Boom turístico, estatísticas e museus
As vistas curtas não são apenas estreitas no plano da promoção dos nossos museus junto dos circuitos internacionais. São-no também, e antes de tudo, junto dos cidadãos nacionais.
Duas bases de dados de estatísticas sobre museus foram publicadas nos últimos meses. Uma delas, de âmbito mundial e referente a museus de arte, encontra-se já disponível em toda a extensão. Trata-se do inquérito promovido anualmente pela revista The Art Newspaper, publicado em Abril passado. Da outra, conduzida pelo Centro de Investigação e Estudos de Sociologia-Instituto Universitário de Lisboa e versando somente sobre 14 museus da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), conhecem-se apenas extractos apresentados em Maio último, aguardando-se a sua divulgação extensiva no final ou depois do Verão. Em ambas as citadas fontes um fundo comum: o boom turístico existente nalguns países, ou a falta dele, noutros. E, vistos da nossa janela, o seu (des)aproveitamente e as suas (in)consequências.
No plano internacional, a consistência anual dos inquéritos permite procurar linhas evolutivas. Neste jornal, em 21.4.2014, expúnhamos alguns dos resultados do inquérito de 2012 debaixo da epígrafe: As “grandes exposições”, os museus e o provincianismo nacional. Salientávamos então, e lamentávamos, a ausência de Portugal da lista dos 100 museus de arte mais visitados no Mundo. Situação mais agravada ainda porque Lisboa nem sequer figurava também na lista das exposições com mais de 1000 visitantes/dia (contrariamente ao Porto, através de 5 exposições nessas condições, realizadas em Serralves). As coisas mudaram entretanto um poucochinho. Em 2015, Portugal já surge representado na lista dos 100 museus, com um museu lisboeta (Museu Berardo). E com onze exposições, todas no Porto e em Serralves.
Fraco consolo, porém, porque somente fruto de uma tendência geral de dispersão dos ditos 100 museus por maior número de países. Num contexto em que o turismo estrangeiro conhece uma verdadeira explosão, com taxas anuais superiores a dois dígitos, reflectidas em alguns museus (o caso mais notável é o Museu Arqueológico do Carmo, que aumentou 44% ao ano, nos últimos cinco anos), o crescimento assinalado pela The Art Newpaper é pouco mais do que risível, continuando a ser válida a observação e repto com que terminávamos o texto acima citado: “aqui ninguém ousa actuar audaciosamente e acabar com as capelinhas (serviços centrais do Estado, autarquia, galeristas, museus), criando no imediato uma task force para pensar um pacote de museus e exposições a incluir na oferta turística de uma capital, que assim teima em continuar provinciana, sendo porventura a única onde cada um sabe de si e já nem sequer nenhum deus sabe de todos.” As estatísticas aí estão a comprová-lo. Mas nem elas seriam necessárias, porque bastaria observar o espectáculo ocorrido nos últimos meses em torno do chamado “Eixo-Belém-Ajuda”, opondo Câmara a Governo e, dentro deste, velhos e novos governantes e seus gestores de estimação.
As vistas curtas não são apenas estreitas no plano da promoção dos nossos museus junto dos circuitos internacionais. São-no também, e antes de tudo, junto dos cidadãos nacionais. Como se disse, no caso português escasseiam os dados e o inquérito referido abrange um universo de museus muito restrito. Ainda assim, os jornais apressaram-se a fazer retratos breves, positivos uns (satisfação geral é de 96,7%, visitante dos museus é jovem, tem formação e procura-os porque a arte lhe dá prazer…), negativos outros (os nossos museus não são para "velhos", museus nacionais devem melhorar comunicação nas redes sociais, público crítico com a informação). Enfim, dir-se-ia que nada verdadeiramente de novo debaixo da terra.
O que, sim, não sendo novo, merece referência especial é a circunstância de 37% dos entrevistados portugueses dizerem que a gratuitidade de acesso constitui factor importante da sua visita a museus. Sabendo que as condições de resposta, nomeadamente em tempo e atenção requeridos, conduziram à sub-representação de segmentos de público com menor apetência de visita, fácil é concluir que os valores reais não devem estar abaixo dos 50% e seriam ainda maiores em universo de museus mais alargado - no que mais uma vez se prova a importância deste factor, por muito que os bem colocados na vida, incluindo alguns profissionais de museus, insistam em o desconsiderar.
Abre-se aliás aqui toda a magna questão da visita dos cidadãos nacionais aos museus. Descontado o Museu Nacional dos Coches (MNC), pelas razões a seguir indicadas, nos restantes treze museus inquiridos, entre 2012 (último de que existem dados, porque desde que há DGPC foi abandonada a exigência anterior de prestação de contas extensiva) e 2015 houve uma redução, embora marginal, do número de visitantes nacionais; pelo contrário houve um aumento considerável (mais de 30%) dos visitantes estrangeiros. Mesmo em termos mais amplos, no conjunto dos museus da DGPC, os portugueses aumentaram somente em 1,4% ao ano no último quinquénio (para 11,4% dos estrangeiros). De toda a evidência, o que se está a passar é uma lenta agonia da relação dos museus nacionais com aqueles que deveriam constituir os seus principais destinatários, os portugueses.
Dir-se-ia que existe uma excepção, o MNC, que em Janeiro passado já dava títulos de jornal dizendo que “bate recordes” e desde aí tem servido de regozijo para gestores e políticos de turno. Desde que aberto o novo edifício, não somente cresceu muito em número de visitantes, como aumentou extraordinariamente a percentagem de portugueses. Mas aqui é que está o busílis: ao longo de muitos anos, desde sempre na realidade, o MNC estabeleceu uma estrutura de públicos amplamente dominada por estrangeiros, sempre acima dos 80%. Ora, em 2015 os portugueses chegaram quase a metade (45%)! É óbvio existir aqui o efeito circunstancial da novidade do novo edifício. Feitas as projecções nos termos do modelo estrutural referido, o número de visitantes do MNC deveria ser em 2015 cerca de 220 a 230 mil, um valor em linha com alguns anos anteriores e em todo o caso abaixo dos máximos atingidos no passado. Claro que a continuação do boom turístico em Lisboa irá beneficiar também este museu nos anos mais próximos, mas cá estaremos para ver se não tivemos razão quando agora fazemos estas contas. Como diz o povo, é só deixá-los pousar, museu e visitantes.
Arqueólogo, Presidente do ICOM Europa