A família, a doença, eis o campo de batalha

A família, a doença, a perigosidade irresistível dos convívios: eis o campo de batalha que o olhar rigoroso de Valério Romão volta a transformar em escrita precisa e dominada.

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A doença e a família, duas correntes importantes da escrita de Valério Romão, estão presentes no seu mais recente livro Miguel Manso

Valério Romão tem construído na sua ficção, em particular nos livros de contos que publicou – Facas (Companhia das Ilhas, 2013), Da Família (Abysmo, 2014), Dez Razões para Aspirar a Ser Gato (Mariposa Azual, 2015) –, universos com uma recorrência temática forte. Cada um deles se desenvolve em torno de um núcleo que lhe confere a constatável coesão, mas que lhe permite, também, um princípio de ultrapassagem. O que desvia as suas narrativas de uma obediência absoluta a essa linha matriz. Os instrumentos de corte e as incisões do primeiro livro, as descontinuidades e vazios familiares do segundo, dão lugar, no mais recente, a um desejo formulado em registo só aparentemente burlesco. Nenhum destes livros tomou à letra, nem a faca, nem o agregado familiar, nem a aspiração felina. Os gumes foram instrumentos para golpes habilmente metafóricos, aplicados sobre realidades que se quiseram escalpelizar – e que se conseguiram amanhar com bom proveito. Os agregados familiares foram esculpidos sem qualquer complacência, e neles a humanidade podia rever-se no desastre de existir a prazo. Em Dez Razões, uma vez mais, a escrita de Valério Romão joga com a ilusão de óptica do fantástico (como já sucedia, por exemplo, com o conto Quando o pai começou a meter ar, em Da Família), sem nunca realmente sucumbir por completo a esse modelo. O paradigma que, desde o título, parece instalar-se é, na verdade, o de uma certa dubiedade. Não se trata de qualquer projecto de metamorfose que estilhace os limites do verosímil, nem ponha em causa a feitura da narrativa.

Nada nos dez contos reunidos no mais recente livro de Valário Romão dá realmente continuidade ao falso isco lançado pelo título. Nesse sentido, aquele não é exactamente um desejo que oriente cada uma destas ficções, mas apenas uma espécie de tom para uma melodia que percorre caminhos mais complexos na sua composição. A vontade de encarnar no felídeo não consiste num truque da maquinaria contística, que espevite o arranque, ou alimente o andamento dos contos. Na maior parte dos casos, pelo contrário, funciona como uma espécie de corolário, à maneira de um tratado filosófico. O estado a que chegam as personagens e a sua situação faz da figura do gato, simultaneamente, uma miragem de salvação – duvidosa e inviável – e uma técnica da ironia. Perante vidas que se desenquadram, esfacelam, ou não chegam a arrancar da fase de planificação, aquele animal – que seduziu, desde Baudelaire, uma legião de poetas e ficcionistas seus seguidores, conscientes ou não – surge como a última paragem. Em alguns casos, a última etapa do desespero. A geometria exacta e elegante desta espécie arquetípica – “um gato exactamente felino na cabal execução da sua identidade” (p.18) –, muito mais do que um incidente da montagem narrativa, é um caso notável de sabedoria inconsciente – “[a gata] sabia ser na forma mais perfeita do presente do indicativo”. Quando as personagens, depois de esgotarem o renque de tentativas à sua disposição, aspiram a serem gatos, esse estágio surge sempre como uma espécie de malicioso deus ex machina, que não salva, obviamente, a situação. Porque a redenção apresentada é, por maioria de razão, uma contrafacção metodológica, um presente de grego e, portanto, envenenado. Sinal de desespero, de vazio ou alienação, esse último desejo de um condenado parece ser o derradeiro sinal de uma ficção que está tão apontada a essa espécie de etnografia crítica de que alguma prosa é capaz – “Às cinco da tarde são as colegiais que se esmeram em delapidar às escondidas os perfumes das mamãs, às cinco e meia uma invasão de Old Spice anuncia o despejo de dezenas de funcionários públicos com tendências conservadoras” (p.60) –, como à fuga a uma fidedignidade rigidamente naturalística – “Ruelas de silicone e edifícios, pedaços moldáveis de betão (…) lojecas de bairro.” (p.39) Mas mesmo nesses momentos, em que a descrição transcende o figurativo, repare-se que o silicone estranhável é compensado pelas lojecas, e o betão que se molda pela existência de bairro. Esse é um dos ganhos desta escrita: conseguir recriar a o concreto como uma espécie de irrealidade impossível de fixar sem ser por sucessivas mas discretas adulterações. Como uma verdade com filtro. Por esse motivo, Valério Romão pode passar de uma amostragem claramente representativa – “Não há tempo para dizer a verdade, não há coragem para fugir ao embuste programado, todos acedem a esconder uns dos outros uma intimidade cinstruída à volta de um ecrã colorido.” (p.9) – para gestos mais subjectivos, em que o investimento do narrador observador se fixa em pormenores menos generalistas mas com maior impressividade, como os que assomam na constatação de uma “esplanada infecta de incenso psicotrópico” (p.21).

