Para onde corre o vinho? 20 ideias para discutirmos entre dois copos

Do anti-álcool aos jovens que se afastam do vinho, do vinho estrangeiro que entra em Portugal e vira português ao storytelling genuíno ao enoturismo. Como vamos beber 2025?

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Adriano Miranda
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Consumo a cair e consequências da crise inflacionista

Diferentes sectores alimentares socorrem-se de estudos estrangeiros de tendências no curto e médio prazo, mas, no caso do vinho, documentos desta natureza ou são escassos ou circulam apenas nas grandes empresas, que pagam bom dinheiro pelos mesmos. Ainda assim, ninguém precisa ser ungido para avançar com linhas de orientação para 2025.

Em termos internacionais, continuaremos a assistir à quebra do consumo de vinho (com aumento de oferta mundial); ao afastamento dos jovens do vinho e à intensificação das campanhas anti-álcool, lideradas por gente que quer à força salvar o nosso corpo e a nossa alma. Se, a estes factores, juntarmos, a nível interno, a continuada quebra de poder de compra das classes médias por via da inflação e da subida dos encargos familiares (agora aligeirados mas sabe-se lá até quando), estão reunidas as condições para a continuação da tempestade perfeita.

O rio de vinho estrangeiro que entra em Portugal e vira português

A nível doméstico continuará a discussão sobre a entrada de centenas de milhões de litros de vinho da União Europeia (UE), que são depois ‘nacionalizados’ no mercado nacional em marcas portuguesas (Pias e coisas parecidas), a preços tão baixos que destroem a vida dos produtores nacionais de uvas.

Nas últimas semanas o Estado tomou algumas decisões que — em tese — vão reforçar o controlo do rio de vinho que chega da UE, quer por via da criação de sistemas de informação coordenados entre diferentes autoridades nacionais, quer por via do controlo laboratorial efectivo para garantia da origem do vinho em si. Por outro lado, a rotulagem do vinho vai ser alterada (se numa garrafa ou numa caixa de bag-in-box existir vinho UE isso estará em destaque) e a restauração vai ser obrigada a identificar nas ementas o que são vinhos com denominação de origem e o que são vinhos UE ou vinhos de mistura da UE com vinhos de Portugal. São boas ideias.

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Precisamos de mais literacia vínica

Mercantilismo ou defesa dos interesses nacionais

O sector do vinho e o próprio Estado terão de decidir se querem que Portugal seja um país cuja viticultura acrescente valor real à economia e com distribuição justa por toda a fileira ou se querem apenas fazer do vinho um produto tão mercantilizado quanto um negócio de parafusos. Terão de decidir se faz sentido que o país esteja permanentemente a destilar vinhos, com as adegas sempre com excedentes. E terão de assumir que é escandaloso que, em 2024, não se conheçam os reais custos de produção de uva por região (se calhar é melhor mandar uma universidade estrangeira estudar o assunto) e que Portugal não tenha mecanismos (como Champagne) em que todas as partes se sentam à mesa para definir valores reais a pagar por quilo de uva. Antes da vindima e não no decorrer desta.

Seja como for, nenhuma das medidas avançadas pelo Governo terá grande alcance se não houver iniciativas regulares de promoção de literacia vínica em Portugal, porque uma coisa é sermos um país histórico na produção de vinho (e somos) e outra é sermos um país letrado em vinho (não somos).

Vinhos para ricos e vinhos para pobres

O comportamento da procura por perfis diferenciados não se vai alterar. Os vinhos premium — uma faixa muito pequena no negócio - terão sempre clientes garantidos, enquanto os vinhos de entrada de gama continuarão na guerra dos preços negociados ao cêntimo. Pelo meio há outros segmentos, mas quer pela questão dos rendimentos estagnados versus aumento do custo de vida, quer pela chegada de segmentos de turismo com menor poder de compra, os vinhos com preços intermédios são os que mais sofrerão num mercado altamente concorrencial. A perda de poder de compra da classe média é dramática para o sector do vinho.

