Salsichas à solta em Austin, Texas

Imagine uma salsicha de pacote com forma, enfim, fálica, sexualmente atraída por um pãozinho de leite com formas femininas, enfim, rotundas.Imagine, para já, Sausage Party, o filme de animação para adultos mais ousado desde South Park.

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Sausage Party é seguramente o filme de animação para adultos mais ousado desde South Park, um projecto há muito acalentado por Seth Rogen, que produziu, escreveu o argumento e deu voz a uma das personagens

Imagine o leitor uma salsicha de pacote com forma, enfim, fálica, sexualmente atraída por um pãozinho de leite com formas femininas, enfim, rotundas. Ou uma relação dúbia entre um bagel com problemas existenciais e um pãozinho sírio agressivo. Um mundo em que as mercearias de um supermercado ganhassem formas e sentimentos humanos, acreditassem num deus bom e poderoso e num além paradisíaco, até que a realidade lhes viesse mostrar que... o mundo real não era bem assim. E que isso terminasse numa orgia monumental, com direito a fellatios praticados por ambos os géneros, cunnilingus em boa e devida forma e penetratios em ambos os sexos, efectuados por embalagens de gel de duche, pacotes de sumos de frutas e latas de atum.

Tudo isto aconteceu há poucos dias em Austin, Texas. Enfim, na realidade virtual de um filme intitulado Sausage Party, apresentado no festival South By Southwest. Trata-se seguramente do filme de animação para adultos mais ousado desde South Park, um projecto há muito acalentado por Seth Rogen, que produziu, escreveu o argumento e deu voz a uma das personagens e cuja realização foi entregue a uma dupla formada por Conrad Vernon (Shrek 2, Monstros vs. Aliens) e Greg Tiernan.

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A versão apresentada era realmente in progress, faltando terminar não só a banda sonora (do multi-oscarizado Alan Menkel) como também a própria animação (algumas cenas foram vistas com imagem fixa), mas o público que enchia por completo os 1300 lugares do belíssimo Paramount Theatre riu a bom rir durante toda a projecção, irrompendo por vezes em aplausos entusiasmados.

Um precursor
A participação do público é uma das marcas do festival South By Southwest (SXSW para os amigos) que se realiza anualmente por esta altura em Austin. A primeira edição teve lugar em 1987, começando por ser um evento essencialmente musical, e a sua vertente música continua a ser a que atrai maior número de visitantes. Contudo, muito cedo acrescentou o cinema e, mais recentemente, as tecnologias interactivas ao seu centro de interesses (recorda-se que o Twitter foi aqui lançado em 2007), sendo considerado uma das mais importantes montras de inovação tecnológica nos EUA. Este ano, os oradores incluíram Barack Obama, que falou do papel da tecnologia na vida cívica, e Michelle Obama, que juntou um painel de convidados para debaterem uma série de questões que iam da música ao activismo, passando pelo tema quente da diversidade.

A reunião das três facetas música, cinema e tecnologias interactivas empresta a SXSW o seu carácter único, transformando-o num precursor daquilo que provavelmente virão a ser os festivais no futuro.

A vertente cinema de SXSW tem vindo a ganhar importância no panorama dos festivais americanos, sendo já considerado a segunda mostra de cinema indie norte-americano depois de Sundance (que se realiza em Janeiro e ainda domina este segmento), tanto em termos de número de filmes exibidos (143 longas-metragens este ano, das quais 89 em estreia mundial, a que se vêm somar 114 curtas, tudo repartido por cerca de 20 secções) como de espectadores (estas contas estão ainda por fazer, mas a avaliar pelas sessões esgotadas em mais de 50% dos casos e da necessidade de se acrescentarem sessões para os filmes mais populares parece indicar que foram ultrapassadas as expectativas).

