“Que se há-de fazer? Desistir? Parar? Cruzar os braços? Claro que não.” O excerto de uma das Conversas em Família de Marcello Caetano, prédicas ao serão em que o Presidente do Conselho dos últimos anos do Estado Novo se dedicava a justificar os seus actos governativos, terá sido para muitos o primeiro contacto com o álbum que os Mão Morta lançam na segunda-feira, dia 26, a tempo do seu 30.º aniversário. No vídeo disponibilizado pelo grupo de Braga, Marcello fala e desaparece depois para dar lugar a uma sucinta explicação de Adolfo Luxúria Canibal sobre a história que corre por detrás de Pelo Meu Relógio São Horas de Matar: um homem de uma confortável classe média portuguesa vê o seu bem-estar ameaçado até deixar que a solidão e o individualismo em que vive se transformem num acto extremo de revolta motivado pela súbita consciencialização social.
Os Mão Morta cumprem três décadas em 2014, um feito raro para uma banda rock fatalmente marginal, e comemoram com um novo álbum — lá mais para a frente poderá haver um documentário de Rodrigo Areias e um livro com visões externas sobre a história do grupo. Por agora, vão vociferando que “os ossos de Marcello Caetano estão de volta ao Palácio de São Bento”. Afinal, que disco-rastilho é este com que os Mão Morta rompem um silêncio discográfico de quatro anos? Adolfo Luxúria Canibal responde.
Há pouco tempo, José Mário Branco perguntava-se de que serviria escrever canções num momento como o actual. Neste contexto político, económico e social, os Mão Morta sentiram algum desânimo?
Percebo o José Mário Branco porque ele tinha fé na capacidade regeneradora da canção. Nós nunca tivemos essa fé. Estamos na música porque gostamos de experimentar, de inventar e de criar canções novas. Mas não temos nenhuma expectativa de que sirvam para intervir no mundo em que vivemos. Claro que há pessoas a quem a canção pode fazer pensar nalgum assunto ao qual, de outra forma, poderiam não dar qualquer importância. Mas essa é a intervenção máxima que esperamos que a canção possa ter. Mesmo quando fazemos um disco como este, de intervenção — ainda que não com a expectativa que tinham os discos dos anos 70 de intervenção directa, de chamada à acção. É um olhar, o contar de uma história que tem a ver com a realidade das pessoas, com a realidade nacional. Mas é sobretudo um trabalho de composição e o lado político-social em que se transforma esse olhar é mais uma constatação e um levantamento de hipóteses de fuga a um estado de coisas do que propriamente um apelo geral às armas ou à sublevação. Dizemos que vale a pena fazer canções porque o prazer que nos une é este ritual que nos ajuda a pensarmos sobre nós e sobre o mundo.
Mas há, até no teaser que lançaram, um alimentar dessa ideia de revolta e de sublevação, mesmo que encenada e inserida num contexto vagamente ficcional.
O contexto é real, é o nosso contexto — não escamoteamos isso. Toda a ficção, todas as letras funcionam à volta, de uma forma clara, do real português; não conseguimos fugir-lhe e abstrair-nos dele. Quisemos assumi-lo. Mas não deixa de ser uma obra ficcional e vazia de expectativas interventivas a esse nível. Quisemos o nosso olhar e a nossa linguagem propositadamente poéticos, porque achamos que é muito mais rico e interessante.
Não sente, genericamente, que na música portuguesa há falta de inscrição de um discurso sobre o momento actual? Antes do 25 de Abril a música era metafórica porque tinha de o ser, agora parece que passou a ser uma defesa para não haver uma assunção de posições.
Não acho que a música tenha de ter esse papel de intervenção no real ou de análise do real. A música deve ter uma intervenção essencialmente musical e a revolução vem daí, da construção artística. Há algum medo instalado, não só na música mas em todos os sectores da sociedade portuguesa. As pessoas têm medo das consequências negativas que possam advir de qualquer tomada de posição menos politicamente correcta. Nesse sentido, acho que também na música há esse reflexo. Ser abstracto, não dizer o que está mal, não tomar posição é muito mais fácil. Trará menos consequências negativas.
No teaser vão buscar imagens de Marcello Caetano cujas palavras finais acabam, de forma quase enviesada, por servir de mote para a história. É uma provocação?
O teaser não foi feito por nós, mas achámos piada porque essa Conversa em Família do Marcello Caetano parece uma Conversa em Família, porventura, dos governantes actuais. O discurso é o mesmo: a falta de alternativas, o bem fundado das políticas, a ideia de que as vozes contra que se levantam têm os seus interesses ameaçados e, portanto, são vozes egoístas. Esse é um discurso que nos impingem há anos. De alguma forma, parece que o nosso momento presente não é um momento da democracia representativa, mas um momento de primavera marcelista.
Uma podridão de regime?
Não lhe chamaria podridão, mas acho que a democracia portuguesa neste momento está ferida de morte, porque não tem mecanismos que a salvaguardem. Quando temos eleitos que, chegando ao poder, desrespeitam completamente o mandato com que se propuseram governar e para o qual foram eleitos, e não há qualquer mecanismo de os eleitores que conferiram o mandato (e supostamente têm o poder na mão) arriarem aqueles que não estão a cumprir e porem lá outros que cumpram efectivamente a vontade colectiva, a democracia fica vazia de sentido e de essência, fica meramente formal. E isso transforma esta democracia no que era a primavera marcelista: um regime de partido único, de visão única, em que as vozes contrárias são abafadas.
