“Acordo” ortográfico e desacordo nacional
A reintrodução do tema pelo Presidente da República obriga a sociedade civil a uma reflexão.
Eis-nos, mais uma vez, a discutir um velhíssimo tema, que muitos terão por resolvido e que outros (muitos mais, a julgar pelos inquéritos e pelas posições publicamente expressas) insistem em reabrir: o chamado Acordo Ortográfico de 1990 (AO90). No ano passado, os pretextos foram dois colóquios, um na Faculdade de Letras de Lisboa (em Abril) e outra na Academia das Ciências de Lisboa (em Novembro), sintomaticamente intitulado Ortografia e Bom Senso. Desta vez, foram declarações do Presidente da República que reabriram o debate e o combate. O que se passa, então? Uma coisa simples: Marcelo Rebelo de Sousa sabe, como qualquer português medianamente atento, que o AO90 é motivo de apreensão, relutância e mesmo discordância em países africanos com peso na CPLP, caso de Angola e Moçambique. De visita oficial, agora, a este último, deixou no ar a hipótese de reabrir a discussão caso isso venha a justificar-se num futuro próximo. Perante isto, o governo apressou-se a esclarecer, pela voz do ministro nos Negócios Estrangeiros, que “aguarda serenamente” a ratificação pelos membros da CPLP e que, por isso, nada fará entretanto. O ministro da Cultura veio secundá-lo, confirmando esta posição. Que é, no fim de contas, a posição deste governo e dos anteriores. Mexe-se em tudo, tudo é revogável, mas quando se fala no AO, o silêncio e a paralisia dão as mãos.
É caso para isso, para não repensar sequer o assunto? De modo algum. Além de se perceber, desde há muito, que o AO90 é rejeitado por grandes maiorias (não resiste a qualquer inquérito público, basta ver o Fórum da TSF e o Opinião Pública da SIC de ontem), é cada vez mais evidente que ele não veio unificar a ortografia entre os países de Língua Oficial Portuguesa, mas sim dividi-la de outra maneira, tecnicamente errada e politicamente muito discutível. O presidente da Academia das Ciências de Lisboa, Artur Anselmo, que até sugere que o problema seja discutido e resolvido por todos “em boa paz”, refere-se à decisão governamental de 2011 de o impor a todo o custo como um “acto despótico e ditatorial”. Disse-o duas vezes, aos microfones da TSF, e disse-o de forma branda e cordata, como é seu apanágio.
Há problemas, muitos, na mesa: o problema legal (que tem vindo a ser apontado por juristas), o problema técnico (o AO tem erros crassos que até os seus apoiantes reconhecem, sem que tenham mexido um dedo para os corrigir nestes anos), o problema internacional (só Portugal e o Brasil o aplicam, de facto, e parcialmente; os restantes países, ou fingem aplicá-lo, ou o ignoram por mil e uma razões: desmotivação, falta de meios, oposição aberta ou velada), o problema dos objectivos não cumpridos (unificação da grafia, inexistente; ou o mercado “comum” de edições únicas, uma quimera já comprovada pela prática) e o problema, esse bem mais grave, do ensino: estão a ser ensinadas coisas às crianças que era suposto já terem sido emendadas e não o foram. “Pior do que isto era não ter acordo algum”, dizem os defensores do AO90. Não. Pior é ter este acordo e ter de suportá-lo como cruz de um calvário que alguém reservou só para nós, mesmo sem qualquer razão válida que o sustente.