Fiel às suas origens, o festival mantém uma forte componente de documentários musicais – uma das suas secções, 24 Beats Per Second, é-lhes inteiramente dedicada. Este ano, Miss Sharon Jones, o mais recente documentário da lendária cineasta Barbara Kopple (dois óscares, em 1976 por Harlan County U.S.A. e em 1990 por American Dream) foi a estrela da secção. O filme acompanha Sharon Jones, dona de uma magnífica carreira como cantora de blues, num momento charneira da sua vida em que lhe é diagnosticado um cancro no pâncreas e demonstra que o talento de Kopple não se limita aos grandes murais da intervenção social, sendo igualmente sensível no retrato intimista de uma mulher dotada de uma extraordinária força anímica.

A secção incluiu também uma semificção, And Punching the Clown de Gregori Viens, com e sobre o cantor e stand-up comedian Henry Phillips e as suas dificuldades em se adaptar às novas exigências da era Youtube uma reflexão simultaneamente divertida e profunda sobre a luta quotidiana do artista para se manter fiel a si mesmo.

A stand-up comedy teve aliás um papel de relevo, com vários filmes abordando este género específico do entertainment. Richard Klein, uma das lendas da comédia e personagem central do documentário Richard Klein Still Can't Stop His Leg foi um dos convidados de uma hilariante sessão liderada pelo realizador e produtor Judd Apatow, que começou a carreira como stand-up comedian, e que não poupou nenhum dos temas que dominam a actualidade americana, desde Donald Trump até Bill Cosby.

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Everybody Wants Some centra-se com bonomia na despedida da adolescência irreflectida dos membros de uma equipa de basebol antes de enfrentarem as responsabilidade da vida adulta
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Apatow participou em SXSW principalmente como produtor do novo filme de Pee-wee, uma das mais bizarras personagens da comédia americana, intitulado Pee-wee's Big Holiday, realizado por John Lee e lançado mundialmente pela Netflix. Talvez haja quem se lembre que o primeiro filme de Tim Burton, nos idos de 1985, se chamava Pee-wee's Big Adventure; a personagem de Pee-wee Herman, alter ego do actor Paul Reubens, servia-lhe como uma luva para iniciar o retrato bem humorado e acutilante da pequena cidade americana, dos seus traços, valores e vícios que veio a caracterizar o melhor da sua filmografia. Dificilmente exportável, sem Tim Burton o humor previsível e pouco subtil de Pee-wee tem sobrevivido em shows e espectáculos por toda a América, onde tem hordas de fãs indefectíveis. A nata mais ruidosa desses admiradores encheu a sala do Paramount para esta nova aventura cinematográfica do seu herói, criando um verdadeiro happening de histeria colectiva. Único.

Vintage
Para os padrões americanos, Austin é uma cidade de média dimensão, com cerca de dois milhões de habitantes (área metropolitana). Só no Texas, Dallas e Houston superam-na em termos populacionais e de importância económica. Talvez exagere por culpa do enjoo provocado pela mistura fatal com odor a barbecue, hambúrguer e tacos que paira no ar nestes dias com 30º, pouca sombra e nenhuma brisa se disser que a capital do Texas é pouco dotada de beleza natural ou de qualquer outra atracção que a distinga das suas congéneres, já que uma cidade cortada a meio por um rio - ainda para mais o Colorado, de ressonância cinéfila incontornável - tem sempre vantagem, e a mão-cheia de edifícios vintage como a ópera, reconvertida em clube exclusivo, o Driskill Hotel, um dos hotéis históricos do país, ambos edifícios dos anos 80 do séc. XIX, o já referido cine-teatro Paramount, de 1915, em excelente estado de conservação, o cinema Ritz, de 1925, que conserva apenas a fachada original mas ainda funciona como cinema (pertencendo a uma cadeia aqui nascida, Alamo Drafthouse, conhecida pela sua cinefilia, pelo empenho na luta contra a utilização de telemóveis na sala e pela possibilidade de se consumirem não só as inevitáveis pipocas mas inclusive verdadeiras refeições junk-mex, dentro da sala, durante a projecção), recordam um passado longínquo de desafogo.

