IndieLisboa: mata-nos de novo, por favor
Em 2016, o IndieLisboa terá como Heróis o mal comportado Paul Verhoeven e o melancólico Vincent Macaigne. Um acontecimento: The Family, de Shumin Liu, cinco horas. E, ainda, a potência sensual dos brasileiros Mate-me por favor e Boi Néon.
A abrir, a 20 de Abril, Love & Friendship, de Whit Stillman, a encerrar, a 1 de Maio, L’Avenir, o filme que valeu a Mia Hansen-Love o Urso de Prata para Melhor Realizador no Festival de Berlim. Whit e Mia foram os Heróis Indie em 2015. A edição 2016, que não abandona os seus eleitos, vai então mostrar como eles continuaram. Num programa, anunciado esta terça-feira, em que os Heróis são, desta vez, o cineasta holandês Paul Verhoeven e o actor francês Vincent Macaigne.
Se a escolha de 2015 era redonda, já que os dois nomes reforçavam uma mesma liturgia confortável para essa coisa que se chama "indie" – cinema de argumento, diálogos, actores –, as escolhas de 2016, a segunda edição depois do "relançamento" em 2015 (mudanças no figurino que se seguiram ao que, na opinião dos próprios, foi o mais desanimado Indie), são, felizmente, mais desconfortáveis. Estava, estávamos, a precisar de uma sacudidela.
Por um lado, faz a integral – com excepção do trabalho televisivo e do novo Elle – da obra de um cineasta que sempre pairou nas fronteiras do exploitation e do sarcasmo: Paul Verhoeven, realizador que no seu país de origem, a Holanda, foi responsável por alguns dos maiores sucessos de uma cinematografia (Delícias Turcas, 1973), mas que foi criticado por ser excessivamente “comercial”, não suficientemente “autor”. E que por isso atravessou o Atlântico em direcção à indústria americana (Robocop, de 1987, abre o ciclo). Terá sido aí – é uma hipótese a verificar – que, curiosamente, o seu cinema se expandiu. Verhoeven olhou maravilhado e horrorizado para o espectáculo americano e vestiu essa camisola. Terá sido em Hollywood que foi, então, mais “autor”. Showgirls (1995) o filme do insucesso e o filme dos prémios para os piores desse ano, terá de ser revisto sem ser como guilty pleasure – é, com Starship Troppers, a obra máxima do realizador.
Não é só o trabalho televisivo de Veroeheven que está ausente – a nova longa, Elle, com Isabelle Huppert, a segunda longa-metragem depois do regresso de Hollywood (Black Book foi o reencontro com os temas europeus), que estará a estrear-se por esses dias em Cannes e em França, também não figura na homenagem. Mas esse filme e a capa que já motivou em Novembro nos Cahiers du Cinéma, revista que sempre fez fine bouche a Verhoeven, é sinal de que uma reavaliação pública estará em andamento. O Indie está lá.
Mas que tem, então, o septuagenário Verhoeven a ver com “o novo Depardieu”, como o Observer designou o actor Vincent Macaigne, que é o outro Herói Indie de 2016? Nada. Mas é isso que quer o Indie, “a desproporção” entre um voo sobre uma carreira e a demonstração de afecto por algo que ainda é proposta, descoberta. “[Macaigne] estava em todos os filmes de que gostávamos, pertence a uma geração que está a minar o cinema francês mais naturalista – é essa a tradição, mas está a renová-la, é um choque eléctrico”, diz Nuno Sena da direcção do festival
Actor, cineasta, encenador, 37 anos, Vincent Macaigne vem de facto crescendo com um certo ar de Depardieu, o corpo à beira do excesso, o romantismo triste, a energia devoradora. Muitos dos filmes em que entra, curtas e longas (na selecção estarão filmes com e filmes de Macaigne), mostram homens em perda no mundo das mulheres. Se quisermos reparar nas filiações, tradições e renovações, uma curta como Les Lézards, de Vincent Mariette, parece materializar, em Macaigne e no seu comparsa Benoit Forgeard, o Depardieu e o Patrick Dewaere de outros tempos – a tristeza masculina e o horizonte de misoginia lembram, evidentemente, o Bertrand Blier de Les Valseuses. Também se pode reparar que uma longa como Une Histoire Américaine, de Armel Hostiou (2014), só existe por e para Macaigne. Quer dizer, ele começou há pouco e já se sobrepõe ao filme que está em volta.
