“A minha vida, felizmente, foi sempre regida por questões contraditórias”

Filho de um casamento a que chama impossível, o músico brasileiro Egberto Gismonti cresceu com a certeza de que conciliar sinais contraditórios fazia parte da sua normalidade. Hoje na Casa da Música, amanhã no CCB, quer rever os amigos.

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Egberto Gismonti

Em causa estava a composição Bodas de Prata, gravada originalmente por Gismonti num dos seus álbuns fundamentais, Academia de Danças (1974). Desde então, o tema foi tocado e cantado por gente do jazz como Wayne Shorter e Sarah Vaughan, interpretado por figuras cimeiras da música erudita como Yo-Yo Ma e Martha Argerich, ouvido no reportório de um sem-fim de músicos brasileiros como Mauro Senise e Flora Purim. “Olha que beleza”, ficou a pensar Gismonti. “Fiz música para ir parar no Guinness”.

Tal reconhecimento apenas espelha a amplitude da música que Egberto Gismonti faz publicamente desde que lançou o primeiro álbum, homónimo, em 1969. Nascido no Rio de Janeiro, em 1947, dividiu-se desde criança entre o violão e o piano, adoptando os dois instrumentos, confundindo todos quantos gostam de se orientar com catalogações definitivas sobre géneros.

Por comodidade, diz-se que é um músico de jazz, mas, a par da improvisação e da complexidade que podem ajudar a tal classificação, Gismonti viveu e tocou com a tribo Xingu da Amazónia, estudou orquestração com Nadia Boulanger (discípula de Stravinsky) em Paris e integra as milhentas tradições musicais brasileiras (choro, frevo, etc.) nas suas composições. Para ele, tudo é mais simples do que isto. “No Brasil, dizemos que o importante é terminar o concerto e ouvir do público que vem assistir que estão satisfeitos e felizes, e vão sair para jantar, para dançar, para namorar, nada que esteja relacionado com a música”, diz ao PÚBLICO. É esse o seu objectivo para os concertos de hoje, na Casa da Música (Porto), e amanhã, no Centro Cultural de Belém.

Que concerto é este que vem apresentar a Portugal?

Para dar um resumo rápido: tenho 66 discos, 29 filmes, 25 ballets, 30 peças de teatro. Depois de tantos projectos, onde uma quantidade imensa de música foi feita, refeita e composta, na realidade me dou ao direito de não ir aos lugares para tocar um repertório X, e sim ir aos lugares rever os meus amigos. Porque quando se grava cinco, dez, 15, 20, 30 discos, o grande interesse é vender mais discos. Quando se grava 66 discos, o meu interesse é rever as pessoas que foram os melhores protagonistas da minha vida profissional. Ou seja, quando entro numa sala com dez pessoas, 500, mil ou 2 mil, olho essas pessoas e aquilo justifica a minha existência como músico. Então é isso: viajo para me divertir e encontrar meus amigos. Se puder tocar bem, melhor ainda.

Isso significa que actualmente já não prepara os concertos, no sentido de saber o que vai tocar? Sobe ao palco e improvisa?

Não, não é bem improviso. Eu tenho um longo texto, uma diferença para quem vai começar uma carreira. Eu toco, seja sozinho, com grupo ou com orquestras – coisa que faço constantemente –, sem partituras. Tenho um texto musical que perfaz 800 ou 900 músicas. E posso me dar o direito de começar a tocar e ir escolhendo aquilo que me parece estar sendo mais agradável para as pessoas ouvirem. Não toco buscando o aplauso. Fico sentado de frente, numa posição bastante fácil de ver as pessoas. A reacção delas, o olhar, a boa vontade, a benevolência, a doação, isso fica muito claro para mim. Então quando toco alguma coisa que definitivamente não condiz com a disponibilidade das pessoas, como não estou ali procurando vender disco nenhum – já fiz os discos que tinha de fazer, continuo fazendo mas não tenho interesse comercial nenhum nessa história – e não estou improvisando músicas, antes vou ordenando todas as falas musicais que tenho. Não tem nenhum nível de risco nisso. Até porque risco você tem quando tem medo de tocar. Eu não tenho receio nenhum, me sinto muito em casa. Não me posso referir a outras músicas porque não as conheço e não as frequento, mas para aquela música que faço diria que existe uma situação mútua, entre quem faz e quem ouve, de fidelidade muito grande.

Em que se concretiza essa ideia de fidelidade, no seu caso?

Sou muito fiel às minhas ideias musicais. Por mais que elas se modifiquem com o passar dos anos, elas se modificam como a vida nos modifica: vamo-nos maturando, modificando, tornando mais contraditórios – porque é um direito à liberdade. Mas existe uma fidelidade muito grande. É muito bonito terminar uma apresentação em qualquer parte e encontrar pessoas que vão ao camarim conversar e que mostram, por exemplo, uma foto que foi tirada há 12 anos, outro que traz um disco e diz que o filho quando nasceu ouviu muito a música tal. Tem sempre uma gentileza muito grande e um laço a que chamaria familiar, onde a fidelidade ao afecto é muito presente. Isso me diverte muito e me faz feliz. Em Portugal, ou em qualquer outro lugar, tenho sempre amigos. É interessante que se um dia escrever um livro sobre as minhas tournées, esse livro terá nomes de cidades e de pessoas. Não terá nomes de teatros, quantos discos fiz, se vendi muitos ou não. Isso nunca foi um alvo a ser alcançado e ocasionalmente, por conta do público, os discos que fiz acabaram por ser todos editados e a maioria deles continua sendo editada. E alguns muito raros ainda estão aparecendo.

