Colecção Miró: o que está em jogo?

Com o caso ainda em tribunal, o leilão das 85 obras de Miró em Londres pode estar em risco. Através de vários documentos a que o PÚBLICO teve acesso, é possível perceber melhor a história de uma polémica.

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As obras estiveram expostas em Londres mas acabaram por voltar para Portugal Corbis

O Governo foi avisado, já a decisão de leiloar as obras do BPN estava tomada, mas não convenceram os argumentos da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) aqui citados num dos documentos a que o PÚBLICO teve acesso, que defendeu a manutenção das obras em Portugal. A necessidade de reduzir o “buraco” do BPN sobrepõe-se ao que seriam os interesses culturais do país e por isso a prioridade é mesmo vender as obras.

O que talvez o Governo não estivesse à espera era de que a decisão de leiloar esta importante colecção se tornasse num dos casos do ano na área da cultura, na qual até o Ministério Público (MP) tem tido mais do que uma palavra a dizer. Três meses depois do leilão cancelado, correm ainda no tribunal duas acções, interpostas pelo MP, para impedir a venda e foi decretada a medida provisória que impede a saída das 85 obras. O leilão de Junho, que ainda não tem data marcada, já pareceu mais certo.

São muitas as perguntas sobre todo este caso que despertou a atenção não só do meio cultural mas também da classe política e da imprensa nacional e internacional. Se em Novembro quando o leilão foi anunciado pela leiloeira internacional Christie’s foram muitas as vozes que se fizeram ouvir contra a venda desta colecção, tendo até sido criada uma petição online que pedia a manutenção das obras em Portugal, em Janeiro a discussão ganhou outra dimensão à medida que o leilão, marcado para os dias 4 e 5 de Fevereiro em Londres, se aproximava: o Partido Socialista (PS) encabeçou a onda de contestação e fez chegar à Procuradora-Geral da República (PGR) uma exposição a pedir a suspensão da venda a apenas dois dias da data marcada. Foi aí que o Ministério Público interpôs a primeira providência cautelar.

O Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa não inviabilizou a venda mas detectou irregularidades no processo de expedição da colecção, uma vez que as obras tinham viajado para Londres sem que a DGPC fosse avisada da sua saída. Dita a Lei de Bases do Património Cultural que a DGPC tem de ser avisada com 30 dias de antecedência da intenção de saída das obras e neste caso a então directora-geral do Património Cultural, Isabel Cordeiro, só soube que as obras tinham saído quando leu na imprensa que já estariam em Londres. Mesmo assim o tribunal acabou por não considerar, dias mais tarde, que esta ilegalidade, não assumida até agora por ninguém, representasse um impedimento para a realização do leilão. E foi a própria Christie’s que cancelou o leilão, julgando não ter reunidas as condições de segurança necessárias para a venda das obras. A leiloeira manteve-se no entanto interessada no negócio.

As obras voltaram para os cofres da Caixa Geral de Depósitos, em Lisboa, para que desta vez todos os procedimentos fossem cumpridos. Parecia desta vez estar tudo encaminhado, até se saber que a leiloeira queria que as obras viajassem para Londres até ao final de Abril de forma a expô-las antes do leilão – procedimento habitual no mercado da arte. Mais uma vez, em cima da data decisiva, o Ministério Público interpôs uma providência cautelar – a terceira – e pediu o decretamento da medida provisória que impede que as obras saiam do país até existir uma decisão do tribunal.

E agora? O leilão de Junho está provavelmente em risco, tendo em conta o tempo habitual que estes processos demoram no tribunal. A Parvalorem e a Parups, que são as proprietárias através das sociedades criadas no âmbito do Ministério das Finanças para recuperar créditos do BPN, poderão ter de pagar uma indemnização à leiloeira por não conseguirem cumprir com o que está contratualizado – lê-se na minuta do contrato a que o PÚBLICO teve acesso que é uma obrigação das entidades contratantes “entregar os bens ou mantê-los à disposição da leiloeira, quando tal lhe seja solicitado pela mesma”.