Austin tem ainda a vantagem de ter sido relativamente poupada pela recente crise financeira e económica e de a reputação da Universidade do Texas ter atraído milhares de estudantes e professores, o que a converte numa das cidades mais jovens, vivas e "inteligentes" dos EUA. Além disso, desde há cerca de dez anos tornou-se num hub do cinema independente, com dezenas de jovens cineastas estabelecendo-se na cidade e um sem número de filmes rodados anualmente na região. Os realizadores mais emblemáticos desta vaga de cinema austinite são Richard Linklater e Andrew Bujalski, mas estes nomes constituem apenas a ponta do iceberg.

Ao longo da sua carreira, Linklater tem alternado projectos pessoais com filmes de encomenda, obras de maior fôlego com pequenos divertimentos. Everybody Wants Some, filme de abertura, entra nesta última categoria, o que não o diminui propriamente já que o cineasta reserva muitas vezes para as suas histórias mais ligeiras as divagações existenciais mais profundas. Decorrendo nos últimos dias do Verão antes do início das aulas numa pequena universidade, centra-se com bonomia na despedida da adolescência irreflectida dos membros de uma equipa de basebol antes de enfrentarem as responsabilidade da vida adulta.

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Miss Sharon Jones, de Barbara Kopple, acompanha Sharon Jones, dona de uma magnífica carreira como cantora de blues, num momento charneira da sua vida em que lhe é diagnosticado um cancro no pâncreas
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Este ano, além de estrear o seu último filme, o festival exibiu o documentário Richard Linklater Dream Is Destiny, sobre a vida e obra do realizador, bem como o restauro (promovido por Linklater) de Last Night at the Alamo, belíssimo filme praticamente desconhecido realizado pelo igualmente texano Eagle Pennel em 1984. A cópia restaurada deverá integrar as secções Classics do circuito dos festivais este ano, o que lhe permitirá ganhar uma merecida segunda vida.

O reverso da medalha do sucesso de SXSW reflecte-se na aparente falta de vontade em arriscar com receio de afastar o público. Secções como a narrative competition, reservada a autores novos, headliners, para os "cabeças de série", ou festival favorites, repescagem de outros festivais, carecem de obras realmente significativas, jogando habitualmente pelo seguro. Exemplo disso foi a presença de filmes como Demolition, realizado por Jean-Marc Vallée, estreado o ano passado em Toronto e cuja única razão da sua passagem por aqui parece ter sido a presença de Jake Gyllenhaal na reduzida red carpet de SXSW, The Trust, dos irmãos Ben e Alex Brewer, com Nicolas Cage e Elijah Wood, cujas cenas iniciais ainda faziam esperar algum ar fresco no subgénero da dupla de polícias, mas que termina não escapando a uma fórmula já batida (desta vez a coisa saiu furada porque Cage acabou por não aparecer), The Waiting de Kasra Farahani, mais uma entrada noutro subgénero que começa a estar estafado, o do found footage movie, contando a história de dois jovens que decidem espiar e assustar um velho vizinho, com os previsíveis resultados "inesperados" (aqui sim, puderam contar com a presença do grande James Caan) ou ainda Sing Street, uma comédia da categoria cute coming-of-age movie, sobre um adolescente dos subúrbios de Dublim que sonha criar uma banda e assim conquistar uma miúda, realizada com competência pelo irlandês John Carney (No Mesmo Tom, Num Outro Tom), mas que não se vê muito bem o que faz num festival destes.

Há uma diferença abissal entre o filme bitter-sweet (ou dramedy, como agora lhe chamam), quase sempre inconsequente, e a comédia picaresca, que é frequentemente mais séria do que parece. A prová-lo, a primeira obra de Josh Locy (art director habitual de David Gordon Green), Hunter Gatherer, um conto simultaneamente triste e divertido sobre um recém-libertado presidiário que tenta pôr a sua vida em ordem, apesar das resistências oferecidas. O realismo com que habitualmente são descritas estas histórias que decorrem nos degradados centros das grandes cidades (neste caso, o sul de Los Angeles), é temperado por uma simplicidade desconcertante e uma bonomia quase irreal que elevam o filme uns furos acima da curiosidade indie.

