Eles foram à procura de um país
A ficção vem resgatando o Portugal da “crise”. No cinema, na fotografia, na BD, na música, no teatro, os artistas foram à procura de histórias, paisagens, personagens, epopeias, fábulas, contos. Pequeno consolo, grande consolo de um país que nunca deixou de existir.
Algures no Alentejo, em 2011, André Príncipe não conseguiu evitar assombro. Ao seu lado, corria uma avestruz como as que via nos documentários televisivos. À incredulidade inicial, seguiu-se um desejo incontrolável: explorar o que aquele real ainda podia revelar. Não resistiu, havia outro país ali ao lado e partiu. Não seria o único. Miguel Gomes fugiria, anos depois, para as aventuras portuguesas da trilogia As Mil e uma Noites.
Este ano, o cantor e compositor Benjamim também se fez à estrada, em busca da gente que saiba ouvir canções como Quinito Foi para a Guiné ou Exílio. Foi uma dissensão o que eles fizeram, partilhada, quando não antecipada, por outros artistas, mesmo quando as viagens se fizeram entre a casa e a rua ou pelos arrabaldes das cidades. Sim, afirme-se: a violência simbólica e concreta que os últimos quatro anos de austeridade foram impondo impeliu um movimento físico e poético contra a realidade mostrada pela televisão e pela imprensa. Um fito comum? Talvez a vontade de salvar, de resgatar – com filmes, livros, discos... – um país de uma crise que se aprofundou como crise de representação. A fim de deixar testemunhos aos que hão-de vir.
Neste contexto, As Mil e uma Noites, de Miguel Gomes, terá sido a obra que mais ecos despertou. Recorrendo à estrutura ficcional do livro homónimo, o cineasta português construiu, com a sua equipa, três volumes – O Inquieto, O Desolado, O Encantado – em que a ficção colocava em movimento o real e o real revelava os artifícios do cinema. Uma dialéctica que, a partir de material recolhido por três jornalistas, Maria José Oliveira, Rita Ferreira e João de Almeida Dias, pôs em marcha imagens de vidas, de actividades, de paisagens. Recordem-se os contos dos trabalhadores dos Estaleiros Navais da Viana do Castelo – segunda incursão "ficcional" a essa realidade depois do espectáculo Estaleiros, que em 2012 fez sair de Lisboa, para encenar um À Espera de Godot com 16 funcionários de uma empresa já condenada, o cineasta e encenador Marco Martins, o actor Nuno Lopes e o músico Noiserv. Recordem-se também as viagens de Dixie, o cão sensato, entre os dramas de Santo António dos Cavaleiros, em Loures, ou a música de um bando de homens que, nas margens de Lisboa, ensinam os pássaros a cantar. Trilogia portuguesa, As Mil e Umas Noites desenrolaram um mosaico em que os espectadores se puderam consolar a fim de continuar a viver.
Se essa não foi a intenção declarada de Miguel Gomes, o seu filme irrompeu da realidade que reclamou esse gesto. “O cinema nunca foi impermeável ao mundo. Não pode existir outra concepção do cinema que não seja uma reacção à sociedade em que vivemos”, diz, acabado de chegar ao Café Luanda, Avenida Estados Unidos da América, Lisboa. “Mesmo aquele cinema codificado, com um sistema interno e coerente, bastante distante das nossas vidas, tem ecos profundos dos tempos que estão a ser vividos. Mesmo num filme bastante irrealista está depositada qualquer coisa do espírito do tempo."
Miguel Gomes já revelara em Aquele Querido Mês de Agosto (2008) a vontade de fazer esbater as fonteiras que separavam o cinema do tempo e da vida, mas As Mil e Uma Noites é ainda mais ansioso, intrometido. “O filme foi uma reacção ao que eu e as pessoas à minha volta estávamos a viver. Por isso, decidimos que não fazia sentido investigar as notícias para depois filmarmos. Teria sido um processo mais controlado, mas quisemos viver a situação à medida que a íamos vivendo, reagir através de uma ficção em directo. Reduzia-se o tempo entre os acontecimentos que nos inspiravam as histórias e a produção de ficção. Vivíamos algo e reagíamos quase de imediato aos acontecimentos. E fizemos o espelho disso com a ficção, um espelho cuja deformação quisemos que fosse visível."
