mais rapidamente possível para beber o seu café e voltar ao trabalho. Mas o sonho é uma forma muito mais pura e nítida de comunicar e de descobrires mais sobre ti próprio." As canções de Hypnophobia são a tradução sonora desse estado de vigília. “Uma sensação de viagem, sem termos controlo da direcção que ela toma, mas a visitar lugares a que nunca fomos antes."
Neste momento, Gardner deixou de se preocupar como antes com as estruturas convencionais de uma canção e passou a concentrar-se em “peças mais longas”, atraindo o ouvinte até si à medida que, “de uma forma muito subtil”, acrescenta instrumentos à mistura – um deles é o Optigan, um teclado semelhante ao Mellotron, de vida breve na década de 1960, que, através de discos flexíveis transparentes de 12”, “traduz a luz em ondas de som electrónicas” (não poderia haver instrumento mais adequado à música de Gardner).
Quando falou com o Ípsilon, estava em França a preparar-se para mais uma data da digressão que o trará este fim-de-semana a Portugal. Sábado estará no Musicbox, em Lisboa, domingo no Hard Club, no Porto (primeira parte a cargo de The Japanese Girl). Será a terceira visita do multi-instrumentista de 27 anos a Portugal, depois da estreia no palco do festival Milhões de Festa, em 2013, e do regresso no ano passado. Há dois anos, em Barcelos, a horas de entrar em palco mostrava-nos um par de fotos no seu telemóvel. Teclado inutilizado, partido em três partes. Jacco estava nervoso. Não só o palco lhe parecia habitualmente um espaço pouco convidativo – ele gostava de controlar todos os aspectos da música e ali, com o imprevisível sempre à espreita, era impossível consegui-lo –, como tinha de lidar com aquele contratempo. À noite, cabelo louro caindo sobre o rosto, qual Brian Jones beatífico, sem drogas, sem sorriso melífluo e sem tendências autodestrutivas, não se notariam quaisquer inseguranças. A pop onírica que cria, sequência de peças de filigrana criadas por um músico de formação clássica, apaixonado pela canção enquanto espaço de fantasia, mostrou-se particularmente cativante. Paisagem de sonho, verdadeiramente.
Agora, enquanto nos confessa desde Bordéus que o dia não está a correr particularmente bem (um dos membros da banda estava naquele momento no hospital a tentar salvar uma garganta demasiado infectada), encontramos um Jacco Gardner diferente. As propriedades da sua música não mudaram radicalmente, mas o ambiente de conto fantástico infantil transformado em delícia psicadélica (termo que não lhe agrada particularmente) sofreu uma suave metamorfose. Hypnophobia é um álbum ambicioso e misterioso. Há mais sombras no universo de Jacco Gardner – mas também mais certezas.
Jacco Gardner deixou de se ocupar em concerto dos teclados. Deixou de ter de estar concentrado em todas as definições a decorar e a activar para que a sua voz e os sons extraídos das teclas sejam exactamente os pretendidos. Em Lisboa e no Porto, vamos vê-lo de guitarra a tiracolo. A banda atrás de si e ele, livre para viajar na música, a oferecer-nos o sonho de onde extraiu as canções deste fascinante Hypnophobia.