Todos os cenários alternativos são apresentados como caos e desordem. É o medo como forma de controlo?
Sim, joga-se mais uma vez com o medo. Tudo o resto faz-se crer que são fantasias que, se levadas a sério, levam à destruição do pouco que temos e que ainda conseguimos preservar. Se aqueles que ainda não perderam o emprego derem ouvidos às fantasias, perderão certamente os empregos e ficarão numa situação pior. Se aqueles que ainda têm metade do salário derem ouvidos às fantasias, perderão certamente o resto do salário. O medo do que poderá advir se não for seguida a cartilha dominante é incutido constantemente, de maneira que a troca de ideias, a troca de opiniões, a troca de soluções que, no fundo, é a essência da democracia, acabam por ser completamente anuladas.
Há uns anos referia-se ao capitalismo como uma máquina autofágica que havia de degenerar em barbárie. Acredita que estamos próximos de descambar num tal cenário?
Esta crise que estamos a passar, como outras que houve no passado, são pequenas crises que indiciam que esse destino final é um destino muito lúcido, muito presente. Pode demorar mais ou menos tempo, pode ser na vida dos meus filhos, dos meus netos ou até mesmos dos meus bisnetos, mas estas crises tanto podem ser apenas pequenos reajustes dessa máquina capitalista que façam com que dure mais algum tempo como uma crise final em que o capitalismo acaba por implodir. Mais cedo ou mais tarde, uma destas crises há-de ser uma crise final.
Todo o disco avança numa toada pesada, mas lenta. Não há momentos explosivos. Isso é intencional? A ideia inicial foi estritamente musical e foi exactamente essa — alongar o tempo, ver a intensidade e a densidade que isso podia dar à música. Fizemos uma primeira experiência há um ano e tal com o tema que abre o disco, Irmão da solidão. Quando no final do ano passado partimos para o novo disco fomos buscar essa canção dizendo “é o caminho que vamos seguir e vamos explorar diversas hipóteses deste arrastamento”. Só depois de começarem a fluir as primeiras ideias de temas é que apresentei um primeiro esboço de narrativa, pegando no início de Irmão da solidão e já com um final que seria a Hora de matar. Todo o miolo era ainda uma coisa muito abstracta, sem concretização.
Não que seja inédito na música dos Mão Morta, mas o facto de haver uma série de músicas com coros decorre da história, da passagem do individual para o colectivo? É uma ideia mais musical, se bem que no Hora de matar a ideia seja mais do que musical, porque quando a voz diz “também pelo meu relógio são horas de matar” este “também” faz referência ao autor original da frase, que é o António José Fortes — é um verso que ele repete em dois poemas diferentes. Nós fazemos a citação, mas depois deixamos a coisa em aberto. E esse oceano que se abre de possibilidade do que isso possa querer dizer é dado pelos lá-lá-lás, pelo coro. O coro tem essa dimensão colectiva, nomeadamente no Irmão da solidão, mas é sobretudo um apaziguamento. Os temas são de tal maneira densos que havia necessidade de dar alguns pontos de fuga. Estes coros libertam os temas de uma densidade que se tornaria insuportável.
A história começa com o indivíduo num bem-estar que progressivamente vai sendo posto em causa e acaba com o seu sacrifício em nome do bem colectivo. A ideia era que fosse de um extremo ao outro, fechando-se novamente num acto solitário?
A ideia é o que está por trás da revolta. No fundo, estamos aqui, em termos psicológicos, a pensar o que pode levar à revolta. Estamos a criar uma ficção, um percurso, que a possa explicar. Há uma vida confortável, sem grandes angústias, sem grandes problemas existenciais, mas que esta situação poderá levar a que se torne um ser violento. Se a sua existência é satisfeita pelo conforto da sua solidão, o que o pode levar à rua, o que o pode tirar do casulo, do seu espaço, e levá-lo a misturar-se e a partilhar com os outros, a um ponto tal que pode anular tudo e ir à revolta mais extrema — afrontar o inimigo? É este questionamento que a narrativa faz.
Isso é aplicável também ao papel que os Mão Morta têm na vossa vida, no sentido de poder funcionar como garantia de que não se acomodam e mantêm alguma inquietude?
A rotina e o acomodamento são muito normais numa banda ou num indivíduo. Quando estamos confortáveis, a preguiça leva-nos a prolongar esse conforto e a entrar em actos rotineiros porque não nos levantam questões. Sabemos que isso é intrínseco ao ser humano, mas também sabemos que traz o tédio, o desinteresse e esvazia-nos de vida. Tanto enquanto indivíduos quanto enquanto grupo, lutamos contra nós próprios, contra as nossas tendências naturais. Temos de o fazer pela nossa própria sobrevivência. O nosso percurso é feito disso, da procura de não fazermos igual. Mas esta história não é propriamente uma metáfora de nós.