Apesar de termos tido acesso ao esboço do contrato, os seus detalhes não são conhecidos até hoje, uma vez que as sociedades portuguesas alegam uma cláusula de confidencialidade que as impede de revelar. Quanto à possibilidade do leilão estar em risco e à necessidade de haver uma indemnização em caso de incumprimento, a responsável pela comunicação da Christie’s, Hannah Schweiger, não quis responder esta semana ao PÚBLICO, limitando-se a dizer que a leiloeira “está a acompanhar todos os acontecimentos”.

Quem também se tem remetido ao silêncio é a Procuradoria-Geral da República. A procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, disse em Fevereiro numa entrevista à RTP que tudo faria para defender o património cultural de Portugal.

Questionada na segunda-feira sobre a razão desta nova providência cautelar interposta na semana passada, sem que exista ainda uma decisão relativamente à segunda providência que ainda corre no tribunal e que pede além da manutenção das obras em Portugal a sua classificação, a PGR continuou sem prestar esclarecimentos.

Dúvidas tem também Francisco Nogueira Leite, presidente da Parvalorem e da Parups, que há quase três semanas pediu uma audiência com a procuradora-geral da República para falar sobre todo este caso mas não teve até hoje uma resposta. Ao PÚBLICO Nogueira Leite explicou que com este encontro pretendia “esclarecer a PGR”, entendendo que “uma troca de impressões pode ser positiva para manifestar toda a nossa disponibilidade e interesse em colaborar para o eventual esclarecimento dos factos em relação aos quais sabemos ter sido tudo feito no estrito cumprimento da legislação em vigor”.

A PGR tem pedido nestas acções que se classifiquem as obras do artista catalão, sujeitando-as assim a uma protecção legal especial que as impede de sair para o estrangeiro para serem vendidas. No entanto, esta colecção do BPN só deverá ser classificada se a Parvalorem e a Parups quiserem, uma vez que está no país há menos de dez anos. Além disso, como a classificação tem que ser assinada por um membro do Governo. E tanto Francisco Nogueira Leite como o secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier, e o próprio primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, já disseram não ser esta a vontade do Governo. Lê-se no artigo 68.º da Lei de Bases do Património Cultural que “salvo acordo do proprietário, é vedada a classificação como de interesse nacional ou de interesse público do bem nos dez anos seguintes à importação ou admissão”.

Por isso mesmo, dizem fontes ligadas ao processo, dificilmente o tribunal poderá determinar a classificação da colecção. Embora existam algumas dúvidas sobre se realmente as obras estão cá há menos de dez anos, como já referiu mais do que uma vez a deputada socialista Gabriela Canavilhas, uma das vozes mais activas contra a venda desta colecção. Ao que o PÚBLICO apurou, o pedido de importação definitiva para as primeiras obras desta colecção foi pedido em Outubro de 2004, sendo todos os outros pedidos posteriores. Os registos de liquidação (o pagamento da importação), carimbados pela Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo, a que o PÚBLICO teve acesso, têm também menos de dez anos. De acordo com estes documentos, a 30 de Dezembro de 2005 fez-se o primeiro registo de liquidação para as primeiras 41 obras, depois a 15 de Março de 2006 fez-se mais um registo de liquidação para outras 23 obras e por fim 17 obras a 3 de Abril de 2008.

Toda esta documentação foi entregue à DGPC que na semana passada autorizou a saída das obras para Londres. Já em Janeiro tinha dado entrada na DGPC um pedido de classificação das obras por iniciativa do PS que não teve seguimento.

Enquanto directora-geral do Património, Isabel Cordeiro, que deixou o cargo no final de Janeiro – Nuno Vassallo e Silva é o novo director –, alertou mais do que uma vez o secretário de Estado da Cultura para a importância da colecção mas o argumento principal nunca foi a classificação das obras, segundo os documentos a que o PÚBLICO teve acesso.