A propósito de competição, os prémios principais foram para TOWER de Keith Maitland (documentário), que combina imagens de arquivo com animação rotoscópica para contar a tragédia ocorrida em 1966 na torre da Universidade do Texas e que ceifou 16 vidas, e The Arbalest de Adam Pinney (ficção), uma fantasia sobre um inventor do brinquedo mais influente da humanidade (o júri foi liderado pelo muito respeitável Richard Brody, crítico da revista The New Yorker).

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A presença de Ethan Hawke, no ecrã (em grande forma em In a Valley of Violence) e na carpete (em modo gajo porreiro), foi um dos trunfos mais simpáticos jogados pelo SXSW 2016

A secção Visions acabou por concentrar alguns dos filmes mais interessantes do festival. Oficialmente, Spaceship entra na categoria dos teen movies, mas definitivamente não na vertente John Hughes; a primeira longa-metragem do britânico Alex Taylor, com o seu grupo de adolescentes exóticos e inadaptados, refugiados em dimensões paralelas povoadas de unicórnios, aliens, buracos negros e arco-íris, e adultos igualmente outcasts e perdidos, aproxima-se muito mais do mundo de Gregg Araki, ou mesmo do realismo mágico da francesa Lucile Hadzihalilovic. Apesar da sua iconografia fantástica, mantém-se curiosamente perto das suas personagens, lançando sobre elas um olhar empático e terno.

Dividido em capítulos como um verdadeiro manual, The Alchemist Cookbook, o primeiro filme de Joel Potrykus após a trilogia animal (Coyotte, Ape e Buzzard), retrata a vida de um jovem eremita, sem nenhum contacto com a civilização excepto as visitas periódicas do amigo Cortez, e as suas experiências químicas que roçam a magia negra em busca do segredo da natureza. O filme confirma, como se ainda fosse necessário, Potrykus como uma das vozes mais originais do panorama actual do cinema independente americano.

Ainda nesta secção foi apresentado Operator, de Logan Kibens, sobre a curiosa relação extra-conjugal de Joe (Martin Starr), um técnico de sistemas de serviços de voz, com a operadora de um dos seus clientes, cuja voz foi gravada pela sua própria mulher. Para os que se recordam do filme Her Uma História de Amor de Spike Jonze, esta história soar-lhes-á vagamente familiar; a diferença é que Operator é muito menos pretensioso e, portanto, muito mais eficaz na análise da moderna ansiedade da classe média urbana.

Se outra prova fosse necessária para desmentir muito do que aqui se disse sobre a debilidade pelos crowd pleasers de SXSW, sobre a selecção de filmes com a mira essencialmente no efeito red carpet, sobre a capitalização de nomes conhecidos e apostas em géneros facilmente reconhecíveis, em lugar de aventuras mais consentâneas com o papel de um festival desta natureza e grandeza, citaria a estreia mundial de In a Valley of Violence. O western de Ti West (conhecido pela reinvenção do género do terror em modo indie), com Ethan Hawke e John Travolta, é tudo isso e no entanto... foi um dos filmes mais arriscados, ousados e interessantes exibidos em Austin. Ti West prossegue a sua revisita dos géneros tradicionais do cinema clássico americano desta vez o template é o western através da história da passagem de um misterioso desconhecido com um passado obscuro (Hawke) por uma pequena cidade onde os actos de violência gratuita podem ter consequências imprevisíveis. Trata-se obviamente de um pós-western, com uma piscadela de olho bem humorada à sua versão spaghetti (deliciosa banda sonora à la Morricone de Jeff Grace), e em tom menor, sem a grandiloquência a que nos habituou Tarantino. A presença de Ethan Hawke, no ecrã (em grande forma) e na carpete (em modo gajo porreiro), foi um dos trunfos mais simpáticos jogados por SXSW 2016.

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