A doença e a família, duas correntes importantes da escrita de Valério Romão, estão presentes no seu mais recente livro. As variegadas maleitas que pontuam Dez Razões para Aspirar a Ser Gato vão do menos esperado ao corriqueiro optométrico, mas atingem o seu cume ao apresentarem estados extremos, como o que se revela nesse “bocado disforme de plasticina rosa que os médicos diziam ser o meu corpo” (p.39), ou num “misto de carne troncos membros pau para toda a obra um apêndice da vontade obediente” (p.43). A capacidade de plasticizar, dar espessura, cromatismo e pulsação aos corpos é outra das valias desta escrita, que já estilizara implacavelmente e aproveitara de forma admirável os ambientes hospitalares em Autismo (Abysmo, 2012) e O da Joana (Abysmo, 2013). E que agora sabe introduzir a dominante temática da fragilidade de corpo e mente no sentido de fazer dessa presença um dado inescapável de determinada existência, e não um estratagema unicamente estético – “a avó traça a perna num arremedo subtil de Parkinson” (p.10). Uma personagem como esta – e Da Família tinha um conto chamado A avó foi sendo esquecida – adquire a função de involuntário eixo de ligação entre a doença e a família. Este é o cadinho de tensões e posicionamentos crispados, de estratégias e de falta de saída. A apatia generalizada– “Em casa tenho a vantagem do hábito” (p.33); “naquela indiferença atenta que só as mulheres conseguem reproduzir” (p.50) – ou o conflito aberto entre as partes tornam o núcleo familiar demasiado próximo de um campo de batalha para que não devamos reconhecer as baixas, nem vistoriar os danos. Pelo caminho, fica a lamentável automatização do que devia ser espontâneo, como o beijo que, segundo Wittgenstein, devia aspirar a ter a espontaneidade de uma maçã – “coisas que fazemos sem pensar, sem querer, sem saber, coisas pelas quais operamos em modo de piloto automático mais de metade da vida e que só existem para preencher os buracos temporais em que o desejo de algo alheio se imiscui no que já chega e sobeja” (p.79). Ou a inutilidade das tentativas e dos artefactos de que precisamos de nos rodear – “o carro que soluça uma revisão adiada há anos” (p.16) O universo doméstico é o habitat privilegiado para uma visão tendencialmente amarga, desencantada, onde as personagens parecem tantas vezes vogar pisando “a fronteira absurda entre dias úteis e feriados” (p.18). É por esse motivo que encaram o gato num de dois extremos: desprezíveis “bichos elásticos e resistentes, volumes de pêlo que se esgueiram em buracos impossíveis, pequenos motores ecológicos sempre à cata de comida com vertigens” (p.68), ou represenantes de um espécime “geneticamente filiado numa comunidade de mamíferos aspirantes a deuses” (p.11). Motivo de despeito ou inveja. O que, no caso, produz o mesmo efeito: aspirar a ser gato.

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