De Kansas a Oz
A relação com o presente é aqui a relação com o real das pessoas de um país que se move a dois ritmos: em mutação acelerada por políticas económicas aplicadas por tecnocratas, e numa cadência lenta, renitente e digna, que a televisão, como produtora de imagens, nunca soube e nunca quis figurar de modo justo. Algum cinema português, pelo contrário, produziu obras que, num trânsito fluído entre a ficção e real, a fantasia e a realidade, fizeram algo de precioso: devolvendo narrativas, personagens e vozes às pessoas, para que possam possam construir uma distância face ao (seu) mundo. Aquele Querido Mês de Agosto terá sido a obra precursora deste “movimento” que desvia o olhar, surpreendido, intrigado, comovido, para fora de campo. Mas desde 2008, e sobretudo nos últimos dois anos, têm surgido outros pontos de vista: manifestaram-se em Campo de Flamingos sem Flamingos, de André Príncipe (2013), Volta à Terra (2014), de João Pedro Plácido (estreado este ano) Os Olhos de André, de António Borges Correia, premiado há sete meses no Indie Lisboa, Portugal - Um dia de cada vez, de João Canijo e Anabela Moreira, e o vencedor da competição nacional do último DocLisboa, Rio Corgo, de Maya Kosa e Sérgio da Costa – ambos alunos de Miguel Gomes na Haute École d’Art et de Design de Genebra).
Distingue-se em cada filme uma sensibilidade própria mas, também, uma motivação plausível de ser entendida como comum: ela foi desencadeada pelas circunstâncias sociais e políticas e, além delas, por um caminho que a arte cinematográfica tem vindo trilhar. “O cinema já se constituiu como mundo, com as suas regras”, explica Miguel Gomes. “Há um património com uma série de códigos, de referências e de mecanismos que existe por si. Por isso gosto muito de evocar O Feiticeiro de Oz [de Victor Fleming]. Nesse filme, existe um lugar chamado Kansas, onde vive a Dorothy, completamente artificial, e o mundo de Oz, que é o cinema. São dois mundos separados. Ora creio que, actualmente, entre ambos a porosidade é maior." Para o cineasta, essa aproximação iniciou-se nos anos 60, com a Nouvelle Vague e, fora do mainstream, tem vindo construir um reduto estético no qual os artistas insistem em olhar o mundo que existe para lá dos artifícios do plateau. Miguel Gomes todavia não desiste de trabalhar com a fantasia, com o faz-de-conta das ilusões. “Sim, trabalho e quero trabalhar com esse legado. Tento fazer alguma coisa com os meus desejos de cinema e com o tempo em que vivo. A relação com o real está sempre a transformar-se e não se pode fazer cinema desligado do tempo em que se vive, mas também é impossível não trabalharmos com os códigos do cinema, com o seu património. Há uma crítica que hoje se faz muito: a de que o cinema já não consegue ter uma relação com o mundo. No meu cinema procuro mantê-la, mas quero também que esses códigos estejam lá, que sejam visíveis, não os apago."
Os Donos de Dixie, a terceira história do segundo volume de As Mil e uma Noites, provém desta negociação. É um retrato de vidas suburbanas, trabalhado pela ficção e por uma ancoragem em lugares onde vivem de facto pessoas. Xerazade conta-nos momentos da vida de dois casais, e o trânsito de um cão entre os seus velhos e os seus novos donos. Depois de encontros e reencontros, o par mais envelhecido (interpretado por Teresa Madruga e João Pedro Bénard) será encontrado morto (provável suicídio). E é esta tragédia, inspirada num caso verídico, que Joana de Verona e Gonçalo Waddington, o casal mais jovem, acabará por testemunhar e velar, no plano em que olham, em silêncio, a janela da torre de Santo António dos Cavaleiros.
Actores e personagens numa elegia partilhada pelo cineasta: “Pensei em não filmar lá, pois estava a trabalhar com uma história que aconteceu de facto e pareceu-me um pouco mórbido fazer algo naquele sítio, naquelas torres. Mas achei que contar uma verdade daquela história, com aqueles actores, passava por mostrar aquele bairro, aqueles prédios."
Onde estamos?
