DECAMERON1353

Boccaccio

Mais do que um documento sobre a vida em Florença nos tempos da peste negra, corria o ano de 1348, Decameron, de Boccaccio (1313-1375), é o livro da ruptura literária com a moral teocrática medieval. Num registo que oscila entre o trágico e o divertido, com bastas alusões ao erótico, esta obra-prima marca o início do realismo humanista — a luta do homem face ao destino sem apelos ao divino. Durante dez dias, sete mulheres e três homens, fechados numa casa no campo, contam histórias para manterem a morte afastada. Decameron é um livro sem moral alguma.J.R.D.

WHY HASN’T EVERYTHING ALREADY DISAPPEARED?2019

Deerhunter

“Há algo de singularmente tóxico no contexto actual, um novo odor químico que nunca senti antes”, dizia o vocalista Bradford Cox. Habitado por fantasmas reais (pessoas a desaparecerem na poeira do tempo) e simbólicos (a pop de Ray Davies, nos Kinks), o álbum de 2019 dos Deerhunter dá som a um lento mas inexorável desabar do mundo. Ainda há tempo para a melancolia mas não há ainda tempo para o futuro — e o presente parece um não lugar. “Walk around and you’ll see what’s fading”, canta Cox em “Death in midsummer”. Estamos em quarentena, não podemos andar por aí. Mas vemos.M.L.

A GRANDE TRIBULAÇÃO 2011

Daelema

Não é que a ideia de uma magna doença global, de caos, anomia, fosse, à data do lançamento de A Grande Tribulação, uma novidade na obra dos Dealema. Ela sempre havia estado patente, desde o disco de estreia homónimo (2003). Longe de ser um dos melhores registos em disco dos portuenses, cristalizou, porém, toda um lastro de negrume e desesperança (começavam os anos da Troika) que Alvorada da Alma, o seu último disco já com sete anos às costas, finalmente inverteria. Oxalá que a nossa alvorada também não demore muito.F.N.

THE LEFTOVERS 2014-2017

Damon Lindelof

Há várias fases e frases do apocalipse e muita ficção tende a fixar-se no que fica e nos que ficam. The Leftovers é um apocalipse espiritual em que as contas se fazem de outra forma: 2% da população esfuma-se repentinamente sem explicação e a vida dos que ficam não é marcada pelas restrições ao movimento, nem pela escassez. É uma vida de luto, é o pasto da melancolia, são muitos cigarros uns atrás dos outros porque, afinal, o que é que a nicotina pode fazer-nos? Matar-nos. O jogo aqui é outro. The Leftovers é uma meditação sobre fé, ontologia e a essência humana. Tom Perotta é o autor do livro que serve de base à série e Damon Lindelof é o autor televisivo que a expandiu em três herméticas temporadas. É televisão dura.J.A.C.

A PENÚLTIMA VERDADE 1964

Philip K. Dick

Publicado em 1964 — no auge da Guerra Fria, portanto —, este pequeno romance do muito prolífico escritor de ficção-científica é a narração orwelliana de como as elites do complexo militar-industrial conspiram no século XXI para manterem o mundo subjugado pelo medo de uma guerra (nuclear, química, biológica) que é já puramente instrumental e encenada. Ou seja, inexistente. O “equilíbrio do terror” em humorosa e negra chave parabólica. O logro é, obviamente, assessorado pela manipulação comunicacional metódica e massiva.M.S.

TICAL 2000: JUDGEMENT DAY 2018

Method Man

Estávamos em 1998. Ali mesmo à porta, o segundo milénio que tantas conspirações apocalípticas gerava, com inspiração nos mais exóticos mitos urbanos, rurais, espaciais e o diabo a quatro. No seu ainda hoje mais célebre disco a solo, Method Man gritava para a tripulação “Fim à vista!” enquanto oferecia uma mão-cheia de tesourinhos: a ironia de uma faixa chamada Perfect World, um skit de Trump (esse mesmo) a dizer a Meth como está em Palm Beach ansiosamente à espera do seu álbum ou, enfim, o dia do julgamento final, cujo início reza assim: “First, there was the collapse of civilization, anarchy, genocide, starvation. Then, when it seemed like shit couldn’t get any more fucked up, we got the Plague, the Living Death (…). Then the rumors started, the last hardcore MC’s were working on a cure that would end the pestilence. Why? I like the death. I like the misery, I like this world!”.F.N.

