Fernanda Torres, totalmente Brasil

Há dois anos, o Brasil assistiu invadirem os edifícios dos Três Poderes, durante a tentativa de golpe, que, agora, sabe-se, continha planos de assassinatos políticos e tomada definitiva do poder.

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Oito de janeiro. Há dois anos, o Brasil assistiu invadirem os edifícios dos Três Poderes, durante a tentativa de golpe, que, agora, sabe-se, continha planos de assassinatos políticos e tomada definitiva do poder. Entre seus idealizadores, saudosistas da ditadura militar, outrora sustentada de início por apoio civil. Se, na década de 1960, a “família” marchou nas ruas contra os comunistas; as “pessoas de bem” de hoje destruíram obras históricas, marcos arquitetônicos, documentos públicos. Água, fogo, pedras, paus, fezes...

Houve de tudo na tentativa de repetir, em Brasília, a agressão ao Capitólio norte-americano, ocorrida em 2021, também com planos de golpe e mortes. Foram atos espelhados. Mas, na caricatura brasileira, os nacionalistas desesperados permaneceram em barracas junto aos quartéis, e muitos foram identificados, detidos, presos e tantos mais seguem processados pelo Estado.

Essa história, com falso ar de passado superado, já com um novo Governo no poder, ganhou de volta olhares mais atentos pela data e a partir do filme Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles. Não se trata de outro documentário relâmpago sobre a política recente, com viés assumidamente determinado. Mas por elaborar novas qualidades de como podemos olhar os acontecimentos, tendo o humano por perspectiva fundamental.

A narrativa de Marcelo Rubens Paiva desenvolve a biografia de sua família, em especial pela figura materna, no instante de desaparecimento de seu pai, torturado e assassinado na condição de preso político. Nos 10 anos que separam o livro e o filme, o país se reaproximou perigosamente de seu pior momento na história recente. Torna a narrativa uma obra de impacto emocional e reflexivo pareceu ser o certo a fazer.

E foi. O impacto passou das telas e festivais internacionais mais relevantes às salas e conversas privadas. Então, aos jornais, aos programas televisivos, e não mais parou. Tomou para si o universo digital, especialmente na figura de Fernanda Torres, responsável por representar a esposa-mãe, Eunice Paiva, papel que a consagra definitivamente. Sobretudo por vencer o Globo de Ouro. E ter, assim como foi com Fernanda Montenegro (1999), chances de representar o Brasil outra vez na maior festa do cinema mundial: o Oscar.

Nesse entrelaçar de sobreposições temporais e simbólicas, Fernanda Torres assume um diálogo com o povo brasileiro, que já iniciara há alguns anos. Primeiro com personagens cômicos televisivos; depois, pelas falas e reflexões via digital. O que mudou é o diálogo enfim retornar. Uma imensa parte do povo brasileiro sorri de volta, abre espaço ao convívio e a ouve enquanto cria memes memoráveis, recupera suas entrevistas mais antigas, recorta frases, diverte-se e respira o país que pode ser: o de uma casa crítica aos seus problemas, afirmativo de sua identidade, orgulhoso de sua cultura e com inigualável capacidade de rir de si.

Mesmo com o espalhar da extrema-direita mundo afora, Fernanda Torres subverte o medo, trazendo esperança na forma de existir como novo ídolo nacional. Algo que há tanto o Brasil precisava encontrar. A popular frase dita por Brecht “Miserável país aquele que precisa de heróis” viu retirada a primeira parte. O dramaturgo alemão incluía nessa reflexão “Miserável país que não possui heróis”. Durante muito tempo, passamos a crer que seríamos melhores se não tivéssemos a quem se socorrer. No entanto, a extrema-direita achou seu mito, enquanto a esquerda seguiu órfã de novas identificações.

A atriz, afirmo sem receio, é quem melhor no Brasil entendeu nossa época. Fala sobre qualquer assunto com o cuidado necessário para expandir a maneira de nos olharmos, revelando um profundo interesse por pensar. Ação que parece ter desaparecido nos interiores das múltiplas bolhas em que nos metemos. Dialoga naturalmente com as linguagens das redes sociais, sem precisar se banalizar e submeter ao artificial. Fernanda Torres, se assim quisermos, antropofagia nela mesma o reinventar do afeto que nutrido por Ayrton Senna, da onipresença ficcional de Clarisse Lispector e da ousadia intelectual abusada de Oswald de Andrade.

Contudo, o mundo segue incontrolável. Nesse instante, Mark Zuckerberg dá uma pirueta improvável, revela ter novos amigos e patrões. Em nome da liberdade de expressão, anuncia a Meta (Facebook, Instagram e WhatsApp, entre outras empresas) que deixará de verificar os fatos publicados em suas redes sociais. Na prática, abre espaço para os discursos de ódio, perseguições xenófobas, racistas, misóginas e pedófilas, às teorias conspiratórias mais absurdas e ao movimento subterrâneo da extrema-direita na desconstrução da democracia. Cita Trump como parceiro, apesar de tê-lo banido de suas redes, e Musk como exemplo a seguir, mesmo sendo este concorrente mais direto.

Se na última década, o descontrole das redes sociais levou a desestabilizar contextos sociais, economias e governos, a notícia chega ao ano de retorno do trumpismo, de invasões e guerras, de inquietações populares generalizadas diante de economias em sobressaltos e de 12 importantes eleições europeias, que determinarão o futuro do bloco, com forte possibilidade de o extremismo assumir alguns dos principais países.

Também nesse momento, André Ventura, na Assembleia da República, ao vivo durante debate de urgência exigido por seu partido para tratarem da violência em Portugal, grita sucessivamente a uma série de criminosos misturados a minorias, como se fossem iguais: “encostem-os à parede”. Tal como a Rainha de Copas, em Alice, exigindo que se cortem as cabeças. Reage à manifestação programada para o próximo dia 11, contra a violência policial, denominada “Não nos encostem à parede”. Seu gesto, evidentemente, teatraliza o grito para correr e corroer as redes sociais, aliciando reacionários e fascistas a uma contramanifestação. Não há pudor em atuar contra os direitos políticos, sociais e valores humanos. A realidade, de fato, tornou-se a afirmação delirante de seu próprio fim.

Ainda Estou Aqui estreia em Lisboa no próximo dia 16, quando ainda estaremos sob o impacto dos dias anteriores, nas ruas, na imprensa e nas redes sociais. E é bem provável que a atenção seja transferida ao filme. Porém, não nos percamos. É preciso tomar as redes sociais, mesmo com seus interesses de canibalização econômica e política, para subverter a atenção de seus usuários. Precisamos todos aprender com Fernanda Torres. Usar as redes para atrair ao pensamento com inteligência, diversão e humor. Distrair os perdidos, desviá-los das conspirações manipulatórias dos radicais, tornando-nos mais interessantes e propositivos. Ou correremos sérios riscos de retornarmos em breve ao pior do que o filme retrata, as ruas prometem, os políticos querem, os ultraliberais exigem. Isso importa aos que ainda tiverem interesse em estarem por aqui.

Por isso, hoje farei diferente. Indico a todos apenas um único livro. Não haveria de ser outro, incluindo aqui um abraço a Marcelo, e os encontros que fazem falta. Parabéns, Fernanda Torres, pela imensidão de seu talento. E, após assistir a dezenas de entrevistas dadas no dia da premiação e seguintes, de ouvi-la, de rir junto, de pensar junto, só posso lhe dizer para ficar tranquila, seu cabelo estava ótimo.

Sugestões de leitura:

Ainda Estou Aqui, de Marcelo Rubens Paiva. Editora Dom Quixote, 2025.

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