Quatro longas-metragens estarão em competição nacional nesta edição: Estive em Lisboa e Lembrei de Você, de José Barahona, O Lugar Que Ocupas, de Pedro Filipe Marques (A Nossa Forma de Vida), Paul, de Marcelo Felix, e Treblinka, filme-ensaio de Sérgio Tréfaut – com Isabel Ruth num comboio, como sobrevivente do Holocausto. Em sessão especial, no dia 25 de Abril, um dos filmes portugueses que deram que falar em Berlim, Cartas da Guerra, de Ivo M. Ferreira – o outro, que teve um Urso de Ouro, Balada de Um Batráquio, de Leonor Teles, concorre na categoria de curtas nacionais.
Na competição internacional de longas, destacam-se: Chevalier, de Athina Rachel Tsangari; Flotel Europa, do sérvio Vladimir Tomic – as cassetes vídeo de uma adolescência passada nos anos 90 num barco de refugiados ancorado em Copenhaga, autobiografia pícara e turbulenta a evocar, mas em tom documental, os primeiros filmes de Kusturica; James White, de Josh Mond; Kate Plays Christine, de Robert Greene; Mate-me por favor, de Anita Rocha da Silveira, filme que se excita, fantasia, que se vai desregrando, musicando e cantando para ser cúmplice de um bando de adolescentes zombies da Barra da Tijuca, Rio de Janeiro; ou ainda The Family, de Shumin Liu.
Este, com quase cinco horas de duração, é um dos “acontecimentos” do Indie. Se há uma luta entre a duração dos filmes e a mecânica dos festivais, que não deseja deparar-se com pedras na engrenagem, nos últimos anos tem-se concretizado uma tendência integracionista: em vez de afastar os filmes longos, criar com alguns deles um “acontecimento” – As Mil e Uma Noites, de Miguel Gomes, em Cannes 2015, que o digam. The Family sê-lo-ia independentemente de qualquer marketing de programação: se Wang Bing se coloca do lado dos que foram postos à margem de uma História oficial chinesa, contrapondo uma narrativa alternativa, Shumin Liu segue a vida de uma família normal de classe média – os seus membros são interpretados pelos próprios –, mas, diz-nos este plácido filme que contemplou oViagem a Tóquio, de Ozu, aceder à normalidade é também violentar a memória, anulá-la é também contribuir para o esquecimento.
Falámos antes no filme de Anita Rocha da Silveira, Mate-me por favor: Foi uma das excitações do Festival de Veneza. A outra, e outro grande filme do Indie, foi o sensualmente poderoso Boi Néon, de Gabriel Mascaro, que encontra no Nordeste brasileiro um admirável mundo novo. Estará na secção Silvestre – belo título para uma secção dedicada ao cinema mais ferozmente jovem, e mais delicado. Juntamente com One Floor Below, de Radu Muntean, filme misterioso e insondável que cresce em nós, espectadores, à medida que interrogamos a nossa sensação de solidão na sala, quando, por inacção da personagem principal – um homem que testemunha um crime e... nada diz –, ficamos sem thriller, ficamos com filme sem género. E sem redenções, na tela e fora dela.
Na secção Director’s Cut haverá Il Fantasma dell’Opera, de Dario Argento, Jacques Tourneur, le Médium (Filmer l’Invisible), de Alain Mazars, sobre o realizador de Cat People. E valerão a pena, aqui, as experiências que são Nuytten/Film, de Caroline Champetier, e Helmut Berger, Actor, de Andreas Horvath.
O primeiro, sobre o director de fotografia Bruno Nuytten (Duras, Zulawski, Téchiné, Berri...) começa por interrogar a razão de um desaparecimento voluntário. Nuytten fez a sua última direcção de fotografia em 1986, tendo dois anos depois realizado Camille Claudel. Mas é como se (se) renegasse: o fabricante de coisas bonitas remeteu-se ao papel, mais informe, mais condenado ao desaparecimento, de espectador de coisas bonitas. Todo o filme decorre em tom de conversa que deseja apagar-se. Como se o "filme de artista" fosse impossível. É o que é – retrato impossível –, mas em tudo o resto opondo-se a qualquer delicadeza, o filme em que a musa de Visconti, que passeou a sua arrogante beleza no jet set dos anos 70, se deixa expor como um homem de 70 anos rodeado de medicamentos para a depressão e fantasmas. Helmut não verga, ainda se crê Ludwig, o realizador não consegue entrevistá-lo, segue-o pelas suas ilusões extravagantes – é retrato de um “casal” e das suas agressões físicas e verbais, a arrogância de classe de Helmut Berger sobre o “burguês” Andreas Horvath a aparecer. A “violência e paixão” é uma máscara, como o título do filme indica, Helmut Berger, Actor, e como se pode seguir de forma menos ofensiva em Autoportrait, a autobiografia publicada pelo que em tempos foi considerado o homem mais bonito da Terra.