PANDEMIC 2020

Não há algoritmos que expliquem isto, mas é verdade — a Netflix estreou no fim de Janeiro uma série documental (e não há momento como o presente para admitir que as fronteiras da ficção e da realidade se esbatem) intitulada Pandemic: How to Prevent an Outbreak. Em seis episódios apoiados em ciência, previsão e experiência, conta-nos a história de terror que é o facto de o mundo não estar propriamente preparado para lidar com uma pandemia. “Queríamos informar antes, e não depois, da emergência de outro patogénio perigoso” diz uma das suas autoras, Sheri Fink. Mergulhados em histórias que previram ou convidaram o vírus, esta é a série que não quis fazer uma coisa nem outra. Quis informar e avisar. Tarde demais.J.A.C.

THE WALKING DEAD 2010-EM CURSO

Robert Kirkman e Frank Darabont

É o exemplo mais óbvio: zombies como símbolos de uma pandemia, série muito pop. The Walking Dead é um franchise em plena expansão e isso é significativo — depois dos comics de Robert Kirkland há uma galáxia de séries spin off (a nova estreia-se em Abril em Portugal) e três filmes na calha e isso mostra a prevalência das narrativas pós-apocalípticas transmedia. E fora toda a intelectualização que lhe quiseram colar, o que faz é romancear a ideia de sobrevivência no colapso civilizacional. Nos primeiros capítulos desta década de histórias vemos a nossa realidade actual, açambarcadora de supermercados e farmácias. É um guilty pleasure prosaico, é pornografia de pilhagem, é o sucesso do saque.J.A.C.

RECTIFY 2013-2016

Ray McKinnon

O vírus é social, o sintoma é a desconfiança, a doença é a solidão e o isolamento. Nesta história não há germes nem inimigos microscópicos. Daniel Holden foi preso na adolescência pela violação e assassinato da namorada. Duas décadas de corredor da morte depois, dá-se como provado que não foi ele o atacante e pode regressar à sua cidadezinha muito gótica sulista da Geórgia para 30 episódios de grande intensidade e dissonância empática da Sundance TV que deixam uma ferida em quem os veja. Nos últimos anos a profusão de narrativas sobre colapso social, distopias e fascismos encheram a televisão ao mesmo tempo que o streaming convida ao tempo individual do isolamento a que agora parte da população mundial está obrigada. Rectify escapa ao objecto-compósito que são as mil histórias de zombies pop e populismos da última década porque vai à raiz de tudo — a personagem e o preconceito.J.A.C.

QUARTETO PARA O FIM DOS TEMPOS 1941

Olivier Messiaen

Ao serviço do exército francês durante a II Guerra Mundial, Olivier Messiaen acabou por ser capturado e feito prisioneiro de guerra num campo de concentração polaco. Foi num cenário desafiador da mais ínfima esperança que criou o seu Quarteto para o Fim dos Tempos — para piano, clarinete, violoncelo e violino, em função dos músicos que ali encontrou —, inspirado pelo Anjo do Apocalipse do Livro das Revelações. A estreia desta obra inquietante aconteceu ainda no campo, diante de centenas de prisioneiros e guardas, com a urgência artística a sobrepor-se à fragilidade da ocasião.G.F.

THE WAR PLAYS 1991

Edward Bond

Na segunda das War Plays de Edward Bond, trilogia em que o mais terminal dos dramaturgos visita o day-after do holocausto nuclear, uma comunidade sobrevive à base de infindáveis reservas de comida enlatada até que as mortes começam a suceder-se e um forasteiro é tomado como agente contaminador. Formada entre as bombas da Blitzkrieg e o apocalipse sempre iminente mas nunca consumado da Guerra Fria, a cabeça de Bond (e The Tin Can People é nisso eloquente), o impiedoso observatório de um mundo em que o estado de guerra é a regra — e em que a condição da cidadania é o colaboracionismo.I.N.

A ESTRADA 2006

Cormac MacCarthy

Um dos romances mais poderosos do norte-americano decorre numa paisagem pós-apocalíptica e acompanha a trajectória de sobrevivência de um pai e do seu filho menor. São dois solitários num mundo habitado pela selvajaria em que a medida da riqueza é uma lata de comida ou um par de sapatos para poder caminhar. Neste território ruína, qualquer ideia de moral ou ética é subserviente ao mínimo instinto de preservação pessoal. É nesse meio que estas duas pessoas existem, enfrentando os seus medos individuais e pondo à prova uma relação primordial. É um exercício literário notável, inclemente a incendiar todos os nervos humanos até à náusea.I.L.

