O actual El Niño apareceu há cinco mil anos
Os cientistas andam a interrogar-se sobre quando apareceu o El Niño, um fenómeno caracterizado por correntes quentes no Oceano Pacífico, que atingem as costas do Equador, do Peru e do Norte do Chile. Ao que conclui um estudo publicado hoje na revista "Science", o El Niño - que acaba por afectar as condições meteorológicas de toda a Terra, levando a chuva ou a seca aonde não são usuais - tornou-se mais frequente há cinco mil anos, na sequência de alterações climáticas naturais.
Não é a primeira vez que um estudo aponta esta idade ao El Niño, pois têm-se reunido várias provas, por exemplo, através de pólenes antigos, para o aparecimento do fenómeno há cinco mil anos. Desta vez, a novidade é que, além de corroborar os estudos anteriores, os cientistas fazem-no através dos otólitos (minúsculas peças ósseas existentes nos ouvidos internos) de uma espécie de peixe-gato, a "Galeichthys peruvianus", que não abandonava as costas do Peru.
Os otólitos, feitos de carbonato de cálcio e da proteína otolina, existem no ouvido interno de todos os peixes ósseos. Os peixes cartilagíneos, como os tubarões, não os têm, mas todos os mamíferos, incluindo os seres humanos, possuem otólitos, embora diferentes. "Nos peixes, a função dos otólitos é dar a noção de equilíbrio, manter a estabilidade na água e a orientação", explica ao PÚBLICO o biólogo Pedro Ré, do Laboratório Marítimo da Guia, perto de Cascais.
Só que os otólitos têm uma característica muito apreciada pelos cientistas: alternadamente, crescem em anéis opacos e translúcidos (que correspondem a um crescimento anual) e em anéis claros e escuros (um crescimento diário). Com os otólitos na mão, os cientistas podem determinar a idade dos peixes e das larvas, as suas taxas de crescimento ou, até, se andaram em águas mais quentes ou mais frias.
"Os otólitos são uma espécie de 'caixa negra' dos aviões. Podemos saber se aconteceu qualquer coisa ao peixe se soubermos ler os otólitos", diz Pedro Ré. "Em fósseis de peixes, podem determinar-se as variações climáticas."
Lendo os otólitos de peixes-gato, a equipa de Fred Andrus, da Universidade da Geórgia, nos EUA, concluiu que a temperatura das águas da costa peruana mudou há cinco mil anos. Para isso, os cientistas estudaram os otólitos de peixes-gato encontrados em dois locais arqueológicos no Peru, em Ostra e Siches, e de peixes-gato actuais, apanhados antes e depois do último grande El Niño, em 1997-98. O que procuraram foi a relação de isótopos (formas) de oxigénio em cada anel dos otólitos.
"Os nossos dados sugerem que o El Niño, como o conhecemos hoje, só se tornou frequente nos últimos cinco mil anos", diz Fred Andrus ao PÚBLICO. "É mais uma prova de que as alterações climáticas são a norma e que a estabilidade climática é a excepção na história da Terra, mesmo em tempos relativamente recentes. Dado o enorme impacto global do El Niño, é importante perceber que o clima é um sistema que varia naturalmente. E que, há apenas seis mil anos, o El Niño era menos frequente", acrescentou Andrus.
Assim, há mais de cinco mil anos, a água na costa peruana era mais quente 3 a 4 graus Celsius do que hoje. Não ocorria, assim, o fenómeno do afloramento costeiro, em que as águas mais profundas e frias - e ricas em nutrientes para os peixes - não subiam até à superfície do mar. Mas, com o El Niño (que é um aquecimento do Pacífico a intervalos irregulares) passou a haver essa alternância de águas mais quentes e mais frias. "Se as águas eram mais quentes, é provável que o El Niño não estivesse activo há cinco mil anos", diz Pedro Ré.
O afloramento costeiro teve importantes consequências para as comunidades humanas, pois torna os litorais mais produtivos em peixe - a que se segue uma quebra durante o El Niño. "À medida que começaram as condições modernas do El Niño, também aumentou o afloramento costeiro, que trouxe riqueza de recursos marinhos", explica Fred Andrus. "Esta mudança afectou a actividade humana de forma surpreendente. Hoje, o Peru é uma das áreas de pesca mais ricas do mundo."
Todos os anos, pelo Natal, as águas ao largo da América do Sul ficam mais quentes. Mas, de vez em quando, a intervalos de dois a sete anos, o fenómeno é mais intenso, trazendo para a costa águas 5 a 6 graus Celsius mais quentes do que habitualmente.