Isto esvai-se em fumo, ficam sinais de Skolimowski, Laurie Anderson e Anita Rocha da Silveira

Quarta-feira foi o dia mais intenso no festival de Veneza, com 11 Minutes, Heart of a Dog e Mate-me Por Favor. A morte fica-lhes tão bem.

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A realizadora brasileira Anita Rocha da Silveira entre as actrizes de Mate-me Por Favor AFP / TIZIANA FABI
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Laurie Anderson em Veneza, onde apresentou o seu filme Heart of a Dog AFP / TIZIANA FABI

Não dá a medida da catástrofe: a energia apocalíptica que deixa tudo reduzido a fumo, personagens, carros, edifícios, e que submeteu uma sala de cinema ao silêncio, até aos aplausos que se ouviriam depois, e que se repetiriam mais tarde, mais intensos, recebendo o realizador polaco na conferência de imprensa.

Onde alguém lembrou (bem lembrado...) que apocalíptico assim só aquela sequência em que tudo explode em Zabriskie Point, de Antonioni. Onde alguém lhe disse (bem dito) que o seu cinema, que mostra continuar em terrenos de agreste beleza, aos 77 anos (Quatro Noites com Anna é de 2008, Essential Killing de 2010...), merece ser coroado no sábado com o Leão de Ouro.

Essa sequência – não vamos mais falar dela, mas preparem-se... já não há filme de acção assim, e 11 Minutes nem é action movie – foi o ponto de partida no argumento de Skolimowski. Que depois – fase mais penosa, diz ele, o acto de escrever – tratou de fazer com que as personagens estivessem todas ali, ou passassem todas por ali, por uma praça de Varsóvia, onde tudo... se esvai em fumo.

Assim dá para pensar que este é aquele tipo de filme em que várias personagens se cruzam – um marido ciumento com a possibilidade de a mulher, actriz, ceder ao casting couch, o produtor de cinema libidinoso, um vendedor de cachorros quentes e ex-presidiário, o limpa-janelas, as freiras... – e que nessa coreografia, nesses 11 minutos da vida de cada uma delas, entre as 17h e as 17h11, está uma qualquer esperança e um qualquer statement sobre a redenção.

Há mesmo realizadores especialistas nisto, pornógrafos da redenção, usando as “histórias cruzadas”. Podia ser esse tipo de filme, e por isso Skolimowski rebenta com ele: não são histórias, nem há um plot se calhar; são momentos na vida de pessoas sobre os quais o o realizador actua como um pintor (que Skolimowski também é) age sobre uma tela.

Os elementos que assinalam ao espectador onde é que uma cena ou história se cruzou com a outra parecem ser sempre mínimas sinalizações de referência. A montagem parece ir, antes, atrás da energia que esses motivos, linhas de força abstractas, desencadeiam – até porque, disse Skolimowski, a estrutura nasceu no plateau durante a rodagem, com o prazer de trabalhar com a equipa. E se há alguma coisa ao fundo não é a redenção, é a destruição.

O prenúncio de fim: eis o que vibra em cada plano ou sequência de 11 Minutes quando não sabemos exactamente de onde vêm ou para onde vão as personagens. Se há alguma história que este filme conta não é a delas mas é a nossa, a do nosso desaparecimento, quando ficarmos...um ponto no ciberespaço, numa qualquer cloud – continuar seria quebrar a promessa de não regressar à sequência final, por isso ficamos por aqui, envoltos na fumaça.

Um filme transbordante
Mate-me Por Favor, pede o título da primeira longa-metragem de Anita Rocha da Silveira (Horizontes). Que excitação a morte, que dia grande, este, em Veneza. Com o sangue, com o sexo, com as heroínas deste filme, meninas de um bairro burguês do Rio de Janeiro, a Barra da Tijuca, onde os condomínios gradeados e os centros comerciais protegem os habitantes dos enormes baldios à espera de mais torres e dos Jogos Olímpicos de 2016.

