A felicidade em Porto Covo nas canções tristes das Unthanks

O primeiro fim-de-semana do FMM foi passado, como nos últimos anos, em Porto Covo. E foi tempo de confirmar quão preciosa é a folk inglesa filtrada pelas Unthanks e de revisitar o inesgotável filão da música maliana.

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Concerto da banda The Unthanks Mário Pires / FMM
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Rachel e Becky deram uns passos de clog dance Mário Pires / FMM
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O pianista Adrian McNally Mário Pires / FMM
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Bamba Wassoulou Groove Mário Pires / FMM
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Bamba Wassoulou Groove Mário Pires / FMM

Acabadas de entrar em palco, num passo tímido de quem ainda não consegue encarar de frente o público, Becky e Rachel Unthank fazem um anúncio que soa também a um prévio pedido de desculpas: “temos algumas canções tristes para vocês”. Na última das noites do Festival Músicas do Mundo (FMM) em Porto Covo (a partir de segunda-feira a programação transfere-se para Sines), as irmãs não ignoravam a expectativa de uma numerosa assistência à espera de ser entretida e para quem, naturalmente, música com ritmos mais folgazões é uma garantia mais segura de sucesso.

O FMM sempre se fez destes momentos de risco assumido, de desafio ao seu público, de confronto com situações mais adversas, e raras vezes esse risco correu mal, sendo até responsável por muitos dos concertos mais belos do histórico do festival. No caso das The Unthanks, o jogo de sedução (é sempre disso que se trata) poder-se-ia revelar mais complicado pela sua visita em quinteto, numa formação mais reduzida, e que, pela sua natureza, colocava o foco claramente na matriz folk inglesa, deixando de lado a crescente imiscuição jazzística nas suas canções.

Sabendo bem da importância de ganhar o público a partir dos primeiros momentos, o pianista Adrian McNally apresentou a banda como vinda de Inglaterra, “que pertencerá sempre à Europa”, e Becky Unthank discorreu sobre o tema inaugural, On a monday morning (dos tempos da anterior encarnação Rachel Unthank & the Winterset), explicando ocupar-se de um drama universal: a ingestão de álcool para lá da conta e a dificuldade em sair da cama na manhã seguinte. Talvez em resposta a esta canção em que se lamenta não poder trocar de fígado com alguém durante as primeiras horas do dia, começaram a dançar as garrafas de vinho comunitárias que abastecem os grupos de amigos instalados nas primeiras filas.

Pouco depois, também Rachel e Becky dariam uns passos de clog dance (uma espécie de sapateado do folclore do Northumbria, Norte de Inglaterra), tentando sempre imprimir momentos de pequena agitação na belíssima delicadeza de canções apresentadas em versões descarnadas, com piano, violino, harmónio e guitarra a tentarem o menos possível roubar espaço às harmonias vocais – embora um tema como Lucky Gilchrist arrisque soar improvavelmente à Penguin Café Orchestra transformada em banda folk e o nome da personagem seja cadenciado à moda de Laurie Anderson. Não por acaso, esse seria o primeiro vislumbre da transformação que McNally operou na música das irmãs a partir de Here’s the Tender Coming (2009), deixando de soar quer a uma folk sem saber como ser pop ou em competição com os tiques de modernização da herdeira da família Carthy, Eliza.

Passando depois por parte do reportório de Mount the Air e Diversions Vol. 3 (dedicado à indústria da construção naval, de onde saiu o comovente The romantic tees e a magnífica canção de Elvis Costello Shipbuilding), haveria ainda alusões ao bucolismo patenteado por Nick Drake, um Hymn for Syria de clara inspiração na crise dos refugiados e o assombroso encontro vocal de Rachel e Becky, eclipsando tudo à volta em Magpie. Para final, dois momentos maiores de Here’s the Tender Coming: The testimony of Patience Kershaw e o tema-título, seleccionados para fintar a melancolia predominante. Um concerto difícil de impor, mas encantador de testemunhar.

Três guitarras febris

Em severo contraste com as Unthanks, o encerramento das festas em Porto Covo ficaria por conta da haitiana Wesli Band, música excessiva, afro-tropical, num frenesi constante e uma proposta imbatível de animação popular. As gentes, aquecidas por um espontâneo espectáculo de rua que entreteve entre os dois concertos nocturnos, seguiu alegremente as deixas lançadas por Wesli (cantor e guitarrista extremoso), numa daquelas actuações feitas para o momento, assente num imediatismo de empatia instantânea mas que a memória se encarrega de apagar sem remorsos na primeira ocasião.

Um pouco o mesmo papel assumido na véspera por BNegão & Selectores de Frequência. BNegão, membro dos históricos Planet Hemp, começou por querer provar que James Brown baixou em si, num rapper brasileiro, cuspindo refrães como “pode crer, cupadi, tu é funk até o caroço”. Resultado aos dez minutos: Subtileza – 0, BNegão – 1. Essa mesma relação difícil com a subtileza levá-lo-ia a andar pelo samba-jazz sem a graciosidade de Ed Motta ou a assinar uma curiosa versão de Fita amarela, de Noel Rosa, transformada em subproduto de New Orleans. BNegão meteria ainda ao “barulho” (a palavra foi ponderada) a canção infantil Dança do patinho numa metamorfose de cunho político e, aos poucos, deixou o fato de James Brown para trás e emulou um cantor de hardcore. Resultado final: Subtileza – 0, BNegão – muitos.

Os finais de tarde de sábado e domingo estiveram entregues a duas cantoras africanas com queda para o jazz. Primeiro, a guineense Karyna Gomes, de uma candura vocal que embala cada tema, muitíssimo bem apoiada pela trompete cálida de Jéssica Pina, e que aproveitaria para afirmar em palco que na Guiné Bissau se vai “continuar a lutar para que o sonho de Amílcar Cabral se torne uma realidade”. “Não temos medo”, disse na despedida. No dia seguinte, a cabo-verdiana Jenifer Solidade e o seu pianista Khaly Angel juntar-se-iam ao luxuoso quarteto de Carlos Martins, fundindo jazz com mornas, funanás e até José Afonso (numa versão de Venham mais cinco), imaginando em palco o que é isso de Cabo Verde poder ser terra de jazz.

Referência obrigatória ainda para os malianos Bamba Wassoulou Groove. Se, num primeiro momento, pode cair-se no erro de encontrar no grupo uma versão de segunda linha dos rockeiros Songhoy Blues (banda contagiante que passou pelo FMM em 2015, electrificando a música do país em namoro descarado com o rock ocidental), a verdade é que o poderio do grupo tem personalidade distinta, não persegue miragens que não sejam as suas e as três guitarras febris em elevada rotação criam um imparável efeito de hipnose colectiva – mal se dá, aliás, pelo fundador Bamba Dembélé, percussionista atropelado pelas cordas em roda livre. A música tem vontade própria. E é sempre bom comprovar que, por aqui, impõe-se sem necessidade de grandes artifícios.

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