Actor procura actriz para relação íntima

Para questionar a asfixiante vulgarização da intimidade, Elmano Sancho convidou para se lhe juntar no palco a actriz pornográfica Ana Monte-Real. I Can’t Breathe pergunta onde está, afinal, a pornografia nas nossas vidas.

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Elmano desequilibra os pratos da balança, assumindo um papel de inquiridor, de esgravatador da intimidade alheia, alimentando a ideia automática de que qualquer um pode legitimamente invadir a privacidade de alguém que se dedica ao cinema pornográfico ALÍPIO PADILHA
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Elmano e Ana vão construindo uma intimidade durante a peça que, em certa medida, é uma intimidade real ALÍPIO PADILHA
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A encenação de uma intimidade em palco, entre duas pessoas que, possivelmente, não mais voltarão a ver-se durante o resto da vida, inscreve-se também numa exploração consciente da ausência de filtros Alípio Padilha

Foram pelo menos 11 as vezes que Eric Garner terá dito “I can’t breathe” aos polícias que, em Julho de 2014, o atiraram ao chão e o imobilizaram ao mesmo tempo que o sufocavam. O uso despropositado da força, filmado por uma testemunha, acabaria por acender mais um rastilho na denúncia da conduta desregrada da polícia norte-americana contra a população negra, e a morte de Garner naquele mesmo passeio de Staten Island (onde foi interpelado por vender cigarros avulsos) levaria à constituição de um forte movimento que tomou a sua frase suplicante como mote para a contestação de um clima social asfixiante. Aconteceu que Elmano Sancho se encontrava nos Estados Unidos nessa altura, em fuga do percurso que vinha fazendo em Portugal, procurando identificar o caminho que poderia vir a desenvolver enquanto actor e encenador – e que começara a experimentar, nesse mesmo ano, com o monólogo Misterman, de Enda Walsh.

Nesse gesto de fuga, nessa tentativa de partir para longe a fim de garimpar aquele que poderia ser o seu rumo “único e não uniformizado” no teatro, Elmano Sancho era também movido por uma necessidade de espaço. E a partir da “incapacidade de respirar de um cidadão que foi violentado pela polícia”, começou então a pensar o que significaria essa mesma falta de ar imposta por uma pressão externa, mas pensando-a como proveniente dos meios de comunicação. Ocorreu-lhe, por exemplo, que sempre se sentiu “um pouco violentado” quando é instado a confidenciar algo mais sobre si, sem perceber o interesse que alguém possa ter na sua privacidade. Identificado esse agente de sufocação, quis perceber melhor tal “necessidade exacerbada de tornar tudo visível” e o impulso de sonegar toda a intimidade até não restar qualquer mistério sobre o outro. Foi este pensamento que conduziu à peça I Can’t Breathe, “uma tentativa louca de agarrar o mistério, a ilusão e a poesia, quando a banalização da realidade não permite semear, não permite ter fé, não permite viver, não permite respirar”, diz Elmano ao Ípsilon.

Esse pensamento, na verdade, conduziu-o também à pornografia, pela assunção de que nesse território tudo é feito para ser exposto e revelado. Mas se Elmano Sancho fala de uma sociedade contemporânea assente numa estética do vazio – a piscadela de olho a Era do Vazio, de Lipovetsky, paira por aqui –, é exactamente o vazio que identifica na pornografia. Quando se mostra tudo, o que resta é nada. Foi assim que chegou, após algumas entrevistas, à actriz pornográfica Ana Monte-Real (protagonista de filmes hardcore nacionais como Tavares, o Arquitecto Quebra-Bilhas ou Ana Monte-Real com Molho à Espanhola), com quem partilha a cena em I Can’t Breathe. No palco, Elmano desequilibra desde logo os pratos da balança, assumindo primeiro um papel de inquiridor, de esgravatador da intimidade alheia, alimentando a ideia automática de que qualquer um pode legitimamente invadir a privacidade de alguém que se dedica ao cinema pornográfico, como se partisse desde logo de uma posição de força.