As raparigas de Mate-me Por Favor não ficam dentro de casa, não respeitam o aviso de não se meterem a andar a pé, vão atrás do cheiro do sangue e do cheiro do sexo, porque esse cenário em branco, novo, sem história, com as torres a defenderem-se da morte (portanto: da vida) está mesmo a pedir que seja violentado – e assim é, com os cadáveres que aparecem ali dia sim, dia não.

"Como a gente transbordou, como a gente se acrescentou...”, dizia uma das actrizes do filme, Mariana Oliveira, contando, em conferência de imprensa, as conversas sobre sexo e sobre morte com a realizadora, a iniciação ao cinema (de Lucrecia Martel ou de David Lynch; vendo a Sandrine Bonnaire de Aos Nossos Amores, de Pialat, as Virgens Suicidas, de Sofia Coppola ou o Carrie, de Brian de Palma).

Nesse fazer corpo com a música e com a sensualidade das actrizes e das personagens, e fazer tudo isso mexer com um cenário que foi construído para impedir, controlar ou nivelar os excessos de expressividade, a Anita Rocha da Silveira de Mate-me Por Favor lembra a Céline Sciamma de Bando de Raparigas, filme ainda nas salas portuguesas.

Mas o filme de Anita é, de facto, mais transbordante. No início está a recordação da realizadora de um episódio mediático no Brasil e também em Portugal, em 1992: o assassinato da actriz Daniella Perez pelo seu colega de telenovela Guilherme de Pádua; o corpo foi encontrado nos baldios da Barra da Tijuca, as fotos reproduzidas na imprensa, Anita tinha o cadáver nas páginas dos jornais e a actriz “viva” à noite na telenovela. Esse episódio, por ser tão biográfico, foi determinante na cumplicidade e reconhecimento entre a realizadora, as actrizes e as personagens.

E é isso, afinal, que produz a sensação de excitação que toma conta do filme, que se vai fantasiando, desregrando, musicando, cantando – até ser cúmplice na conquista final da Barra da Tijuca, tal como os zombies de João Pedro Rodrigues a ocuparem Alvalade, em Lisboa, na Manhã de Santo António. Se Boi Neon, do brasileiro Gabriel Mascaro, é o filme mais excitante do festival (foi também exibido na secção Horizontes), Mate-me Por Favor, da sua compatriota, foi o mais excitado.

Laurie sem medo
Perguntámos a Laurie Anderson porque é que no seu filme Heart of a Dog (concurso) contar histórias é sempre um mecanismo que se liberta a partir de uma morte: do seu cão, Lolabelle, que cegou, que sabia tocar piano; da mãe, que nos momentos antes de morrer, Laurie presenciou, mostrou à família a desagregação da sua linguagem (Laurie é wittgensteiniana, sem linguagem não há mundo); há aquele episódio em que ela quase deixou os irmãos pequenos afogarem-se num buraco que se abriu no lago gelado; ou os casos de síndrome de morte infantil, dos bebés que morrem inexplicavelmente durante o sono (Laurie pensa que talvez eles estejam a sonhar – e ninguém consegue ainda explicar porque é que se sonha – e atrapalham-se nas histórias que encontram no sonho).

À pergunta, Laurie respondeu que pelo menos nos Estados Unidos vigora uma espécie de princípio segundo o qual a morte e a dor devem ser experiências a anestesiar, o domínio do don’t feel anything, e que com Heart of a Dog quis abrir o espectador a essa experiência.

É um pequeno filme sem medo de uma aventureira que tacteia aquilo de que nenhum ser humano regressou para poder contar. Filme-ensaio hipnótico de onde se sai tocado pela possibilidade de transpor o fosso entre as palavras e o mundo, continua o que Anderson faz nas suas performances: histórias – a palavra e a sua sensualidade mas também a sua dificuldade –, imagens e a música do violino. E as suas referências privadas, Kierkegaard e Wittgenstein, a mãe e os irmãos, Gordon Matta Clark e Lou Reed. E Lolabelle, claro.

A morte fica-lhes, a Jerzy, Anita e a Laurie, muito bem.

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