O que dizer sobre aborrecimento e leitura
Não temos que lutar contra nada, mas precisamos de saber proporcionar um terreno mais fértil, que lhes permita dominar esta competência que é fundamental para todas as outras.
Querida Mãe,
No outro dia, estava num concerto de piano (ao vivo) com os miúdos. Contra todas as expetativas o mini E. insistiu em ir. Apesar de, no início, ter gostado, a meio já estava aborrecido e cansado. Pediu-me o telemóvel para jogar. Não dei porque estávamos num concerto. Passado uns minutos vi-o a contorcer-se na cadeira, depois a olhar para o teto e para os quadros na parede mas, quando esgotou a vista que tinha do lugar, pegou na única coisa que estava por perto — a brochura do programa que explicava quem tocava o quê.
Como está a começar a aprender a ler e a escrever aquele pedaço de papel cheio de letras surgiu como uma coisa a explorar e quando dei por ele estava de dedo espetado a tentar dizer os sons das letras em sussurro. “O” lido com o som de U, e de seguida “na-t-t-a-l”. Quando, de repente, o cérebro dele somou todas as letras e passaram de um conjunto de letras para palavras inteligíveis olhou para mim com um sorriso enorme! Pela primeira vez, sozinho, leu.
E isto pôs-me a pensar em várias coisas, que partilho consigo:
1. Cada miúdo tem o seu ritmo (como bem se lembra, as irmãs eram muito mais interessadas em letras e livros e começaram a ler muito mais cedo).
2. A aquisição da escrita e da leitura é mágica! É um processo tão complexo e tão bonito que devemos dar graças por todos os bons professores que se dedicam a torná-lo mais interessante, mais acessível e mais eficiente para os seus alunos.
3. O aborrecimento é, de facto, fundamental. É muito mais difícil aprender a ler e a escrever num tempo em que temos tantos vídeos para ver, tantas “siris” para escreverem o que dizemos alto. As suas queridas netas sempre que queriam por a tocar uma música no telefone, perguntavam-me como se soletravam as palavras, e uns anos depois, basta ao mini E. carregar no botão da Siri, pedindo-lhe que o faça por ele. Nada disto é diabólico, mas é seguramente um obstáculo à aquisição da leitura e da escrita, duas coisas que não perderam, nem podem perder, a sua importância. Não temos que lutar contra nada, mas precisamos de saber proporcionar um terreno mais fértil, que lhes permita dominar esta competência que é fundamental para todas as outras.
Por isso, mãe, começo o ano a lembrar que não é preciso pressa. Não é preciso começar a fazer fichas no pré-escolar. Mas é importante ir aproveitando o interesse deles e não ter medo do aborrecimento!
Querida Ana,
Que saudade das nossas cartas — ainda bem que as Birras estão de volta, no teu caso depois de umas férias horríveis com gripe a multiplicar por seis, mas espero que fiquem todos vacinados para o resto de 2025.
Obrigada por falares de aborrecimento e leitura, há muito tempo que esperava a oportunidade de te contar uma história minha e do mini E, precisamente sobre este assunto. Há uns tempos, disse-me que estava “aborrecido”, palavra que não sei onde desencantou porque julgava ultrapassada (mas também pensava que a expressão “uma seca” era coisa moderna e acabo de a encontrar em cartas de meados do século XIX). Bem, adiante, estava o teu filho sem nada que fazer e a queixar-se disso mesmo, quando tive uma eureka: que melhor cura para o aborrecimento do que ir para a cozinha escrever exatamente essa palavra longa e complicada com letras de íman na porta do frigorífico? Funcionou. Ficou entretido... Até estar de novo aborrecido, mas isso agora não interessa nada.
Por isso, sim, o tédio é mesmo importante, para que vão para fora cá dentro, procurando no inesperado uma fonte de satisfação, mas a verdade é que o problema está nos adultos, porque não é nada fácil suportar a tensão que nos provoca não os ver felizes e aos saltinhos, e confesso que ainda o sinto em relação aos meus três filhos adultos, quanto mais se fossem pequeninos. É uma doença o querer ver toda a gente bem, e de preferência ao mesmo tempo, e como suspeito que no meu caso já não tem cura, passemos ao tema da leitura.
É mesmo mágico aprender a ler, mas se para alguns é tão fácil que parece resultado de um abanar de varinha, para outros é uma barreira difícil de ultrapassar, como um daqueles puzzles de milhares de peças a saltarem-nos à frente dos olhos, sem que se consigam encaixar.
Sendo disléxica, com um filho disléxico e duas filhas que não são, percebi como é uma questão muito mais complicada do que dizer simplesmente a um aluno para se concentrar mais, ou ler mais, ou treinar mais. Aprendi-o à minha custa, num tempo em que não havia a menor condescendência para com os meninos que faziam erros nos ditados e, se calhar, agora não há muito mais, porque como dizia o teu irmão numa entrevista ao Dyslexia Day by Day, um blogue que resulta do trabalho fantástico da Patrícia Teixeira de Abreu e da sua filha Francisca, é mesmo horrível falhar numa competência que todos os outros miúdos da sala parecem dominar com uma perna às costas.
Para quem tem dificuldades, a ajuda dos corretores ortográficos nos computadores, por exemplo, é inestimável, como são os audiobooks e mil outras facilidades que a inteligência artificial nos pode trazer, mas tenho a certeza de que não podemos deixar-nos ficar à sombra do mais fácil. O prazer que hoje me dá ler e escrever é a prova de que vale a pena.
Até breve, querida Ana, e que o mini E. descubra, mais cedo ou mais tarde, a felicidade que vem entre as duas capas de um livro.
O Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. E, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. As autoras escrevem segundo o Acordo Ortográfico de 1990