Derek Jarman, o rebelde com causa

Político, provocador, poético, Derek Jarman foi um dos cineastas menos ortodoxos da Inglaterra dos anos Thatcher. Uma retrospectiva alargada, comissariada por colegas e estudiosos, que falaram ao Ípsilon, revela muita da sua obra a partir de hoje no Queer Lisboa.

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Derek Jarman (1942-1994) formado em belas artes pela prestigiada Slade School of Arts, pintor, cenógrafo e director artístico FOTO: DR

“Não desejaria a ninguém viver os anos 1980.” A frase é de Derek Jarman, que tinha as suas razões para o dizer, ele que foi um dos artistas rebeldes de um período da história do Reino Unido marcado pelo governo conservador de Margaret Thatcher. As razões que o fizeram renegar a década – a guerra das Malvinas, os combates sociais entre governo e sindicatos, a erosão do contrato social estabelecido no pós-Segunda Guerra Mundial, a lenta vitória de um conservadorismo materialista e consumista – são exactamente as mesmas que alimentaram a sua arte e fizeram dele “uma figura algo heróica”, como diz o programador William Fowler.

Ponta-de-lança de uma contestação que se infiltrava por todo o mainstream da cultura popular britânica pós-punkDerek Jarman (1942-1994), filho de um militar de carreira formado em belas artes pela prestigiada Slade School of Arts, pintor, cenógrafo e director artístico, tornou-se figura tutelar da ligação entre as vanguardas artísticas e a explosão punk dos anos 1970. Foi um pioneiro do filme-ensaio alegórico e experimental (The Last of England, 1987, The Garden, 1990, Blue, 1993) mas também um aclamado realizador de telediscos para Bryan Ferry (Windswept), os Smiths (Ask) ou os Pet Shop Boys (It’s a Sin).

Diagnosticado com sida em 1986, e falecido em 1994, aos 52 anos, Jarman atravessou como um cometa um dos períodos mais fervilhantes da cultura popular britânica sem trair a sua visão idiossincrática do mundo, onde o político e o pessoal, o passado e o presente são inseparáveis. É um cinema que, mais de duas décadas após a sua morte, parece falar aos nossos dias com uma certeira pontaria, no modo como pareceu profetizar muito dos nossos próprios dias (a manipulação mediática, a cultura da celebridade, a sociedade de consumo). É tudo isso que torna urgente (re)descobrir o seu cinema ambicioso e altamente pessoal, algo que o Queer Lisboa e a Cinemateca Portuguesa permitem a partir de hoje com a retrospectiva Jarman, The Last of England.

O ciclo, a decorrer na Cinemateca até dia 24 (programa completo em www.queerlisboa.pt e www.cinemateca.pt), abrange duas dezenas de filmes, entre curtas e longas-metragens, e mostra a maioria da obra do cineasta pela primeira vez em Portugal (onde só Caravaggio, de 1986, e Wittgenstein, de 1993, chegaram ao circuito, em DVD e o segundo igualmente em salas). É enquadrado por um programa de obras de colaboradores regulares como John Maybury, Cerith Wyn Evans ou Richard Heslop, cineastas a quem Jarman deu uma oportunidade e de quem foi, para citar o produtor James Mackay, uma espécie de “mentor”.

William Fowler, arquivista e curador do British Film Institute especializado em cinema experimental e de artista, já ligado às comemorações do 20º aniversário da morte de Jarman em 2014, é um dos comissários da retrospectiva do Queer e fala de um cineasta que fez sempre parte da paisagem cultural britânica, mas para o qual “a cultura popular e os espectadores mais jovens reacordaram há pouco”. Ao telefone a partir de Londres, Fowler descreve-o como “um artista que pensava através das imagens, cujos filmes tinham uma dimensão improvisacional”.

“Era alguém que correspondia a uma forma muito curiosa, muito outsider, de ser inglês,” continua o programador. “Jarman identificava-se com uma tradição mais fantástica do cinema britânico, um lado mágico, romântico que podia incluir Michael Powell e Ken Russell. Nunca se viu como parte da escola realista mais tradicional, preferia-lhe temas míticos, imaginários fantásticos. O seu interesse na magia, no oculto, na ideia de fantasmas e presenças que atravessam o tempo e o espaço… Era um cineasta idiossincrático cujas visões referenciavam uma cultura classicista inglesa mas de um modo perturbado, estilhaçado, com uma certa dimensão apocalíptica de uma Inglaterra condenada ao colapso e ao caos. Mas, ao mesmo tempo, era alguém profundamente engajado politicamente.”

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Em The Angelic Conversation (1985), ilustra sonetos de Shakespeare lidos por Judi Dench; The Smiths foi um dos aclamados realizadores de telediscos dos Smiths; em Jubilee (1977), coloca Isabel I a viajar para o século XX

Dimensão histórica

James Mackay, produtor regular de Jarman a partir de finais dos anos 1970, curador do seu arquivo e outro dos comissários da retrospectiva, confirma esse interesse. “O seu cinema explorava muito a dimensão histórica porque o seu amor pelo Renascimento e pela era da rainha Isabel I era enorme.” Em Jubilee (1977), Jarman coloca Isabel I e o seu ocultista John Dee a viajar para o século XX; em The Angelic Conversation (1985), ilustra sonetos de Shakespeare lidos por Judi Dench com imagens de desejo e erotismo homossexual; filmou A Tempestade de Shakespeare, a biografia do pintor Caravaggio ou a história do rei Eduardo II. “O Derek era alguém interessado e atento ao presente, também de modo político,” continua Mackay, “mas olhava ao mesmo tempo para o passado de modo próximo da melancolia.”

