Há dias, não resisti à curiosidade de ouvir a gravação de um plenário da redacção do jornal i, onde um administrador, em vias de se tornar director, apresentou um programa “salvífico” que implica o sacrifício, a retirada e a renúncia voluntária de uma parte considerável dos jornalistas. É um documento extraordinário do nosso tempo: tem uma dose de loucura e outra de crueldade a roçar a perversão. Mas o mais inquietante é que a gravação foi difundida on-line por decisão do próprio administrador, o que significa que, por aqueles lados, a loucura foi naturalizada e a perversão é exibida sem pudor. Mas o documento lança uma suspeita: será que não teríamos muitos outros documentos como aquele se as reuniões “terminais”, digamos assim, com os empregados, destinadas a transmitir-lhes o destino das respectivas empresas (não apenas as de comunicação social) fossem gravadas e tornadas públicas? Um ambiente de medo, de chantagem e de aniquilação pura e simples é a regra em muitos locais de trabalho. Mas em relação a um jornal tendemos a pensar que nunca se chega a um tal nível. No entanto, algo se transformou nas últimas décadas e os jornais tornaram-se completamente permeáveis às lógicas mais duras das relações de trabalho. Os jornalistas são hoje uma classe proletarizada a quem não é reconhecida a pertença ao universo profissional dos que gozam de autonomia intelectual. Esse privilégio, associado à caução de uma assinatura pessoal, é uma coisa do passado. A partir do momento em que as notícias, de um modo geral, deixaram de ser a matéria-prima dos jornais, o poder oligárquico transferiu-se em grande parte para a chamada “opinião”, que se dilatou de maneira insensata e se tornou um derivado do entretenimento. E como a opinião pode ser fornecida por pessoas exteriores, no limite um jornal é apenas um novo género editorial, isto é, o produto de escolhas e decisões que não exigem a concepção de um jornal como uma totalidade. O jornalismo torna-se assim mais um ramo da “indústria de conteúdos”, que é uma coisa que se dispensou de pensar a sua forma. Nada disto acontece por acaso, e sem dúvida que muita gente implicada, embora olhando criticamente o processo, sente-se arrastada por uma poderosa força coerciva. Como na lógica da economia política do nosso tempo, também aqui há uma voz que se ouve por todo a lado a dizer: não há alternativa. Mas quando olhamos as coisas mais de perto, a alternativa existe sempre. Foi por castigo divino e por inelutável lei trágica que os trabalhadores do i ficaram submetidos a um tal administrador? Seja-me permitido introduzir uma nota da experiência pessoal. Durante cerca de 20 anos, o director do Sol, José António Saraiva (cuja sorte é a prova de que não há justiça imanente), foi director do jornal onde eu trabalhava, o Expresso. Recordo-o como um senhor educado, que exercia o seu poder de maneira discreta e sem impulsos de chefe tirânico. Fui sempre tratado por ele com a maior decência e gozei da máxima liberdade. Mas lembro-me, também, que os seus textos não eram exactamente o que de mais apreciável ele tinha para nos dar e muitos eram os que na redacção do jornal perguntavam: mas não há alternativa? Nos últimos anos, raramente li os seus artigos no Sol, mas todos os que li eram cómicos a valer. Involuntariamente cómicos. Espantei-me muitas vezes que os seus artigos não fossem um impedimento para o exercício das suas funções. A sua sobrevivência, como a de muitos outros, é a prova de que a lei darwiniana não se aplica às espécies intelectuais.
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