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Ideologia e “prática” na gestão dos monumentos nacionais

Sou contra o uso privado das receitas geradas nas tais “ilhas de abundância”. E sobretudo sou contra qualquer política de património que não seja centrada na promoção da cidadania.

Ainda quanto aos modelos de gestão de monumentos e museus em Sintra e em Belém, afirma José Maria Lobo de Carvalho (JMLC) neste jornal (PÚBLICO, 15.4.2016) que as teses por mim também aqui defendidas (PÚBLICO, 23.3.2016) apenas levantam “questões gerais e muitas vezes mais ideológicas do que práticas”. Acrescenta que a minha visão “é muito parcial”, porque “aborda a questão dos custos, mas esquece a questão das receitas”. Com o respeito devido, que é muito, e tendo até em conta que estamos muito mais de acordo do que o meu ilustre contendor porventura imaginará, permito-me discordar dele nestes dois pontos.

Primeiramente quanto a ideologia: não existe nada de mais ideológico do que celebrar desempenho gestionário que praticamente exclua da visita a museus os cidadãos portugueses – o que JMLC também reconhece acontecer em Sintra, sob gestão dos Parques de Sintra Monte da Lua (PSML). Sim, defendo uma ideologia de apropriação cidadã dos monumentos e museus nacionais. E tal como em ciência não existe nada mais prático do que uma boa teoria, também em política se dirá o mesmo relativamente a uma boa ideologia.

Depois quanto a custos e receitas. Comparem-se os gastos em que uma família de dois adultos e duas crianças pequeninas (de 6 e 9 anos, por exemplo, que nos PSML já pagam quase como adultos) tem de incorrer para visitar os monumentos e museus em Sintra e em Belém/Ajuda, num país em que quase 80% das famílias declaram em sede de IRS possuir rendimentos mensais inferiores a 1000 euros (e isto já sem falar em trabalhadores no activo com salário mínimo ou contratados a prazo e pensionistas): cerca ou mais de 20% do seu rendimento mensal no primeiro caso; muito menos de 5%, no segundo. Eis aqui a diferença entre ideologia e “prática”. Custos? Seguramente existem e constituem um problema que muito ganhará em ser abordado numa óptica de diversificação de receitas, embora os impostos que pagamos, usados para manter a ordem das ruas, possam talvez também servir, se não for pedir demais, para promover o acesso à nossa memória monumental colectiva, acumulada em séculos e milénios sem que fosse por sabê-la bem vender a turistas – mas “apenas” porque a considerámos para nós necessária e, em bastos casos, nos mobilizámos em sua defesa.

E depois, que novo e virtuoso modelo de gestão é esse que só se aplica a ilhas de abundância e assegura o êxito pelo esmifrar de visitantes estrangeiros, tidos como porcos mealheiros, expulsando os nacionais? Sejamos francos e honestos: Se amanhã a tutela do património cultural tivesse simplesmente como objectivo fazer do parque museológico e monumental de Belém-Ajuda uma galinha dos ovos de ouro altamente superavitária, argumentando por exemplo que assim poderia melhor conservar e promover os conjunto patrimonial, bom, bastaria seguir o exemplo de Sintra em matéria de preços de bilhetes. Mas para isso nem seria preciso nenhum gestor qualificado, nenhum novo modelo societário.

Quer isto dizer que está tudo bem? Ou até que eu entendo que só os serviços centrais do aparelho de Estado podem gerir museus e monumentos nacionais? Nada disso. Mas, sim, sou contra o uso privado das receitas geradas nas tais “ilhas de abundância” (mesmo quanto tal uso é feito por sociedades de capitais públicos). E sobretudo sou contra qualquer política de património que não seja centrada na promoção da cidadania. Estarei a pedir a Lua? Não creio e dou uma sugestão de possível aplicação imediata: a inclusão dos monumentos e museus nacionais no âmbito do chamado “Cartão + Cultura” previsto no programa do actual Governo, alargando os critérios da sua atribuição, seja em matéria de base de incidência (que poderia ser calculada a partir dos rendimentos declarados em sede de IRS), seja em termos de entidades atribuidoras (que poderiam ser os museus ou monumentos, na primeira visita que lhes fosse feita, ou as autarquias locais ou até as repartições de finanças).

Como sempre o problema não está na “prática”, entendida aqui como virtuosismo ou modernidade da gestão. Está na ideologia. E neste sentido existe um amplo caminho à nossa frente. Falta apenas vontade em percorrê-lo. Vontade sobretudo política, porque depois os técnicos, mormente os gestores, se lhe acomodam bem, sendo capazes da inventiva que os caracteriza.

Arqueólogo

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