Como os filmes de As Mil e Uma Noites, Campo de Flamingos sem Flamingos, de André Príncipe, cineasta, fotógrafo, editor, disputa à televisão a representação de um país, mas o que oferece ao espectador é uma experiência sensorial, de espanto e espantada, diante do desconhecido. “Que país estás a ver?”, eis a pergunta que segreda. “Um dos momentos fundadores foi a avestruz que vi a correr no Alentejo atrás de um carro”, recorda. “Perguntei-me: 'o que é isto?' Há um lado do real que não conhecemos, que não sabemos que existe. Esse é um dos problemas da fotografia e uma das suas forças. É um pouco como no Blow-Up [Michelangelo Antonioni], vais fotografar uma coisa e acabas a fotografar outras. O que é atraente, e agora incluo o cinema, é aquilo que não sabemos."
O que causava ansiedade e dificuldade a cineastas e fotógrafos é uma hoje uma atracção, defende: “O imaginário é apenas aquilo que não se vê. Acho que o facto de haver mais gente a ir para o real tem a ver com o tempo em que vivemos. As coisas mais profundas, o insondável, estão aqui ao lado. Antes, creio que havia uma tendência para uma observação e depois para uma síntese. Hoje não, é tudo mais directo." O filme de André Príncipe foi realizado entre Setembro e Dezembro de 2011, com a colaboração do director de fotografia Takashi Sugimoto e o operador de som Manuel Sá. “A premissa foi uma viagem pelas fronteiras portuguesas, em cidades, em aldeias, no interior, no litoral, para recolher ingredientes do real que não controlo e provocar um choque. Queria que esse choque estivesse no filme, que as pessoas o sentissem. Não tem uma descrição, não explica nada."
André Príncipe aposta na desorientação e na deambulação do espectador quando entra na sala de cinema. Sem tabuletas, sem bússolas. “Sim, apaguei essas referências, as placas, a identificação. Não quis dizer que estivemos ali, mas sim perguntar: 'Onde estamos? Onde fomos parar?'”. Campo de Flamingos sem Flamingos é um filme que continua exactamente porque se perde, depois de virar as costas aos pequenos ecrãs. “Mesmo que as pessoas não percebam muito o que está a acontecer, desejo que fiquem com vontade de viajar pelo país. Já mo disseram e tenho respondido: 'É isso mesmo, agora vai tu ver, porque isto fui o que eu vi’. A viagem é muito importante. Estás num sítio, partes e não sabes o que vem a seguir."
Tanto no filme como em Perfume de Boi, a série fotográfica que resultou da viagem, o que vem a seguir são as imagens e os sons de um país fantástico, no sentido de irreal – os veados, os abutres, as avestruzes, a prova de tuning, as imagens da festa trance –, numa relação intensa como o que está fora de campo. Se estas imagens diferem das de As Mil e uma Noites – o seu contexto político e social pouco mais é do que um rumor incomodativo –, o gesto dos dois cineastas produz consequências idênticas. “O cinema coleciona coisas, personagens, lugares, que têm uma relação com presente, para que no futuro possam continuar a existir”, sugere Miguel Gomes. “É uma Arca de Noé de fantasmas, de pessoas, de momentos, mais ou menos ficcionados ou com uma relação mais próxima do real que existe e que está sempre disponível como falso presente."
Sem sair de casa
Memória e transmissão. A propósito destas palavras, o realizador Miguel Gomes recordava há um ano, ao Ípsilon, a vontade de dedicar a trilogia à sua filha, para que esta pudesse ter uma memória do que foi o país. Esse é também um desejo inscrito no livro de fotografia Ma Vie Va Changer, de Patrícia Almeida e David-Alexandre Guéniot. Iniciado em 2011 e lançado este ano, “documenta” um confronto com a crise, protagonizado pelo casal de autores, o filho Gustavo e o seu amigo Gaspar (filho do cenógrafo João Fiadeiro). Com as devidas distâncias, as aproximações ao filme de Gomes projectavam-se. Intuía-se a mesma vontade de fixar o que estava a acontecer, de interrogar as modalidades do documental, sem a tentação da mera denúncia ou do simples comentário. No livro, tais fins são alcançados com o trabalho de David em torno da fotografia vernacular e na pesquisa e reapropriação da imagens da imprensa por Patrícia Almeida. A partir de um lugar bem definido: o da intimidade de uma casa, de um espaço doméstico. “É isso que nos distingue [de As Mil e Uma Noites]. O Miguel Gomes foi ao encontro de pessoas, de uma realidade exterior, para a reconstituir com a ficção. Nós fizemos esse movimento sem sair de casa, com as coisas que nos chegavam através do jornais. Mas também, como ele, questionámo-nos sobre o que pode ser hoje fazer imagens e introduzimos o próprio trabalho no interior do livro."
