A dança de Faustin à procura de um espaço respirável

No Alkantara, Faustin Linyekula apresenta esta semana Sur les Traces de Dinozord e The Dialogue Series: IV. Moya. Indivíduos em conflito com os lugares que habitam.

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Sur les Traces de Dinozord é um reencontro de amigos separados por um país irrespirável, a República Democrática do Congo AGATHE POUPENEY
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The Dialogue Series: IV. Moya AGATHE POUPENEY

Na República Democrática do Congo, quando um familiar ou amigo não consegue estar presente no funeral de um próximo, o luto para essa pessoa ausente fica congelado. O funeral decorre normalmente e podem passar dias, meses ou anos até que consiga chegar ao local. É então organizada uma nova cerimónia fúnebre para que também essa pessoa possa despedir-se com a devida solenidade. Foi nisto que pensou o coreógrafo e bailarino congolês Faustin Linyekula ao criar a peça Sur les Traces de Dinozord, que se apresenta quarta e quinta-feira na Culturgest, em Lisboa, integrada na programação do Alkantara Festival.

E foi nisto que pensou porque Sur les Traces de Dinozord parte de The Dialogue Series: III. Dinozord, que chamava para o título o bailarino Dinozord mas incluía ainda as participações do próprio Faustin, do cantor Serge Kakudji ou do escritor Antoine Vumilia Muhindo, reflectindo sobre os sonhos que tinham para o Congo depois do fim oficial da guerra no país. Quando Dinozord se estreou em 2006, Muhindo estava encarcerado em Kinshasa, na condição de preso político condenado à morte. “Como eu queria muito que ele estivesse presente na peça, ele escreveu um texto, gravou-o e enviou-nos", conta Linyekula ao PÚBLICO. "Nessa peça original tocávamos a fita com o texto lido por ele.”

Acontece que, passados quase dez anos sobre a sua detenção, Muhindo conseguiu fugir da prisão, exilou-se na Suécia e, em 2012, Sur les Traces de Dinozord foi criada para cumprir o propósito original de juntar todos em palco. Só que a peça já não podia ser a mesma. O Dinozord original (também apresentado no Alkantara, em 2008, naquela que foi a primeira vinda de Linyekula a Lisboafora um requiem para Vumilia, e portanto Sur les Traces… passou a funcionar como a sua possibilidade de se despedir dos Studios Kabako, de Kisangani e do Congo – para onde não pode voltar, sob pena de ser novamente preso ou abatido, tal o embaraço que a sua fuga criou ao governo. A sua fotografia continua afixada em todos os aeroportos, portos e fronteiras terrestres do país: wanted, como no velho faroeste. “Como o Vumilia nunca teve realmente uma oportunidade para se despedir, refizemos a peça. Mas desta vez não somos nós que fazemos o funeral – porque já o fizemos. Agora, fazemo-lo para ele, para estar com ele e para lhe darmos as boas-vindas de volta ao mundo livre”, explica Faustin. 

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Sur les Traces de Dinozord AGATHE POUPENEY

Sur les Traces… não se esgota nessa despedida tardia. Para os restantes bailarinos ou actores em palco os anos também avançaram, e “esta peça é mais do que uma peça”, como lhe chama o coreógrafo. “É um espaço para tentarmos religar-nos connosco, individualmente mas também enquanto grupo.” E esse espaço implica também olharem-se como eram em 2006, jovens criadores, esperançosos na construção de um país que, afinal, não se deu.

Por isso, para Faustin esta é uma peça que comporta também o duro confronto com os sonhos vergastados pela desilusão. Passados dez anos sobre o Dinozord original, acredita, têm os pés fincados “exactamente no mesmo sítio”. “Política, económica e socialmente, ainda estamos no mesmo beco sem saída. Até posso dizer que é pior porque, em 2006, com o fim da guerra, e ao termos as primeiras eleições gerais, havia muita esperança: se questionássemos os nossos líderes, poderíamos desenvolver uma liderança melhor.” Mas, afinal, olhando em volta, Linyekula vê muitos ex-colegas de escola a ascenderem politicamente, a fazerem aquilo que antes criticavam, e os ideais a prescreverem após seis meses nos cargos. Assim como vê manifestações a serem reprimidas com cargas policiais que resultam em mortes e feridos.

“Sinto que nos encontramos encurralados e temos de perceber como viver ali e criar um espaço respirável para nós”, argumenta. “A questão agora não é tanto mudar o sistema, mas criar esse espaço e perceber como podemos criar obras que nos ajudem. Sabemos que, a longo prazo, lutar a toda a hora acabaria por matar-nos. Por isso, estamos a tentar cuidar uns dos outros.” E pensando como pode um projecto artístico tornar-se um “espaço de cuidado”, os seus Studios Kabako estão a dedicar 2016 à criação de um centro de tratamento de águas para a região de Kisangani, a inaugurar no final do ano, altura em que deveriam ser convocadas novas eleições, em virtude do fim do mandato presidencial de Joseph Kabila. Mas, neste momento, o receio é que seja forçada uma alteração constitucional que decrete algo como “o presidente manter-se-á no poder até que haja um novo presidente eleito”.

Um solo para Moya

Ainda no Alkantara, a 4 e 5 Junho, o Artista na Cidade 2016, Faustin Linyekula, estará presente através do solo que concebeu para a bailarina sul-africana Moya Michael. Moya, cujo currículo inclui colaborações com Akram Khan, Sidi Larbi Cherkaoui ou Anne Teresa de Keersmaeker, apresentou-se ao bailarino e coreógrafo congolês depois de ter assistido, em Kinshasa, à sua apresentação de Le Cargo. Na sequência dessa emblemática criação de Linyekula, os dois haveriam de encetar uma série de longas conversas acerca da sua comum condição de “desterrados”. “A Moya vive na Europa há 15 anos, mas tanto ela como eu não somos europeus, não pertencemos a este lugar”, diz. “Continuamos a ser outsiders, ao mesmo tempo que em África não somos percepcionados como locais. Depois começámos a conversar sobre isto e a forma como educamos os nossos filhos neste cenário – ela tem uma filha meio-belga, eu tenho filhos meio-franceses.” E socorre-se das palavras de Jean Genet para dizer que “o espaço mais político que existe pode ser o espaço mais íntimo também”.

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The Dialogue Series: IV. Moya AGATHE POUPENEY

Essa percepção do lugar ocupado no próprio país foi depois expandida pela visita de Faustin à África do Sul na companhia de Moya, percebendo o que significava ser coloured – nem preta nem branca – e que, a partir desse simples facto, se desvendava perante si “um país diferente daquele que conhecia”. Daí resultaram mais conversas que não só estão presentes como são continuadas em The Dialogue Series: IV. Moya, este fim-de-semana no Teatro São Luiz. A dança de Faustin, na verdade, é sempre esse ímpeto de conversa, de partilha de uma história.

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