O Coração Ainda Bate. A caixa de primeiros socorros

 Inês Meneses escreve sobre sobre a difícil arte de envelhecer.

Estava acirrada a mulher por perceber que tinha envelhecido. Era este o pensamento que eu tinha na cabeça para começar a escrever e, de repente, percebi que talvez nunca tenha usado o verbo acirrar. Um verbo que pertencia à minha mãe. Há palavras que nos devolvem de imediato os outros. Uma riqueza patrimonial, felizmente não colectável. Mas deixem-me ir de volta ao verbo que contornamos, tentamos fintar, mascaramos de muitas maneiras.

Envelhecer é tramado, não pelas marcas visíveis (não para mim) mas por percebermos que o tempo afinal é finito. Aquele exercício terno de coleccionarmos as primeiras madeixas do bebé, os primeiros sinais de vida, devia ser válido para o início da idade madura: o primeiro cabelo grisalho, a fotografia da primeira ruga, a vaga de calor que está só dentro de nós. Devíamos receber o envelhecimento, assinalando-o, mas sem o amaldiçoar. Aceitá-lo é o princípio de uma vida melhor.

Agora volto ao verbo pelo qual comecei a crónica de hoje: acirrar. No filme “A Substância”, pelo qual Demi Moore já ganhou o Globo de Ouro, a personagem a que deu mesmo corpo, Elisabeth, fica acirrada quando percebe que se tornou descartável. É como se fossem os outros a decidir que estamos velhos, porque dentro de nós, a partir do nosso interior, nada vemos ou sentimos. Nem com as insinuantes rugas que espreitam na pele. Dentro de nós somos os mesmos. O ânimo de viver pode nunca conhecer uma quebra. Sou agora muito mais feliz do que fui em criança ou adolescente. As marcas do tempo só me lembram de que estou viva.

Elisabeth, como muitas mulheres e homens, mesmo sabendo que a sociedade teima em ser mais castigadora com as mulheres, sente-se destronada e vai iniciar uma corrida desenfreada contra o tempo, desafiando a sensatez. Confirma-se aqui que a sensatez não é relativa ou subjectiva.

Muitos de nós vão rever-se em Elisabeth, mesmo que o filme seja um exercício levado ao extremo, com um final questionável. Mas o cinema também é esse lugar onde nem sempre a nossa opinião interessa, porque a razão de fazer cinema está na cabeça de quem o pensa e só depois na do espectador. O final é irrelevante neste caso. Elisabeth, até determinada altura, é um de nós.

Uma mulher acirrada, acicatada pelo confronto de alguém que lhe lembra que o tempo dela já passou. Esse talvez seja o dedo na maior ferida de todas. O nosso tempo não passa. A não ser quando morrermos e, até aí, a memória tende a sobreviver-nos. A grande ferida é o outro, é o olhar condenatório ou a falta desse olhar. Quando deixamos de ser notados, quando já não somos passíveis de interesse ou desejo. É isso que também está nesta balança da idade. A falta de interesse do outro por nós. E isso vê-se nos nossos velhos ao abandono.

Dentro de nós continuamos a ser os mesmos.

Ontem atravessei a passadeira a correr e um amigo que me aguardava disse: “parecias uma miúda a correr”. O meu corpo tem peso, mas era a minha cabeça que ia contente ao encontro dele. São sempre os outros com esse poder da condenação ou da alegria suprema. Penso que cada um de nós tem de começar a fazer o exercício da auto-suficiência. Eu é que vou decidir quando é que estou velha, independentemente de os outros mo lembrarem ou teimarem em não reparar em mim, em nós, na rua.

Ainda não fiz, só mentalmente, a caixa que colecciona as primeiras memórias do meu envelhecimento (até lhe posso chamar a caixa de primeiros socorros), mas todos os dias me vejo ao espelho e continuo firme no ânimo de viver.

A juventude é um lugar que habitámos, não necessariamente feliz porque a pele ainda era lisa. É na idade adulta e avançada que temos de convocar a alegria. Não vão os outros faltarem-nos.

O coração ainda bate.

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