Refere-se a Magico: Carta de Amor [registo ao vivo de um concerto de 1981, em trio, com Jan Garbarek e Charlie Haden, lançado pela ECM em 2012]?

O Manfred [Eicher, director da editora ECM] e eu tivemos uma conversa e acabámos lançando Carta de Amor, gravado há 31 anos. Tenho feito projectos com a ECM como co-produtor e o próximo disco, que já está pronto, contém duas orquestras diferentes: uma de jovens brasileiros que eu dirijo – moços e moças de 20 e poucos anos, tocando instrumentos de sopro – e a Nova Filarmónica de Tóquio. Será um disco duplo. No final de Abril, venho para a Europa novamente para gravar um outro disco para a ECM em que terá cordas – viola caipira brasileira, viola de 12 cordas e guitarra portuguesa. Normalmente, não vou a palco tocando esses instrumentos, que levei muitos anos aprendendo a tocar direito para poder me exprimir. É curioso que, depois de tantos anos, tenha tantos projectos contendo um leque que considero bastante largo. E cada projecto que eu fiz em disco tem um título não só em português – uma excepção: Meeting Point – mas têm títulos muito claros, voltados para uma história cultural de miscigenação. Isso é o que defendo na minha vida: misturar, não é separar.

É justo concluir que esse interesse pela miscigenação é, antes de mais, um reflexo da sua ascendência, sendo filho de pai libanês e mãe italiana?

Claro que sim. É evidente que se você considerar os moldes, as culturas tradicionais libanesa e italiana do Sul da Itália, será impossível, sob o ponto de vista teórico, uma mamma italiana, teimosa – porque as mammas da Catânia mandam em todo o mundo –, casar-se com um libanês machista. É impossível imaginar que isso possa dar certo. Nascemos três filhos – sou o mais novo dos três –, fomos crescendo e quando a vida começou a nos ensinar amor, afecto, respeito e dignidade, pouco a pouco fomos percebendo que éramos frutos de uma coisa quase impossível. O que nos deu direito a muita liberdade, porque se o impossível nos tornou reais, podemos procurar o impossível sempre. Então, sou um procurador de novas questões. E, para minha sorte, o Brasil tem questões novas todos os dias, sejam sociais, políticas, económicas, criativas, de engenharia, deontologia, de qualquer medicina. É um país muito contraditório. Mas tem uma coisa que começa a aparecer no Brasil, lentamente, de que gosto muito: os planos que fazemos não são mais para o futuro, são para hoje. Tenho a impressão de que o Brasil descobriu que os planos para o futuro nunca deram certo. Você tem de fazer planos para hoje – planos no sentido de estar feliz e excitado pela vida. Não adianta fazer um plano para daqui a 18 anos.

É curioso que se defina como um procurador. Há tempos, dizia que João Gilberto só tinha gravado meia dúzia de discos porque tinha encontrado logo aquilo que queria fazer. O seu percurso é movido antes por uma procura incessante, por uma insatisfação permanente?

Não, diria que o João Gilberto é muito mais competente do que eu musicalmente. Ele não precisa de 60, 70 ou 80 discos para falar algo que seja muito representativo. Conseguiu uma coisa que é praticamente impossível: um brasileiro que trabalha e vive com sínteses. Eu sou o típico brasileiro prolixo, que falo para pensar. O João Gilberto não precisa disso pela competência que tem. Basta um acorde, um compasso e meia palavra cantada para todos saberem o que ele está falando. Não tenho isso. Não tenho dúvidas de que o Tom Jobim, o representante dessa coisa a que a gente chama bossa nova, ele mais o João Gilberto mudaram um conceito de cantar e de tocar e de se acompanhar. Eu sou a pessoa que procura e que quer questões novas porque me foram dadas certas funções, ou a vida me propôs e aceitei certas questões. Por exemplo: “Como ser filho de duas raças tão contraditórias?”. Por esta razão é que fui estudar piano, porque o meu pai libanês queria um instrumento aristocrático, depois a minha mãe dizia “Va bene, o piano é forte, mas onde está a serenata?”. A serenata foi a guitarra que trouxe. São questões muito contraditórias que felizmente me foram colocadas quando eu tinha pouquíssima idade, onde a admissão da mistura é muito grande, porque as crianças não medem nada. A minha vida, felizmente, foi sempre regida por questões contraditórias. E a única maneira que encontrei de conviver com isso foi admitindo não ser responsável pelo que pensava ontem. Senão não teria o direito de me contradizer, e eu quero esse direito para viver feliz. Então o facto de fazer muito, não significa que eu tenha qualidade, significa que tenho muitas ideias e não estou ainda convencido que alguma delas seja fundamental.

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