Biblioteca Municipal Almeida Faria: “Queremos que cá estejam”

Em Montemor-o-Novo existe o Centro Interpretativo Levantado do Chão, um espaço que integra o projeto de roteiro literário, baseado na obra de José Saramago e que abrange três concelhos.

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"Aliciantes não faltam na Biblioteca Municipal Almeida Faria, em Montemor-o-Novo" João da Silva
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Conheci o Santiago, 10 anos, na sala infantil da Biblioteca Municipal Almeida Faria, em Montemor-o-Novo. O meu novo e jovem amigo não tem papas na língua.

— Vens muitas vezes à biblioteca?

— Sim, moro aqui perto. Costumo vir para ler, jogar, brincar ou só para estar aqui.

— Gostas de livros? Queres ser escritor ou algo assim?

— Gosto de livros, mas não quero ser escritor. Quero ser dentista.

— A sério, queres mesmo ser dentista?

— Sim, quero.

— Porquê?

— Não sei bem. Eu acho que é fixe estar ali a ver os dentes das pessoas.

— Olha, nunca tinha conhecido nenhuma criança que quisesse ser dentista. E o que é que estás a ler? É sobre um dentista?

— Não! É o Puto Detetive 1 – As Aventuras de Rory Branagan: comemos mauzões ao pequeno-almoço. É muito divertido!

— Está bem, está bem, o importante é que gostes do que lês.

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Interior da Biblioteca de Montemor-o-Novo João da Silva

O Santiago pertence à faixa etária que mais frequenta a Biblioteca Municipal Almeida Faria, como explica Liliana Pincante, coordenadora da biblioteca. "As crianças, acompanhadas por um adulto, constituem o nosso principal público, quer para frequentar atividades, quer para requisitar livros. O público adulto vem sobretudo à biblioteca para requisitar livros ou para usar, pontualmente, o ‘Espaço informática’, mas com a pandemia fomos perdendo o público sénior. A biblioteca realizou durante alguns anos o projeto Bibliotec@Net, para iniciar os adultos com mais de 50 anos nas tecnologias, o que nos trouxe leitores, sendo que muitos dos participantes não tinham esse hábito, e utilizadores da biblioteca, que vinham, por exemplo, ler o jornal. Havia quem, até então, desconhecesse este nosso serviço. Contudo, com a pandemia voltaram a perder esses hábitos e poucos voltaram. Estamos, atualmente, com uma maior afluência de jovens, que estão de regresso à biblioteca para se reunirem, fazerem trabalhos de grupo, realizarem pesquisa ou estudar. Mas o ‘Espaço Jovem’ é algo que necessitamos de requalificar, pois temos consciência de que esta biblioteca não atrai os jovens para que simplesmente possam estar no espaço e usufruir dele. E nós queremos que cá estejam."

Do projeto Bibliotec@Net, resultou um livro de poesia da autoria de José da Luz, que assim concretizou um sonho antigo. "É um amigo da casa, que fala sempre em rima. Primeiro, aprendeu a utilizar o Facebook, onde criou uma página com os seus poemas. Depois, com a ajuda da equipa da biblioteca, conseguiu editar o seu primeiro livro de poesia. Foi um momento muito emocionante para todos os que aqui trabalham, porque assistimos à concretização de um sonho e à alegria que isso trouxe à vida do senhor José. Até temos na nossa biblioteca um quadro com uma quadra que ele nos dedica."

Ei-la:

"Nesta casa de cultura, / Onde o ensino é prioridade / Obrigado, Almeida Faria / Escritor da nossa cidade."

Alguns exemplos das atividades sociais que promovem o livro e a leitura, especialmente para famílias: "Quinzenalmente, às sextas-feiras, temos as ‘Histórias na Biblioteca’, que trazem até nós as crianças, os pais e os avós. Depois, realizamos diversas noites temáticas, como, por exemplo, no Halloween, e aí temos sempre casa cheia: ‘A Noite de Aventura na Biblioteca’, em que 20 crianças dormem no meio dos livros, ou ‘A Noite Pais e Filhos’, em que os participantes são desafiados a descobrir a biblioteca em família. Através do lúdico, conseguimos inserir os livros e a leitura", esclarece Liliana Pincante, assumidamente uma adepta das bibliotecas como espaços de silêncio. "Em breve, vamos colocar uma porta de vidro que irá separar a sala de leitura de adultos da receção, de forma a criar uma área de silêncio."