DEAD SET 2008

Charlie Brooker

Antes de Black Mirror, o argumentista inglês Charlie Brooker criou a mini-série Dead Set, numa versão um pouco mais sangrenta do reality show Big Brother. Começando por explorar os bastidores do programa, Brooker desencadeia o caos no exterior do estúdio sob a forma de uma praga zombie que toma conta das cidades inglesas. E, pelo meio de uma abordagem mordaz à vacuidade da cultura popular televisiva de então (como se finalmente lhe injectasse verdade e interesse), o auto-isolamento voluntário transforma-se em auto-isolamento de sobrevivência.G.F.

UNTRUE 2007

Burial

O segundo álbum do misterioso músico e produtor britânico é uma obra de silhuetas evocando cidades adormecidas povoadas por seres solitários, tacteando na escuridão. Há memórias, imagens, projecções do ouvinte. Cadências rítmicas electrónicas que se desenvolvem vagarosamente e vozes que se diluem por entre camadas de som vindas de paragens longínquas. São esboços de canções, mas entoadas por quem necessita de auxílio e já não tem voz. São canções, mas rodeadas de abstracção. São indícios, fantasmas que se agitam ao som de música remota, distorcida no contexto de um sonho.V.B.

DIÁRIO DA PESTE DE LONDRES 1722

Daniel Defoe

Daniel Defoe (1660-1731) relata o quotidiano em Londres durante a peste bubónica, em 1665. A composição deste texto — parte ficção, parte pesquisa, em modo jornalístico — forma uma narrativa detalhada e brutalmente verídica. Os rumores acerca da doença começaram em 1664, com notícias sobre casos na Holanda. A disseminação da doença foi imputada aos mercadores que vinham de Itália e do Levante (Médio Oriente) e aos navios oriundos da Turquia, Chipre e Creta. O autor não deixa de alertar para as consequências do medo — consulta de astrólogos e videntes, actos de desespero e até de suicídio — mas menciona, também, a compaixão e a generosidade, por entre o caos, os saques e as sublevações.H.V.

THE DESINTEGRATION LOOPS 2002

William Basinski

O som do mundo a ruir. Uma obra descomunal: quase seis horas de música ambiental, numa elegia com o 11 de Setembro de Nova Iorque em fundo, mas que representa tempos de incerteza, em qualquer contexto, tempo e espaço. Música quase funerária, com qualquer coisa de ameaçador mas também iluminada, como se um mundo estivesse a desaparecer e outro a emergir sem que se percebesse qual. Música obsessivamente repetitiva, circular, originando uma solenidade que dá forma a uma emoção transcendente e esperançosa.V.B.

NO FIM ERA O FRIO 2019

Mão Morta

“O mundo não é mais um lugar seguro” é a primeira frase com que Adolfo Luxúria Canibal nos esbofeteia ao entrarmos em No Fim Era o Frio. Depois de criar obras conceptuais em torno da Internacional Situacionista ou de autores como J.G.Ballard ou Lautréamont, a banda de Braga explora uma claustrofóbica distopia subitamente actual. Devido a catástrofes naturais, os humanos refugiam-se em bunkers montanhosos, abrigando-se de gases tóxicos com recurso a “fatos herméticos que lhes impedem o toque, o beijo e o amor”. Esperam a salvação ou uma morte rápida e indolor. G.F.

OS PARASITAS DA MORTE / SHIVERS/THEY CAME FROM WITHIN 1975

David Cronenberg

Meados dos anos 70 e o pacífico Canadá de Cronenberg parece ter ficado intocado pelos delírios da “contracultura” americana da década anterior. Cronenberg, ainda em low budget, projecta a sua vingança: um condomínio de luxo nos arredores de Montreal a fazer de huis clos, e um parasita que converte à libertinagem, numa combinação de doença venérea com afrodisíaco. A “sociedade” colapsa numa orgia permanente e é o fim do mundo mas toda a gente se sente bem. Vingança bem sucedida: até no parlamento canadiano se discutiu Os Parasitas da Morte, título em português para um filme que teve vários títulos originais.L.M.O.

SAFE / SEGURO 1995

Todd Haynes

É o filme que mais rapidamente fará soar a campanhia dos cinéfilos nos dias que correm. Filme duro pela incerteza de nunca se saber se se está perante um drama, um filme de terror ou uma paródia, tem em Carol (Juliane Moore) uma anódina dona de casa a quem os “detritos” da sociedade de consumo começam a “causar espécie”. Se Carol está doente ou se tudo não passa de uma paranóia, se o seu problema é interior ou se tolos são os outros que ainda não se aperceberam da environmental disease que anda no ar, é questão a que Haynes nunca dá resposta.F.N.