Nas páginas de Ma Vie Changer, revela-se a materialidade dos processos utilizados. Recortes, colagens, imagens intervencionadas, post-its a servirem de legendas, compondo um objecto de resistência e dignificação das pessoas. “Partimos de uma reacção à ideia de que não havia alternativa, segundo a propaganda do anterior Governo e da União Europeia, para abrir uma perspectiva de futuro para o nosso filho e o seu amigo. O livro lida com o dilema que é viver no presente face a uma suposta ausência de futuro. E, não se tratando de um livro para crianças, recorreu ao seu imaginário”, recorda David-Alexandre Guéniot. É feito de imagens de rituais festivos, de máscaras, de desenhos, de animais de estimação. Evocando fábulas e fantasias, as fotografias entram na infância. “Entendo-as como participando da dimensão lúdica e do artifício do livro. Não foi nossa intenção fazer um ensaio político, mas transmitir as nossas sensações, os nossos sentimentos em relação a um tempo que foi o da intervenção da troika, que considero marcante na historia contemporânea portuguesa, com causas e consequências que ainda não desapareceram.”
Ma Vie Va Changer, recentemente escolhido como um dos livros de fotografia do ano pelo crítico Gerry Badger, fica como testemunho e objecto artístico de um período a que Marco Mendes, autor de BD, não foi indiferente. Nas páginas de Diário Rasgado (2012) e de Anos Dourados (2013) vibram retratos e histórias de uma geração desencontrada: homens e mulheres que conversam na noite, que se divertem, que dormem, que percorrem as ruas, que fazem amor, que descansam, que estudam, que lêem. Alguns podiam ser versões desenhadas dos donos jovens de Dixie, mas pertencem a um universo específico. “O meu trabalho representa o meio e as pessoas que me rodeiam”, esclarece. “E centra-se na forma como essas pessoas vêem o mundo, como interpretam e reagem ao que está à sua volta."
A dimensão autobiográfica das histórias delimita o círculo das personagens. São os amigos, a família de Marco Mendes que preenchem as pranchas, com uma humanidade reconhecível: têm problemas, desejos, frustrações e procuram, com maior ou menor eficácia, construir um espaço de actuação autónomo, livre, por meio da amizade e da luta, do espírito comunitário. Diz uma personagem de Zombie, livro premiado em Novembro no Festival de Banda Desenhada da Amadora: “Nós sozinhos não somos nada neste mundo! É num instantinho que vamos! Tão depressa estamos a rir, como debaixo do chão”. Os obstáculos são diversos e quase omnipresentes. O medo, a precaridade, a insegurança, o desemprego e a doença ameaçam retirar aos protagonistas a possibilidade de controlarem o seu destino.
Nesse livro, como noutros, as pequenas histórias de Marco Mendes, quase sempre chãs, decorrem no quotidiano, em casas ou ruas do Porto. Vemo-lo e aos amigos em deambulações, passeios, derivas assombradas pelo pessimismo ou pela desolação, mas, aqui e ali, interrompidas por encontros, refeições, festas, momentos de partilha. “Existe no meu trabalho uma forte empatia com um povo ao qual se pertence. Faço parte de uma geração que, na minha família como em muitas outras, contrasta com as anteriores pelas oportunidades que teve. Para mim foi fácil estudar, não passei por privações de nenhum tipo. Democracia sempre foi sinónimo de prosperidade, crescimento, progresso. De repente tudo ruiu. Como artista, resta-me reagir a isso." Em Zombie, embora relegados para segundo plano em favor de um pendor mais documental, o humor e a fantasia não deixam de assomar nos efeitos das cores das aguarelas que pintam as noites, ou na súbita aparição de Fela Kuti na festa nocturna. “Tendo para a autobiografia, mas há momentos em que me apetece fazer algo mais alegórico ou satírico. Com o desenho é a mesma coisa. Tanto pode ser romântico como caricatural ou expressionista."
