O que preciso saber se alguém fizer queixa da minha família à CPCJ

“Na dúvida e à cautela, devemos comunicar sempre”, declara Maria João Fernandes, vice-presidente da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens.

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Há pais que autorizam a intervenção porque acreditam que os filhos terão a ganhar com a mesma Miguel Manso
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Qualquer pessoa pode ser alvo de uma queixa anónima a uma Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) porque um vizinho não gosta de ouvir o seu bebé chorar. Ou alguém decidiu que uma criança está em perigo porque os pais falam dela nas redes sociais ou discordam da hora a que a deitam. O alarme criado em redor da notícia do aumento de 10% no número de denúncias de crianças em perigo, que em 2023 somaram 53 mil — sendo que 5600 de forma anónima —, torna importante fazer um ponto da situação. O PÚBLICO pediu a Maria João Fernandes, vice-presidente da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens (CNPDPCJ), para nos guiar pelas etapas que se sucedem desde a queixa ao arquivamento ou, pelo contrário, à intervenção.

Escrutinar a comunicação

Maria João Fernandes não gosta do termo “denúncia”, preferindo falar de “comunicação”, não só pela conotação negativa da primeira palavra, como, sobretudo, porque não corresponde à realidade, já que aquilo que se faz realmente é “comunicar à CPCJ a existência de uma situação que pode consubstanciar perigo para uma criança”, diz.

E, nesse sentido, considera que é importante o facto de continuarem a crescer, de ano para ano, essas comunicações, encarando-as como um sinal positivo de que a sociedade começa a acordar para a responsabilidade de proteger os mais pequenos. Aliás, defende com convicção, que, muito mais assustador do que a hipótese de um falso alerta, é “a possibilidade de que uma criança esteja em perigo e ninguém o comunique por medo de incomodar os adultos”, o que, infelizmente, continua a acontecer. Insiste: “Na dúvida e à cautela, devemos comunicar sempre.”

Mas se a ideia da “denúncia” incomoda, é provável que, num primeiro momento, se reaja ainda com mais anticorpos à ideia de que há quem não dê a cara pela suspeita que levanta. Problema nosso, já que a participação anónima é uma opção prevista na lei, exactamente para impedir que o receio de sofrer represálias se sobreponha ao valor mais alto que é defender os direitos dos mais frágeis, nomeadamente quando quem está “por dentro” se encontra numa situação muito difícil, como pode acontecer com uma mãe que possa ser vítima de violência doméstica, de uma avó que não se pode dar ao luxo de falar abertamente ou mesmo da própria criança. Em termos práticos, isto significa que todas as comunicações anónimas serão escrutinadas com o mesmo rigor do que se viessem das autoridades, da escola ou de qualquer outra fonte.

Mas Maria João Fernandes é clara quando assegura que “tudo o que não tenha substância e não se enquadre no que a lei tipifica como situação de perigo será liminarmente arquivado”.

Consentimento dos pais e da criança

Cada comunicação que chega a uma CPCJ é atribuída a um “gestor de processo”, que tem como primeira missão reunir com os pais para lhes comunicar a situação de perigo em causa e solicitar o consentimento para avançar para a fase de diagnóstico.

Sem consentimento, o papel da comissão termina ali, cabendo-lhe então passar o caso para o Ministério Público. Obviamente que, neste momento, a primeira pergunta é: quem é que comunicou a situação e, se não houver pedido de anonimato, identifica-se caso tenha sido a escola ou uma força de segurança, etc.. Se foi anónimo, também se indica.

A maioria dos pais dá consentimento para avançar. Alguns porque a alternativa é judicial, mas a maioria porque entende que o filho só tem a ganhar com uma ajuda e um apoio que, sozinhos, não são capazes de dar. Contudo, há 24% que não consentem ou retiram o seu consentimento numa outra fase do processo. Mas o que talvez muita gente não saiba é que, caso a criança tenha 12 ou mais anos, também ela terá de concordar. Opondo-se, não poderá a CPCJ intervir.

Diagnóstico até seis meses

O diagnóstico deve ser feito o mais rapidamente possível, porque o tempo das crianças não é o dos adultos. Implica escutar os pais e a criança, como é seu direito, a não ser que seja muito pequenina, nesse caso optar-se-á pela observação, diligenciando para concluir se a situação de perigo realmente se confirma.

É aqui que o cidadão comum pode colocar a questão — e se não confio nos critérios de quem avalia, e se a noção de “perigo” do técnico diverge da minha, num tempo em profunda mudança no que se considera “aceitável” no exercício da parentalidade?

Maria João Fernandes admite que é impossível eliminar toda a subjectividade do olhar dos técnicos, mas lembra que estamos a falar de profissionais formados na área da infância, que se guiam por parâmetros e critérios preestabelecidos, o que torna a observação mais uniforme e linear. Recorda também que a decisão final e a medida de apoio proposta para aquela família resulta da deliberação da comissão restrita, composta por pessoas com muita experiência e que funciona como uma equipa multidisciplinar. Além disso, e mais uma vez, os pais podem decidir retirar o seu consentimento.

Arquivamento ou Acordo

Se se verificar que a criança não está em perigo, o processo acaba aqui, mas, na maioria dos casos, infelizmente, não é assim. Aos pais é então proposto uma medida de Promoção e Protecção, com um prazo de acção de 12 meses, prorrogável até aos 18 meses, que pode, por exemplo, implicar apresentações no centro de saúde, sessões de terapia ou acompanhamento na escola, dependendo das características da situação. Este acordo só entra em vigor se for assinado pelas partes — tem de ser consensual e voluntário —, ou seja, pelos pais, pela criança (se tiver 12 anos ou mais) e pela CPCJ.

A ideia de que as CPCJ servem para tirar crianças às famílias não se confirma na estatística: mais de 90% das medidas são em meio natural de vida, mas há situações em que é mesmo necessário retirar a criança da situação de perigo, e isto só é possível com o acordo dos pais, privilegiando-se nestes casos o acolhimento familiar.

Execução da medida

Ao contrário do que é comum pensar-se, as CPCJ não executam o plano de intervenção, que compete às entidades vocacionadas para a infância e juventude. O gestor de caso só faz os primeiros contactos e depois acompanha, monitoriza e pode propor ajustes. Se no final de 18 meses o perigo ainda se verificar, a situação é encaminhada para o Ministério Público.

E se forem essas mesmas entidades a revelar-se incapazes de dar a resposta necessária? A vice-presidente da Comissão Nacional das CPCJ defende: “A primeira linha de apoio à infância tem de ser muito mais forte, tem de ser urgentemente reforçada, senão corremos o risco de ter um diagnóstico feito, um plano em curso, mas faltar quem o execute bem.”

Em última análise, corre-se o risco de deixar, de novo, a criança numa situação de perigo, se é que de lá chegou a sair, ou de impedir que os problemas se vão agravando, quase ao ponto de não retorno. Maria João Fernandes põe o dedo na ferida, quando interroga: “Porque é que mais de 65% das crianças e jovens que estão no sistema Tutelar Educativo vêm da Promoção e Protecção? E porque é que a maior parte vem do Acolhimento Residencial? E porque é que depois do Tutelar Educativo vão para o Penal?" É uma pergunta retórica para a qual, sabe bem a resposta: "Não estamos a fazer o suficiente pelas nossas crianças, dever que cabe a todos e a cada um de nós."

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