Colômbia: o bem e a bondade
Mompox é um braseiro nos confins da Colômbia. O nosso corpo habitua-se ao calor tórrido, ao frio gélido, a nossa mente habitua-se à pequena violência do trabalho, à grande violência da guerra.
Um calor de morte em Dezembro. Um calor de ananases. Um forno. Uma sauna permanente. O corpo ocupa todo o espaço que devia ser reservado às ideias. “Já corre uma brisa”, diz-me a dona da pensão Casa Lina. “Hoje está melhor.” Abano a cabeça. “Não”, respondo-lhe. “Está horrível, como ontem.” Ela ri-se. Escorro água, o suor pinga-me em goteira das sobrancelhas, do queixo. “Vocês também transpiram, certo?”, pergunto às raparigas da organização do festival. “Sim, muito”, diz uma, abanando-se com um leque. Mas não vejo ninguém ensopado em suor, como eu. Estou no cu do mundo, trouxe Os Cus de Judas, de António Lobo Antunes, em tradução espanhola, para ler um excerto na minha comunicação. En el Culo del Mundo.
Estou em Santa Cruz de Mompox, uma povoação que fica numa ilha no rio Magdalena, na Colômbia, para a segunda edição do Flimox, o Festival Literário e Cultural de Mompox. O tema do festival: a memória. “Não acredito no bem, acredito na bondade”, escreveu Vassili Grossman. É o que vim aqui dizer. Todas as outras ideias se dissolveram, derretidas pelo calor tórrido. Ficou apenas esta, agarro-me a ela como a uma bóia de salvação no meio da onda de calor. Um outro russo que sobreviveu ao estalinismo, Varlam Chalamov, contou que, nos campos da morte lenta da Sibéria, vigorava a regra seguinte: se a temperatura descesse abaixo de 30 graus negativos, os prisioneiros não saíam para trabalhar na floresta. Mas o termómetro que havia num poste, na parada, estava partido. Os prisioneiros aplicavam um método empírico: quando se escarra e a saliva congela no ar, é porque a temperatura desceu abaixo de 30 graus negativos. Aqui, o calor é tanto que me parece que, se escarrasse, a saliva se evaporaria no ar. Não acredito no bem, acredito na bondade.
Ao almoço e ao jantar, entre os elementos do grupo de participantes vindos de Bogotá, colombianos, um brasileiro, dois portugueses, o calor é um tema obrigatório. Quem aguenta, quem não aguenta. Quem prefere os climas frios, quem prefere o calor. Quem liga, de noite, o ar condicionado no quarto da Casa Lina. Quem liga a ventoinha do tecto. Quem liga as duas coisas ao mesmo tempo. Os mosquitos. Quem é picado, quem não é. Discutem-se marcas de repelentes.
Formigas afrodisíacas
Em Medellín, no aeroporto, a pista de aterragem está ladeada por aviões despedaçados, sem asas, sem hélices, tombados de borco, cobertos de musgo. Destroços aninhados em grupos, como conjuntos escultóricos. Depois da escala em Medellín, uma avioneta de 19 lugares trouxe-nos até Mompox. V., o outro português aqui presente, quer saber como se pronuncia “Mompox”. Há quem diga “Mompox”, há quem diga “Mompós”. Assisto a uma conversa com um grande fotógrafo colombiano, Federico Ríos, que, tendo acompanhado durante muitos anos a guerrilha das FARC, viu e fotografou coisas medonhas. O rosto dele, quando se cala, é o de um Cristo de Caravaggio, cheio de um sofrimento indizível. Quando fala, o rosto transmuta-se, parece outro, irradia luz. Depois, torna a recair naquela dor profunda, como se carregasse um pesado fardo de sofrimento e não se pudesse distrair, sob pena de o derramar sobre nós.
Bogotá fica a 2600 metros de altitude, porque os espanhóis não suportavam o calor de Mompox, o calor das terras baixas, e escolheram o planalto para fundar a grande cidade. “Não usem o telemóvel na rua.” “Cuidado com a máquina fotográfica.” Bogotá parece uma imensa feira da ladra. Tudo se vende nos passeios, em cima de sucessivos oleados. Comida. Roupa. Sapatos. Calendários de papel em grande formato. Cestaria. Livros. Os vendedores têm pregões gravados em pens, que ligam às colunas de som, para não se cansarem. “Mango mango mango mango mango mango mango mango.” Junto ao Museu do Ouro, onde se expõem as peças que os indígenas conseguiram esconder dos espanhóis, uma mulher apregoa de viva voz: “Hormigas! Hormigas! Hormigas!” Ao fim de um certo tempo, graças ao cartaz que ela tem preso ao cesto, percebo que se trata de formigas afrodisíacas. Peço-lhe autorização para a fotografar. Pergunto-lhe se as formigas resultam ou se são apenas para enganar os turistas. “Resultam”, diz-me ela, e sorri. “Além, naquele banco, está o meu filho bebé, ao colo da minha mãe. Quer melhor prova?”