PANIC IN THE STREETS / PÂNICO NAS RUAS 1950

Elia Kazan

Nas zonas menos nobres de Nova Orleães — as áreas portuárias, os bairros de imigrantes, os restaurantes e bares de estivadores e operários — acontece uma caça ao homem, contra o relógio: um detective (Richard Widmark) tem 48 horas para encontrar um assassino (Jack Palance, no papel de estreia) que se suspeita estar infectado com uma peste pulmonar, depois de o virus ter sido encontrado na autópsia dum homem que ele matou. Sempre na iminência de uma epidemia descontrolada, Kazan conduz a história num realismo social intenso que acresce a um dado bastante relevante: é possivelmente a primeira tentativa realista (sem “metáfora”) de descrever uma situação epidémica.L.M.O.

A NOITE DOS MORTOS VIVOS / NIGHT OF THE LIVING DEAD 1968

George A. Romero

Os zombies, já o sabemos, acabam com o mundo à dentada contagiosa. Mas só o fizeram a partir da Noite dos Mortos-Vivos de George Romero. Por trás da aparente fachada de filme de terror amador para drive-ins, Romero pregava a necessidade da união da comunidade para resistir e combater o medo, numa parábola desconfortável sobre uma América dividida, isolada, assombrada (que não mudou assim tanto desde 1968). A mitologia zombie começou aqui, mas até hoje não conseguiu igualar a brutal conclusão do filme de Romero.J.M.

DECEIT 1981

This Heat

O estúdio onde gravavam era uma antiga câmara refrigeradora, um quase bunker, portanto, o que nos diz alguma coisa sobre claustrofobia. O tempo era o da viragem para os anos 1980 e os This Heat canalizavam um receio palpável, o do apocalipse inevitável caso alguém, de um ou do outro lado da Cortina de Ferro, carregasse no botão errado. Deceit, editado em 1981 e clássico do pós-punk britânico, é o som de uma turbulência angustiada, de uma fúria que se liberta perante a incerteza: o fim era certo, mas o que matava era senti-lo cada vez mais próximo, sem nunca chegar.M.L.

SILVERLAKE LIFE, THE VIEW FROM HERE 1993

Tom Joslin e Peter Friedman

Foi o cineasta Alain Cavalier que disse: “os homossexuais são os pais do cinema na primeira pessoa. Por causa da urgência que sacode essas pessoas, devido à sida”. Estava a referir-se, com mais emoção do que rigor, a Silverlake Life. Percebe-se: é uma experiência limite. Talvez não possa ser contada com uma sinopse. Tendo sido diagnosticada a sida a Tom Joslin e ao companheiro Mark Massi, o primeiro começou a filmar a vida conjugal. Joslin morreu. Um amigo, Peter Friedman, continuou o projecto. Mark morreria também. É um história de amor e de transmissão. Sobretudo obriga a olhar brutalmente (e não pode isso coexistir com pudor?) um vírus em acção. Quando foi visto pela primeira vez nos EUA, em 1993, 228 mil pessoas já tinham morrido e a sociedade continuava a olhar para o lado. Muitas coisas foram vistas assim pela primeira vez. A conjugalidade homossexual, por exemplo. Este é um exemplar único do que se chamou “cinema seropositivo”. Não é um filme sobre... é um filme “ocupado”. E daí brotou, para o bem e para o mal, toda a deriva de exposição íntima com que construímos hoje a nossa narrativa.V.C.

O ANJO EXTERMINADOR / EL ANGEL EXTERMINADOR 1962

Luis Buñuel

“Fiquem em casa”, dizem-nos. Com ou sem quarentena, ninguém no filme de Buñuel consegue sair desta intransponível sala, fortaleza de pulsões e desejos inconfessáveis. À medida que a sensação de entrapment se agudiza, com a tipicamente buñueliana sensação de uma estranheza seca — como se nada de extraordinário houvesse no facto de um grupo de pessoas não conseguir transpor uma sala —, as máscaras vão, aos poucos, caindo. Oxalá que, no nosso caso, fiquemos pela compra de máscaras de protecção e outras máscaras não se vejam na necessidade de cair”.F.N.