Ainda assim, tudo leva a crer que continuarão a ser lançados vinhos com preços estratosféricos, para irritação de alguns críticos do sector. Se tais vinhos são ou não comprados, isso é que já é mais difícil de garantir.

Lá para fora

As exportações bem podem continuar num ritmo ascendente (em volume e valor), mas o valor do preço médio do vinho português por litro é muito baixo. Não só o mundo se transformou num lago de vinho, como a imagem de Portugal nos mercados estratégicos ou é inexistente ou é associada a produtos de pouca qualidade (no vinho e no resto). Qualidade é o que não falta aos vinhos portugueses, mas um consumidor inglês ou americano dificilmente levará uma garrafa portuguesa para um jantar em casa dos amigos. Preconceito? Ignorância? Pois, mas é assim que o mundo funciona.

Há quem defenda que a ViniPortugal, entidade gestora da marca “Wines of Portugal”, com um orçamento minúsculo para as suas tarefas, deveria concentrar-se em dois ou três mercados estratégicos e não a gerir um bolo de 8 milhões de euros por dezenas de países. Talvez. Mas não é a ViniPortugal que vai mudar a imagem de Portugal no mundo — que só é genial no espírito do senhor Presidente da República.

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O jovens adultos já não querem beber vinho? adriano miranda

As benditas promoções

Vieram para ficar e não há volta a dar. Por mais que se explique a engenharia dos descontos mirabolantes dos 60% e 70% da moderna distribuição, os consumidores continuam a pensar que fazem mesmo grandes negócios. Preços marcados em papéis alaranjados têm um efeito de bloqueio neuronal nos consumidores, que nem sequer pensam um segundo sobre o carácter fantasioso e irrealista de descontos de 60% ou 70% num produto alimentar (alguém vê descontos destes em queijos, peixe, carne ou frutas?). Os produtores estão de mãos atadas, as associações sectoriais assobiam para o lado, o Estado não se mete — era só o que faltava! —​ e os consumidores sentem-se felizes. Os responsáveis das cadeias de distribuição alimentar — donas da economia nacional — devem ser criticados? Se calhar, não. Siga a Marinha.

Os hábitos das novas gerações e o deixa andar

Por razões variadas, os jovens em idade adulta não consomem vinho, o que é preocupante para a sobrevivência do sector no curto, médio e longo prazo. O tema é, evidentemente, melindroso, em particular quando nascem campanhas anti-álcool por todo lado, mas não se vislumbra quem tenha coragem de colocar o problema em cima da mesa. Não se vislumbra quem queira sentar à mesa gente com visões opostas para debater livre e civilizadamente o assunto. Nem se vislumbra quem queira assumir que promover a educação e a literacia responsáveis sobre vinho não é a mesma coisa que fomentar o alcoolismo, que é — convém deixar escrito — um problema real e a combater.

Enquanto tal não acontecer, leremos nos jornais, de dois em dois meses, artigos suportados em estudos para todos os gostos e que comprovam que beber um copo de vinho por semana (já não é um copo por dia) é uma linha recta para chegarmos rapidamente a um rol de cancros e a meia dúzia de doenças neurodegenerativas. Estudos estes que, aparentemente, não têm contraditório.

Feiras e festivais

São iniciativas excelentes para quem as organiza, boas para os consumidores que bebem à borla (e é esse o objectivo), mas irritantes para os produtores, que, em muitos casos, se sentem obrigados a marcar presença. Todo o sector concorda que estes modelos estão gastos, mas, em rigor, ainda não se inventou nada melhor. Por enquanto.