Epopeias, vidas grandiosas
Nas histórias de Rui Catalão, dramaturgo, ex-jornalista e crítico musical do PÚBLICO, também se passeiam personagens chãs, modestas, frágeis, num universo em que a autobiografia se assume como recurso teatral e narrativo. Mas em trabalhos como O Elogio da Classe Politica Portuguesa (2005), Av. dos Bons Amigos (2013), Canções i Comentários (2014) ou Agora Nós (a estrear em Maio de 2016 no Teatro Maria Matos), os lugares evocados não são os que Marco Mendes desenha nos seus livros. Aqui desce-se aos subúrbios de Lisboa, numa representação que não se replica a que Miguel Gomes trouxe para As Mil e Uma Noites. “O seu olhar é exterior, o meu é de dentro e acima de tudo baseado na memória”, sublinha o dramaturgo que foi um dos actores de A Cara que Mereces, a primeira longa-metragem do cineasta. “Quando faço pesquisa, não vou à procura de nada. Já encontrei, quase todo o meu teatro é baseado na memória."
Nesse trabalho de rememoração, os subúrbios têm sido um tema a que Catalão regressa com frequência. Não para responder a condições sociais ou políticas específicas, mas para suprimir uma necessidade que releva de uma biografia, e de um passado, que são os seus. “Não considero o que faço gesto político, mas um gesto pessoal. A única coisa que quero salvar deste mundo são as coisas que vivi e que não admito que sejam esquecidas. Isso para mim é que importante. É um gesto simbólico." Desta posição, constrói um olhar que se quer sem dicotomias ou clichés e suficientemente largo para compreender várias figuras. “O mundo dos suburbanos está longe de ser um paraíso. Estão ali as franjas da sociedade. Os esquecidos, os mais frágeis, os espoliados, os criminosos, os doentes, os malucos, pessoas destruídas. Ou os que vivem lá como se não vivessem lá, como se aquele lugar fosse uma abstracção. Tenho um genuíno fascínio por esse mundo e acho que as pessoas mais interessantes que conheço vêm de lá."
A palavra e a memória tem sido os principais motores do trabalho de Rui Catalão. A palavra faz ver o que se não se poder ver, o que já se perdeu irremediavelmente. As anedotas, os dramas, os corpos, as vidas, as misérias, as alegrias, os gestos, as roupas. A memória arranca-os do esquecimento, observando-os como documentos que se reconstituirão no palco, fábulas, narrativas grandiosas. Em Agora Nós, desenvolvido em residência no Centro de Experimentação Artística do Vale da Amoreira, na Moita, prossegue esta linha temática com um grupo de jovens do bairro. “Estou a trabalhar com a memória deles para contar as histórias dos seus êxodos, das suas epopeias, das suas viagens entre Portugal, a Europa e a África. Vivem fascinados por um universo mediático que não lhes oferece nada, que não tem poesia nenhuma, quando as suas vidas são grandiosas." São vidas assim que reencontra quando regressa à sua terra, o Cacém, para visitar os pais. “Já não vivo lá, mas tenho uma distância que me permite fazer coisas. E quando volto lá ainda vejo aquilo cheio de lugares, de construções, de personagens, de gente que já não está lá."
Na série de fotografias Posto de Trabalho, de Valter Vinagre, que deu origem a um livro e a uma exposição na Fundação EDP, também há gente que desapareceu, mas ainda não são fantasmas. Realizada entre 2010 e 2013, tem uma origem que remonta aos anos 1990 e a uma inquietação que persiste. “Comecei, nesse período, a recentrar a minha forma de fazer fotografia. A construir um discurso mais reflexivo sobre o que queria fazer. Carta do Sentir inaugurou uma trilogia em torno da violência na sociedade contemporânea”, conta. Os ecos do exterior, com as guerras no Ruanda e na ex-Jugoslávia, tinham-no despertado para a necessidade de lidar com as tragédias alimentadas pelo ódio e pela crueldade, mas não precisou de sair do território português para continuar e finalizar a série. Primeiro, com as imagens de Pára (2003), sobre a sinistralidade rodoviária, e depois com a série Olha (2013), dedicada às vítimas de violência física, Valter Vinagre reencontrou um país sombrio e magoado. E foi esse país que revisitou em Posto de Trabalho, fotografando os cenários da prostituição à borda da estrada. “A estrada permaneceu como referência, mas mais do que a ideia de viagem o que me interessou foi documentar a fragilidade dos seres humanos e daqueles sítios, daquelas construções. Sabemos que esta prática existe, que está lá, tapada por vários biombos, mas nada sabemos sobre a violência atroz que a rodeia."