Nos mesmos documentos, é possível fazer o historial desta importante colecção: tem origem na maior colecção privada dedicada a Joan Miró, adquirida em 1990 pelo empresário japonês Kazumasa Katsuta à família de Pierre Matisse e que constituía parte dos fundos da sua galeria em Nova Iorque. Isabel Cordeiro não usou meias palavras na sua argumentação: é “uma oportunidade única”, “o Estado tem em seu poder uma colecção de inegável importância patrimonial, relativa a um autor de primeira grandeza no panorama da arte moderna internacional do século XX , e que deveria preservar e dar à fruição pública”.

Isto foi o que a antiga directora-geral escreveu a 15 de Janeiro num documento endereçado a Barreto Xavier, destacando ainda a possibilidade de Portugal “reforçar significativamente o seu posicionamento estratégico, enquanto detentor de uma colecção de arte moderna de primeira importância que abre portas a intercâmbios internacionais”. Para sustentar esta argumentação, a DGPC pediu a elaboração de pareceres a David Santos, director do Museu Nacional de Arte Contemporânea –  Museu do Chiado, e a Pedro Lapa, director artístico do Museu Colecção Berardo, a que o PÚBLICO também teve acesso, e ambos os especialistas defenderam a manutenção da colecção em Portugal.

David Santos escreveu que o bem em causa “reveste-se de inestimável valor cultural” e a sua perda para o país é “irreparável”. Para o director do Museu do Chiado, esta é “uma das colecções mais valiosas em termos artísticos, reveladora das diversas fases e processos de trabalho de um dos mais decisivos artistas do modernismo internacional”, defendendo a integração da colecção no seu museu, “porque apesar das colecções deste museu serem constituídas maioritariamente por obras de arte portuguesa ou identificadas com a história da arte em Portugal de 1860 à actualidade, existem nelas alguns significativos núcleos de arte internacional (por exemplo, de escultura francesa do final do século XIX e princípios de XX, de Jean-Baptiste Carpeaux, Auguste Rodin, Emille-Antoine Bourdelle, Aristide Maillol ou Joseph Bernard)”. Por isso mesmo, David Santos considerou que a colecção devia constituir uma prioridade, contribuindo “para o inequívoco enriquecimento” do valor cultural e patrimonial da colecção do Estado português.

Pedo Lapa partilhou da mesma opinião e lembrou que o Estado português não foi capaz de construir no último século uma colecção internacional de arte moderna, “facto que posiciona o país num patamar de oferta cultural profundamente deficitário relativamente aos outros países europeus”. “Trata-se de um conjunto amplo e extremamente significativo de obras que representam as mais diversas fases do artista, um dos nomes maiores e universais da arte moderna do século XX”, defendeu Lapa, que foi dos poucos que chegou a ver as obras no tempo do ex-banqueiro José Oliveira Costa.

Segundo o presidente da Parvalorem, o montante arrecadado no leilão, cuja estimativa mínima e garantida é de 35 milhões de euros, tem de entrar este ano nas contas das empresas de forma a amortizar a dívida do BPN.

O valor a obter com as obras poderia, no entanto, ser mais alto, lê-se na estratégia do leilão elaborada pela Parvalorem a que o PÚBLICO teve acesso, caso a venda da colecção se realizasse “em dois momentos e em dois mercados (por exemplo Londres e Nova Iorque)”. “Porém, neste caso, a controvérsia que existiu e a exposição mediática a que já foi sujeita a colecção no passado, não permite explorar ao máximo esta estratégia.”

No início de Abril, o empresário luso-angolano Rui Costa Reis propôs ao Governo a compra das 85 obras de Miró por 44 milhões de euros, com a condição de a colecção do artista ficar durante 50 anos em exposição no Porto, mas Nogueira Leite, que diz nunca ter recebido uma proposta formal, defende que qualquer interessado na colecção tem de ir a leilão. "É o método mais transparente."

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