Bilheteira Artistas Unidos - 961960281 Espectáculo: terças e quartas às 21 horas, de quinta a sábado às 19 horas.Preços:Normal | 10 EurosDescontos | – 25 | + 65 | Grupos >10 | 8 EurosDia do espectador | Terças | 6 EurosProfissionais do Espectáculo | 3 Euros (limite diário de bilhetes)

Publicado por Elmano Sancho em Quarta-feira, 25 de Novembro de 2015

“Achei que a Ana ia estar mais frágil”, confessa Elmano, pensando que a situação inicial, em que todos os olhos ficam presos na figura e nas respostas da actriz, constituiria um momento de extrema agressividade e que a sua vulnerabilidade operaria um efeito perturbador no público. “Mas eu acabei por estar mais frágil do que ela”, reconhece o actor e encenador. Se ele resolve testar o que lhe é permitido ou não fazer – “Posso dar-te um soco?, cuspir-te na cara?, lamber-te?, penetrar-te com objectos?” –, as respostas apenas expõem as defesas naturais daquela que pretende desvendar. “São calos forçados”, justifica Ana Monte-Real. “Com o tempo uma pessoa vai mudando de atitude, vai mudando a maneira como olha para os outros, como age com os outros, vai ganhando uma certa distância.” Daí que, ao contrário que Elmano poderia supor, a actriz argumente que “ele se expõe muito mais”. “O que ele faz é muito mais agressivo e exposto do que estar a fazer uma cena num set de filmagens, em que visto uma roupa, ponho uma maquilhagem e entro na personagem, dentro de um cubo de vidro que inventei para me proteger.”

Ana acredita que o seu corpo na pornografia é como uma simples tela em branco, em que cada espectador projecta aquilo que bem entender. Desde terça-feira, e até dia 12, os dois apresentam I Can’t Breathe na apropriadamente designada Sala de Exposições do Teatro da Politécnica, em Lisboa.

Quanto vale a intimidade
Resgatando também da pornografia a ausência de uma clara linha narrativa, Elmano e Ana vão construindo uma intimidade durante a peça que, em certa medida, é uma intimidade real – uma aproximação entre um homem e uma mulher que não se conheciam antes deste espectáculo e que criaram e continuam a criar uma relação mediada por um texto que nunca sabemos se é ficcional ou confessional. Na sequência de uma obtenção de informação mútua sugerida por Rui Catalão e posta em prática durante uma residência n’O Espaço do Tempo, em Montemor-o-Novo, os dois foram desvelando algo sobre o outro e construindo uma relação ambígua em palco, em que o toque é elevado a um plano quase sagrado.

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Claro que numa contemporaneidade em que até a intimidade tem valor de mercado, a pornografia a que Elmano e Ana aqui se dedicam responde por outros nomes, tais como “pornografia da violência ou pornografia da morte”. Se o actor descreve em cena as disposições pretendidas para o seu próprio funeral e as anuncia e ensaia com absoluto rigor, é também da sua intimidade que prescinde, num sentido semelhante ao que testemunhamos nas redes sociais – fá-lo voluntariamente, tornando públicas decisões supostamente privadas, deitando fora quaisquer filtros de permeio e moldando como quer ser visto por terceiros. E, aqui, interessa a Elmano que a pornografia, a exposição deliberada de cada um, possa surgir também como pressão social, uma violência de grupo apontada contra o indivíduo e que o obriga a abrir a porta de sua casa e da sua cabeça sob pena de ser ostracizado e visto como traidor de uma prática orgiástica de partilhas de cada centímetro de privacidade.

A derradeira forma de pornografia, no entanto, decorre do próprio espectáculo. E Elmano sabe-o. A encenação de uma intimidade em palco, entre duas pessoas que, possivelmente, não mais voltarão a ver-se durante o resto da vida, inscreve-se também numa exploração consciente da ausência de filtros. “Já pensaste que nunca mais estaremos assim tão próximos?”, perguntam-se. Será, talvez, uma verdade nua e crua.

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