Mudança de órbita
Não escrevo para defender que as crianças sejam levadas para os convívios desregrados dos pais, como satélites sonolentos. Mas também não vejo que o oposto seja exactamente um avanço.
Quando eu era criança adormecia em restaurantes, em cadeiras juntas que formavam camas improvisadas. Adormecia também em sofás com a cabeça colada a cinzeiros a abarrotar como pequenos vulcões. O cheiro a tabaco era um incenso familiar.
Em festas em casas de amigos dos meus pais, era depositada num quarto escuro, acomodada por casacos alheios. Aninhava-me naquele amontoado que, com a chegada progressiva de convidados, normalmente se transforma num Evereste de gabardinas e cachecóis. Era ali que eu hibernava, enquanto lá fora se ouviam risos, copos, alguém a desafinar.
Os meus pais eram mestres do improviso, e arranjavam maneira de me encaixar nos seus programas. Eles eram os protagonistas, e eu acompanhava-os. Os horários eram os deles e, normalmente, desenrascava-se uma sopa e uma caneta para eu me entreter a fazer desenhos na toalha, que iam sendo salpicados pelos seus brindes.
Vivia nos bastidores da boémia, comia em salas com outros meninos, por vezes fazia amigos temporários, outras, esperava pacientemente que acabasse a diversão adulta.
Às vezes, uma porta entreaberta deixava entrar uma senhora de batom à procura da casa de banho e, lá atrás, um vislumbre do mundo dos crescidos: gargalhadas, o cheiro a whisky misturado com café.
De madrugada, era levada ao colo para o carro. No dia seguinte, enquanto os meus pais dormiam até tarde, eu entretinha-me entre Chocapic e Pokémon.
São 11 da manhã e estou neste momento num parque de trampolins. O nome é enganador: não é um parque. E também não são bem trampolins. Trata-se de uma espécie de bunker industrial, com paredes negras, luzes néon e pequenas portinholas que lembram boxes de cavalos, onde as crianças são lançadas de meias derrapantes para saltos sem fim à vista.
Estou de pé, encostada a uma rede de segurança, de frente para este cenário, ao lado de outros pais. E apercebo-me de que houve uma alteração gravitacional. Uma mudança de órbitas. Antigamente, os filhos giravam à volta dos pais. Agora, os pais giram à volta dos filhos.
Não escrevo para defender que as crianças sejam levadas para os convívios desregrados dos pais, como satélites sonolentos. Mas também não vejo que o oposto: pais arrastados para os múltiplos convívios dos filhos, seja exactamente um avanço. Sinto que as crianças têm calendários mais preenchidos que os de um CEO, e apercebo-me de que os meus fins-de-semana foram transformados em gincanas. Saio do Toys R Us directamente para um hipermercado para comprar material para fazer um Rei Mago reciclável (um dos múltiplos projectos escolares fundamentais), seguida para uma peça de teatro de franchise de uma multinacional dentro de um centro comercial.
A parentalidade, já por si associada ao sacrifício, leva-me a fazer quilómetros no meio destas zonas industriais, a engolir em seco e a pensar, dramaticamente: “É por elas.” Um mantra que não é suficiente para abafar o eco de nostalgia de uma vida em que os fins-de-semana pertenciam aos adultos. Os meus fins-de-semana foram sequestrados por uma programação que me é totalmente estranha.
Ao falar com amigos com filhos, reparo que estamos todos nesta gincana, entre espectáculos da Disney no Gelo, aniversários temáticos e filas de autógrafos para a Bluey. Faço, como é óbvio e como se vê, qualquer coisa pela alegria das minhas filhas. O que me custa é a sensação de que o meu mundo, aquilo de que eu gosto, é o mais longínquo possível disto: concretamente deste espaço sombrio e escorregadio em que me encontro.
Sinto que o fosso entre programas de adultos e crianças está maior. E tenho vontade de encontrar um espaço comum.
Gostava de voltar um pouco atrás. De tentar unir os dois mundos, de forma natural, como quem junta duas cadeiras num restaurante para fazer uma cama improvisada.