THE THING - VEIO DO OUTRO MUNDO 1982

John Carpenter

Refazendo um clássico da “sci-fi” dos anos 50 para a era Reagan, Carpenter tocava no coração do medo: a invisibilidade do alienígena/vírus/parasita que toma todas as formas possíveis e é, portanto, inidentificável (é “a coisa”). Como sempre em Carpenter, 100% político sem nunca explicitar nada: a desconfiança de todos sobre todos conduz ao isolamento, metáfora do individualismo “selvagem” no ar do tempo, e ficamos a ver o “tecido social” a desfazer-se. No fim, a moral carpenteriana, ainda útil em tempos de pânico: “esperemos aqui um pouco, a ver o que acontece”.L.M.O.

HISTÓRIA DA GUERRA DO PELOPONESO Século V a.C.

Tucídides

A epidemia que assolou Atenas no termo do primeiro ano da guerra travada com Esparta, no terço final do século V a. C., não é o assunto central da obra monumental de Tucídides. Porém, as poucas páginas que o historiador grego lhe dedica são uma das primeiras abordagens racionalmente estruturadas à etiologia de uma doença infecto-contagiosa. E são também um impressionante relato vívido dos sintomas e efeitos físicos da peste e das suas consequências psicológicas e morais, sociais e políticas. Conta que era tal a mortandade que as pessoas, não sabendo o que esperar, se tornaram indiferentes a todas as leis, sagradas ou profanas, assim se instalando a anarquia na cidade.M.S.

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA 1995

José Saramago

Deixar subitamente de ver é uma das experiências mais aterradoras. Assim começa Ensaio sobre a Cegueira. Esse “primeiro cego” será o agente contaminador que desencadeia uma epidemia que vai afectar toda a população. Apesar das acções do governo que incluem quarentena para os infectados, as consequências não se fazem esperar e os sinais de regresso à barbárie alastram, com o seu cortejo de horrores e violência. Saramago constrói uma metáfora da essência do ser humano quando confrontado com o pânico, oriundo dessa “falta de visão” — indiferença e insensibilidade perante a dor do “outro”.H.V.

À BEIRA DO FIM / SOYLENT GREEN 1973

Richard Fleischer

Em 2022, o Homem esgotou os recursos naturais. A população em excesso sobrevive à base de alimentos sintéticos — o célebre Soylent Verde — e um simples bife pode ser motivo de assassínio. Por uma vez, o título português fazia justiça ao filme: o retrato de um mundo “à beira do fim”, a dar as últimas mas negando a realidade e literalmente canibalizando-se a si mesmo. Num período fértil para a ficção científica distópica como foram os anos 1970, a angústia conspiratorial de À Beira do Fim continua imbatível.J.M.

A PESTE 1947

Albert Camus

Orão, na costa argelina, era uma cidade vulgar. Os seus cidadãos interessavam-se pelo comércio e pelos negócios — apenas para enriquecerem. Os dias passavam sem dificuldade desde que se tivessem criado hábitos, e não se conhecia a desordem. Mas um dia começaram a aparecer milhares de ratos mortos. A cidade foi fechada e os cidadãos confinados para que a peste fosse contida. Durante a quarentena torna-se num lugar quase irrespirável. Por entre a loucura, a ganância e a desordem social, surge também a compaixão desmedida. A epidemia deixou “vestígios, pelo menos nos corações”. A Peste, de Albert Camus, é um dos grandes romances europeus do século XX.J.R.D.

INVASION OF THE BODY SNATCHERS - A TERRA EM PERIGO 1956

Don Siegel

Os anos 50 foram na América os da invenção da cultura do medo — da guerra nuclear, do comunismo, medo dos ovnis. Esta é uma das muitas alegorias (e a mais emblemáticas) que o período produziu. Não há virus mas há contágio, apropriação dos corpos, transformação psicológica — as pessoas mutam-se em seres amorfos, sem vontade própria, numa representação das fantasias americanas sobre a “vida socialista” na URSS. O genial do filme de Don Siegel é dar esse medo com a distância certa para fazer ao mesmo tempo a sua crítica.L.M.O.

ESTAÇÃO ONZE 2014

Emily St. John Mandel

Um actor morre de ataque cardíaco enquanto representa Rei Lear. Essa noite marca o início uma pandemia de gripe que mata parte da população mundial. Vinte anos depois, um grupo de sobreviventes, entre eles uma jovem actriz que partilhou o palco com o actor, percorre um território sem fronteiras definidas entre o que antes foram o Canadá e os EUA. Representam Shakespeare em troca de comida e têm um lema: sobreviver não é suficiente. Ao chegar a uma cidade, cada um luta de forma mais intensa com a memória do que viveu e perdeu quando o mundo se transformou. É essa a narrativa deste romance onde a arte desafia a aparentemente simples ideia de vida.I.L.