William Fowler evoca a situação sociopolítica inglesa dos anos 1970 e 1980 para explicar Jarman e sobretudo a mudança de atitudes em relação às sexualidades alternativas, “desde a passagem da Lei das Ofensas Sexuais de 1967, que descriminalizou a homossexualidade no foro privado, aos anos de Margaret Thatcher e à Cláusula 28”, uma emenda de 1988 que abria a porta à discriminação de organizações LGBT e ao esvaziamento dos seus financiamentos. “São coisas que atravessam toda a sua obra de um modo palpável”, explica o programador, que contextualiza desse modo a vocação política da obra do cineasta. “Jarman cresceu com mensagens conflituosas sobre a sua sexualidade, desde os seus tempos de infância, e para contrariar isso decidiu assumir-se abertamente, lutar pelos direitos dos homossexuais num período em que a repressão era um facto, em que era necessário tomar uma atitude.”

Mas, mesmo que a dimensão LGBT seja evidente no seu trabalho através do recurso a iconografias eróticas tanto classicistas como subversivas (confirme-se em The Garden, releitura de histórias da Bíblia à luz do amor homossexual), Jarman era menos um cineasta “queer” e mais um cineasta “punk”, um rebelde com causa. “Definitivamente”, confirma Fowler. “Ele era punk no sentido em que era confrontacional mas não queria ficar nas margens. Queria ocupar um espaço no mainstream, ao mesmo tempo que fazia filmes assumidamente gay.” James Mackay, ao telefone de Edimburgo, confirma. “O Derek não se contentava em fazer pequenos filmes underground, era ambicioso e queria fazer filmes para o grande écrã. Era possível, desde que existisse vontade de forçar as portas – havia gente interessada, cinemas independentes que mostravam os filmes e ajudavam a distribuí-los. Era algo muito específico daquele período e foi também daí que o punk veio. Tinha a ver com a dimensão faça-você-mesmo.”

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Jarman foi um pioneiro do filme-ensaio alegórico e experimental com, por exemplo, The Last of England; Impressões visuais de três canções de Marianne Faithfull: Witches Song, The Ballad of Lucy Jordan e Broken English; Edward II, "drama gay"

“Do it yourself”

E os filmes de Jarman eram, autenticamente, “faça-você-mesmo”. Autor na década de 1970 de uma profusão de curtas de artista em super 8 (através das quais conheceu James Mackay, que dirigia na altura o cinema da Cooperativa de Cineastas de Londres), Jarman transportou a dimensão improvisada desses filmes privados para muitas das suas longas-metragens, rodadas sem guião, estrutura ou financiamento. “Não trabalhávamos com um guião,” reconhece Mackay, que nunca tinha produzido um filme antes (e produzir Jarman raramente correspondia a uma produção “convencional”). “Tínhamos uma câmara, algumas luzes, um grupo de pessoas e decidíamos o que fazer na véspera. Havia uma ideia, mas se ela não resultasse abandonávamo-la e passávamos a outra coisa. Não estávamos limitados pela necessidade de prestar contas às burocracias. Fazíamos os filmes sem financiamento: rodávamos, montávamos, só depois mostrávamos aos decisores e era aí que conseguíamos o dinheiro para completar a montagem, fazer a pós-produção ou pagar a gravação da banda-sonora”.

Tudo isto nascia da educação artística de Jarman, que se via acima de tudo como “um pintor”. “Derek não era um argumentista nem um realizador no sentido convencional das palavras,” diz Mackay. “Via um filme como construído a partir de uma série de sequências. Essas sequências não tinham necessariamente de estar ligadas a uma narrativa, mas ao justapô-las, ele criava um determinado ambiente, um significado, de um modo que penso ser quase impressionista. Construía os seus filmes dentro da sua própria cabeça, e via-os tão claramente que, quando chegava ao plateau, era capaz de pôr em imagens o que tinha pensado.”

Acima de tudo, James Mackay recorda Jarman como um cineasta prolífico, com uma extraordinária capacidade de trabalho e inteligência visual. “Estava constantemente a trabalhar. Não acreditava em férias nem em dias de folga; estava sempre a escrever, ou a pintar, ou a filmar, ou a jardinar… Ele morreu jovem, mas deixou um acervo de trabalho substancial. Pense que ele começou a fazer filmes em 1971, e por 1974 já tinha feito mais de 35! A única pessoa de que me lembro que foi tão prolífica foi Rainer Werner Fassbinder – alguém completamente diferente, mas que tinha uma mesma produção constante e consistente de trabalho de qualidade.”

William Fowler vê traços do ADN de Jarman em cineastas contemporâneos como Annie Kershner, Ben Wheatley ou Andrew Kotting, mesmo que sejam traços mais casuais do que assumidos. Mas, tal como James Mackay, reconhece que Derek Jarman foi caso único no cinema inglês, um autor motivado e profundamente inglês. “Pode bem ter sido uma janela única no tempo que se fechou entretanto”, diz o produtor. “Hoje é muito mais difícil fazer-se um filme como Derek os fazia.”

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