Que país é esse? Será, provavelmente, o mesmo que inspirou Aquele Querido de Mês de Agosto, Campo de Flamingos sem Flamingos ou a série de fotografias Casa das Sete Senhoras, que Tito Mouraz apresentou nos Encontros da Imagem de Braga em 2014 e na Módulo no início deste ano. O ponto de vista de Vinagre traz, contudo, outras imagens. “Quero trabalhar nas fissuras do tecido social, é isso que me interessa, que me inquieta, que me faz fazer perguntas. Por isso, neste trabalho, utilizei uma luz que dá uma beleza quase etérea a estes sítios onde estiveram pessoas. Tenho a consciência disso: se por um lado acentuo o que parece mais óbvio, por outro lado crio uma cortina, mantenho uma interrogação no ar, que me permite dizer que ali estiveram mulheres, homens. São imagens sem ninguém, mas cheias de gente."
My song could be your country
Não se sabe ainda que imagens o cineasta João Canijo, no seu périplo pelo país, tem vindo a recolher para a série de televisão de 12 episódios, Guia de Portugal – o diálogo com a inventariação poética e literária, feita na primeira metade do século XX pelo jornalista e escritor Raul Proença (1884-1941), dos sítios e do país, a que Canijo se propõe contrapor um presente, a realidade, o agora. Mas já se pôde escutar Auto Radio, o disco que assinalou o regresso a Portugal de Luís Nunes. Em Setembro, o músico anunciou uma transformação que parecia desafiar o bom senso neo-liberal, o utilitarismo e os sentidos das migrações globais. Abandonara Londres, onde estudava, e trocou as pop songs pela música cantada na língua de Camões, antes de iniciar uma digressão de 33 dias seguidos pelo país. Uma decisão radical que implicou até a mudança de heterónimos. Antes Walter Benjamin, agora apenas Benjamim.
Três meses depois, ainda não se arrependeu. “Mantém-se tudo”, reafirma. “Apesar de vivermos tempos politicamente interessantes, as coisas não mudaram assim tanto. Mas esta decisão não veio de uma raiva, quero deixar isso claro, veio de uma vontade construtiva. Quando me mudei para Portugal, só quis provar às pessoas, aos meus familiares, aos meus amigos, que uma pessoa pode fazer isso e a sua vida correr como sempre correu. Somos um país há quase 900 anos e não vamos desaparecer por causa da crise." Portugal foi lugar que Benjamim calcorreou no Verão, com um objectivo definido. Dar música às pessoas reais, aquelas que a televisão não representa. “O meu regresso tinha de justificar uma decisão de vida, uma razão forte. O processo foi muito pensado e nasceu da ideia romântica de viajar de uma cidade para outra, mas também de uma ideia prática. Ia conseguir ter contacto com pessoas reais, deixar um disco em cada sítio, conhecer os sítios que existem em Portugal para tocar, criar um circuito."
Na digressão por aldeias, vilas e cidades que fez na companhia de António Vasconcelos Dias, encontrou pessoas que querem viver, apesar das dificuldades. “Creio que o país tem uma certa normalidade e por isso tem aguentado estas pressões políticas, estes abalos. Houve lugares que nos marcaram muito. No Luso, no fim do concerto, uma senhora comprou-nos um disco e disse-me que tinha gostado muito das canções. E houve quem se sentisse transportado para os anos 70 quando nos ouviu. Em Vizela, tocámos nas festas, no meio de uma praça cheia de barracas de cerveja e luzes de festa popular. Havia um palco enorme com o Augusto Canário a cantar música pimba e a nós calhou-nos o mais pequeno. Pois bem, no fim ficou imensa gente a ouvir-nos até ao fim."
Como Miguel Gomes, David-Alexandre Guéniot e Patrícia Almeida ou André Príncipe, Benjamim confia na permanência do seu disco, como forma de humanizar o mundo. “Espero poder situá-lo daqui a 20 anos numa outra fase da minha vida e do meu país. Se calhar, serei só eu a lembrar-me dele. É um disco de consciência, não é um manifesto político." É neste sentido que se revelam as pequenas histórias que as melodias das canções transportam. “Há uma pessoa real na canção Quinito foi para a Guiné. Conheci-a no Alvito, onde estive durante dois anos a gravar”, revela o músico. “Não tinha canções e aproveitei para conhecer as pessoas, para arranjar as histórias, para ver como se vivia ali. O Quinito era alguém estava sempre a falar da guerra, uma personagem que existe mesmo.” E Exílio, que canção é esta, Luís Nunes? “É a canção da emigração, que passou a ser também uma realidade urbana, para aqueles que nunca imaginariam que teriam de sair daqui. Sim, foram as saudades que me fizeram regressar." My song could be your country.