O peso do álcool e as extracções

Depois de décadas à procura de percentagens de álcool elevadíssimas — culpa de um famoso americano — o tiro tem sido corrigido nos últimos anos e esta é claramente uma tendência inexorável, de tal forma que o conceito de vinho com baixo álcool já faz parte do linguajar no sector. Todavia, mais importante do que a redução das percentagens de álcool é o abandono das extracções prolongadas, o abandono das barricas que injectam aromas e sabores ridículos no vinho (baunilha, coco, chocolate, cravinho e por aí fora) e, em consequência, a procura do equilíbrio no vinho. Um tinto pode muito bem ter 14% de álcool e, ainda assim, ser fresco e desafiante na prova. Exemplos não faltam.

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O modelo das feiras está gasto? Nuno Ferreira Santos

Redução do peso das barricas

Aqui, sim, há — graças a Deus — mudanças consideráveis. Se haverá sempre mercado para vinhos a cheirar a carvalho por todo o lado (venha o cheiro das aduelas, das aparas ou do serrim), os consumidores exigentes preferem vinhos mais francos e mais próximos da matriz aromática das castas. É por isso que as barricas de 225 litros têm cada vez mais um maior número de utilizações (quatro, cinco ou seis colheitas) e é também por isso que muitos produtores optam por volumes maiores (300 litros, 500 litros ou tonéis). As cubas de cimento — com formatos para todos os gostos — começam a ver-se nas adegas. Tudo para que o vinho revele muito bem o espírito do lugar.

Douro, Alentejo e Verdes

Portugal tem 14 regiões vitivinícolas e um sem fim de sub-regiões e denominações de origem, mas, às vezes, dá a sensação que aquelas que contam mesmo são o Douro, o Alentejo e os Verdes. Os consumidores até dizem que estão dispostos a provar vinhos do Dão, do Tejo ou de Lisboa, mas, na hora H, compram quase sempre Douro e Alentejo. Também nesta matéria há muito para fazer.

O storytelling genuíno e as histórias da carochinha

O vinho é uma bebida de emoção. Num mundo em que só é possível lançar-se um vinho mau se houver vontade deliberada para o fazer, o que conta muitas vezes é a história por detrás do vinho e não o vinho em si (bons são quase todos os vinhos). É por isso que a narrativa de criação e apresentação de um vinho é determinante, embora se pratique pouco. Mas, muita atenção, convém que essa narrativa seja genuína, sincera e real. Inventar, fantasiar ou contorcer a realidade dá quase sempre mau resultado. Acaba a cheirar a azedo. E isso não é bom para o vinho.

Enoturismo

Os investimentos continuam e os saltos de qualidade são enormes, colocando Portugal ao nível de outros grandes países produtores. Ainda assim, há muito a fazer ao nível do profissionalismo, da formação de recursos humanos, da ligação das unidades turísticas com os territórios envolventes e da criatividade para a atracção de turistas.

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Ainda há muito a fazer no enoturismo Anna Costa

Vinho de Talha

Vai continuar a arrastar muita gente para o Alentejo (é aqui que fazem sentido) porque, mais do que o vinho em si, é uma festa bonita. Ainda falta muito para que, em Lisboa ou no Porto, alguém no restaurante peça vinhos de talha, mas já estivemos mais longe. Brancos, tintos ou petroleiros, venham eles.

Restauração, tudo na mesma

Mais do mesmo ou pior: o vinho vai continuar a ser a galinha dos ovos de ouro da restauração, com preços tremendamente especulativos. Sim, sim, conhece-se o rosário todo: os restaurantes empatam elevadas somas de dinheiro em stocks, investem em caves e copos e pagam rendas elevadas, mas, sejamos honestos, na maioria dos restaurantes o serviço de vinhos é tão banal quanto a especulação. Depois, os donos dos restaurantes queixam-se que os clientes — que sabem quanto custam os vinhos nas prateleiras — bebem cada vez menos vinho, embora haja um estudo que, para espanto de muita gente do sector, diga que a venda de vinho na restauração aumentou.