No entanto, isso não quer dizer que Liliana não alinhe na ideia tão atual de que as bibliotecas são espaços polivalentes: "Sentimos que os utilizadores estão mais exigentes. Podemos ter uma coleção atual e rica, mas o espaço da biblioteca já não vive só do empréstimo dos livros. E é por sentirmos essa mudança que a biblioteca tem de ser um espaço social, de estar e bem-estar, de interação. Mas também onde há silêncio."

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Pormenor da biblioteca João da Silva

A sugestão para a Road Trip Literária recaiu em Outros Contos de Vila Nova, de João Luís Nabo.

O autor apresenta assim a obra: "Quem escreve por vício, quando dá por isso abre uma gaveta e saem de lá história que foram ficando esquecidas. Depois de relidas e trabalhadas, escolhem-se algumas e escrevem-se outras de raiz para fazer a vontade a meia dúzia de leitores que querem continuar a viver o Alentejo e a ver o Alentejo como um espaço resistente aos novos tempos, estes também presentes nestas breves narrativas. E desculpem, outra vez, a ousadia."

Os 12 contos que compõem o livro levam-nos numa viagem por diversos contextos e histórias, apresentando uma grande diversidade de personagens. O resultado é um convite à reflexão contínua sobre a existência, as dúvidas que nos assaltam diariamente, as emoções, a idade, o silêncio e as sombras.

Selecionei o texto "Águas Mil". Eis um excerto:

"Um rio é como um homem. Ou como uma mulher. Tem sempre um passado e um futuro. Do passado conhece tudo, embora nem sempre tudo caiba no seu entendimento: o mergulhar da corrente em pegos fundos de água límpida onde, em Abril, se lê a cor do tempo que vai fazer; os areais desertos que nascem entre as poças de água parada em Agostos ainda mais lentos, com cheiro a peixe morto e as raízes dos choupos e dos chorões descarnadas, retorcidas, engalfinhadas nas pedras à procura de uma gota de água; as enchentes, que entram por Dezembro, em turbilhões, de margens transbordantes, com o sol a bater de chapa nos remoinhos lamacentos, um sol baixo, furando os dias frios e chuvosos, jogando com aquele enleio de águas em movimento; as reviravoltas dos rendilhados de espuma que explodem nas rochas e saltam sem tino, dobrando impiedosamente os juncos que se abraçam contristados aos ramos partidos, às folhas e, quantas vezes, às ovelhas que, estupidamente desprevenidas, se confundem para sempre com o rio, chegando à ponte, mesmo à entrada de Vila Nova, já inchadas como balões. É assim todos os Invernos. E os pastores nunca aprendem. Ou porque não querem, ou porque acreditam que neste ano a enxurrada não virá com tanta força. Do futuro nada sabe."

Durante a minha visita, tive oportunidade de conhecer, ainda antes da abertura ao público, o Centro Interpretativo Levantado do Chão, um espaço que integra o projeto Roteiro Literário Levantado do Chão, baseado na obra de José Saramago. O roteiro abarca três concelhos — Lisboa, Montemor-o-Novo e Évora — e visita 27 pontos de interesse literário.

Nuno Cacilhas, coordenador do projeto, especifica: "O que propomos ao viajante é uma experiência entre a história local e a ficção de José Saramago, e é isso que vai enriquecer muito quem já conhece a obra. Quem não a conhece tem a oportunidade de descobrir o território e, depois, poderá entrar no universo de José Saramago através da leitura do Levantado do Chão. Esta obra é essencial no percurso de José Saramago, assinalando uma nova fase do escritor, cujas obras até então não tinham grande aceitação. Foi com Levantado do Chão que Saramago definiu uma estética que se viu depois nas restantes obras.

"Tivemos a sorte de José Saramago estar em 1977 no Concelho de Montemor a recolher testemunhos para escrever essa história. E foi a partir desse trabalho de Saramago que desenhámos o roteiro. Falámos com as pessoas para tentar perceber quem tinha dado testemunhos ao escritor, de forma a conseguir o contexto da obra, e juntámos várias áreas da ciência, da história e da literatura ao conhecimento popular para proporcionar aos viajantes uma experiência ainda mais próxima do que é a obra Levantado do Chão."

Aliciantes não faltam na Biblioteca Municipal Almeida Faria, em Montemor-o-Novo. Fica o convite para que a visitem e permaneçam…


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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