Uma utopia qualquer
Eu e V. saímos do hotel, no bairro La Candelaria, em pleno dia, e vamos a pé até uma livraria, no bairro La Macarena. Atravessamos uma ponte. F., nado e criado em Bogotá, diz-nos depois que evita atravessar essa ponte, mesmo de dia, porque há muitos toxicodependentes a viver debaixo do tabuleiro, é um lugar complicado. A ignorância protege-nos.
Em Mompox, tomo vários duches por dia. Mal saio do duche, começo a transpirar em bica. Discuto com J. a importância de uma utopia qualquer para o nosso tempo, mas não as utopias sangrentas do século XX, nascidas nos países frios e exportadas para os trópicos, que acabaram em banhos de sangue. Ele diz-me que a utopia que se impõe é a da harmonia com a natureza, a do respeito pelo meio ambiente que nos alimenta e do qual dependemos. Eis a única utopia que nos poderá salvar, eis a utopia urgente. Nos sofás da Casa Lina há enormes almofadas estampadas com o Pai Natal e com a Mãe Natal, vestidos de grossas roupas vermelhas, rodeados de cristais de neve. Se o Pai Natal vier a Mompox assim vestido, morre de calor antes sequer de pousar o trenó na pista do pequeno aeroporto. Este Natal-Coca Cola cegamente globalizado é o sucedâneo de utopia que o capitalismo tem para nos servir.
L. diz-me que os famosos hipopótamos de Escobar vivem precisamente nesta região, no curso médio do rio Magdalena. Pablo Escobar importou três exemplares em 1981, um macho e duas fêmeas. Vieram de um jardim zoológico nos Estados Unidos, através dos circuitos do mercado negro de animais exóticos. Depois da morte de Escobar, os animais fugiram do cativeiro, desataram a reproduzir-se. Hoje, há cerca de 150 exemplares em liberdade. Caso se continuem a reproduzir ao ritmo actual, segundo os cálculos de alguns cientistas, serão cerca de 800 por volta de 2035. As alternativas reduzem-se a três: abatê-los, castrá-los ou capturá-los e exportá-los para outros países. Castrá-los é caríssimo e muito difícil. Há organizações animalistas que se opõem furiosamente ao abate. Há quem confunda a utopia de uma relação harmónica entre o homem e o meio ambiente com o amor pelos hipopótamos enquanto indivíduos.
Os hipopótamos de Escobar são agentes involuntários do caos globalizado que ameaça devastar o planeta. Tudo igual em toda a parte, em declinações cada vez mais absurdas. Hipopótamos na Colômbia, neve natalícia em Mompox. L. emenda: Escobar não importou três hipopótamos, importou quatro. Um macho e três fêmeas. Sejamos rigorosos. Defender a bondade em detrimento do bem exige rigor absoluto. A defesa de um bem abstracto coincidiu demasiadas vezes com a manipulação dos números.
Antes o Cristiano
Levantar 300 mil pesos colombianos numa caixa multibanco causa-me calafrios, faz-me sentir estupidamente rico. A companhia aérea colombiana a que recorremos, a Satena, altera constantemente os horários dos voos domésticos. N. passa horas ao telefone, tentando remediar a situação, para evitar que eu fique aqui retido mais um ou dois dias. “A Colômbia não é um país para pessoas ansiosas”, diz-me J. O mundo não é um lugar para pessoas ansiosas.
Taxistas, empregados de hotel, empregados de mesa, todos me perguntam de onde sou. Quando respondo: “De Portugal”, todos, sem excepção, dizem com um sorriso: “Cristiano Ronaldo.” Digo ao rapaz que faz as vezes de recepcionista da Casa Lina que não gosto de Cristiano Ronaldo. E ele: “Porquê, não gosta de futebol?” Tento explicar-lhe que não me agrada um fulano que, a troco de mais uns quantos milhões de dólares, se converteu num idiota útil, num cartaz publicitário de regimes políticos autoritários, misóginos, ambientalmente criminosos. Tento explicar-lhe que Ronaldo é o símbolo do individualismo predatório do século XXI, que veio substituir o colectivismo sanguinário do século XX. Tudo se perde na tradução. R. diz-me depois: “Olha, não te queixes. Quando vou ao estrangeiro e digo que sou colombiano, quase sempre me dizem com um grande sorriso: “Pablo Escobar”. Antes o Cristiano.”
Em Bogotá, o taxista que me leva do Terminal 2 para o Terminal 1, para apanhar o voo de regresso a casa, superadas as sucessivas rasteiras da Satena, pergunta-me de onde sou. Quando digo: “Portugal”, fica em silêncio. Pergunto-lhe: “Não vai dizer Cristiano Ronaldo?” E ele: “Eu preferia o Ronaldinho Gaúcho. Um génio absoluto. Mas gostava muito de cachaça.” E faz o gesto de beber.
No pedestal de uma estátua, em Bogotá, há graffiti a dizer: “Dónde están las mujeres?”, aludindo às dezenas de milhares de mulheres desaparecidas na Colômbia. Quando termino a minha palestra em Mompox, encharcado em suor, percebo que me esqueci de ler o excerto de En el Culo del Mundo. Não acredito no bem, acredito na bondade.
Lisboa, 15 de Dezembro de 2024