O caso é tão grave que muitas empresas estão a engarrafar vinhos direccionados em exclusivo para a restauração, mas cuja qualidade é exactamente a mesma de outras marcas próprias que têm no mercado. Objectivo: impedir que os clientes, com os preços dos vinhos comparados entre a restauração e comércio, fiquem com azia à mesa.

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O vinho, galinha dos ovos de ouro da restauração? Catarina Póvoa

Vinhos regenerativos

Entre os diferentes conceitos de práticas agrícolas, a agricultura regenerativa vai continuar a ganhar adeptos na produção porque assenta num princípio base que é fácil de compreender: um solo saudável e naturalmente regenerado dá origem a plantas saudáveis; plantas saudáveis conseguem defender-se sem a necessidade de produtos fito farmacêuticos. O que é que falta? A criação de mecanismos de certificação robustos, mas também isso está a ser tratado.

Garrafas de grandes formatos

Aqui — sejamos honestos — antes de ser uma tendência é capaz de ser o desejo do autor destas linhas. Mas, ainda assim, verifica-se que há cada vez mais consumidores a comprar garrafas de grande formato. E por duas razões: primeiro, porque o vinho evolui melhor e, segundo, porque são muito funcionais em almoços e jantares com amigos e famílias alargadas em dias de festa.

O manancial das castas autóctones

Conhecidas, desconhecidas ou em fase de renascimento, as castas autóctones são a nossa grande riqueza. Apesar da nossa cultura ser o lote (várias castas na mesma garrafa), os vinhos varietais de castas raras têm a capacidade de chamar a atenção da crítica e, com isso, promover ruído comunicacional para o produtor. E há exemplos para todos os gostos. A Real Companhia Velha não teria a notoriedade que tem hoje sem o projecto Séries; o Tejo não seria tão falado sem a aposta nas castas Castelão e Fernão Pires; o Algarve não estaria na boca dos enófilos encartados sem a Negra Mole; os Açores não seriam uma região de desejo sem o trabalho de António Maçanita com as castas Arinto dos Açores, Verdelho e Terrantez; E, já que falamos de futuro, muita atenção ao novo conceito de tintos de Castelão de vinhas velhas que vai nascer na Península de Setúbal. As castas nacionais, sempre elas a fazer a diferença.

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Na Herdade de Pegos Claros, vinhas de castelão Goncalo Villaverde

Vinho do Porto — o eterno abandonado

Entra década, sai década e o disco é o mesmo: os portugueses não se interessam pelo vinho do Porto. Triste realidade. O problema tem barbas e tem complexidades variadas, mas talvez não fosse má ideia o sector olhar para o renascimento da região de Jerez. Claro que, para isso, seria necessário que todos os agentes do Douro se metessem de acordo. Ou que algum guru estrangeiro viesse meter ordem na casa.

E agora para não ficarmos deprimidos

Lá por vivermos um cenário sombrio isso não deve levar a uma depressão do sector, até porque, em rigor, as crises são eternas variáveis na agricultura (quem conhecer um ano sem crise que levante o braço). Portugal tem um património vitícola impressionante, com o qual faz vinhos com muita identidade. Tem património, enólogos de primeira água e produtores com muito mundo.

Por causa desse mesmo património, Portugal está muito bem preparado para fazer a diferença num mundo vitícola cada vez mais padronizado. Nós somos dos países mais ricos em diversidade de castas. Por isso mesmo, temos a obrigação de fazer a diferença por aqui. Para fazer mais do mesmo, Portugal não serve.

Mas, para que toda essa riqueza chegue a todos, precisamos de quatro coisas: maior literacia dos consumidores, aumento do poder de compra dos portugueses, melhoria da imagem de Portugal no mundo e a promoção de uma cultura organizacional de união estratégia entre todos os operadores do sector: produtores de uva, produtores de vinho, comércio, restauração e Estado. Difícil? Pois, bastante, mas não custa nada fazer um brinde a 2025 com tudo isto, em forma de desejo.

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