À descoberta do mundo desconhecido das borboletas nocturnas
Não têm cores tão exuberantes, mas as borboletas nocturnas estão longe de ser todas iguais. Com a Vita Nativa, descobrimos que há 21 vezes mais espécies nocturnas que diurnas – muitas por identificar.
Luz, lençol, caixas de ovos, acção: está aberta a sessão de descoberta das borboletas nocturnas. Ao longo da noite, atraídas pela única lâmpada ofuscante no meio da Mata Nacional de Barão de São João, no concelho de Lagos, dezenas de borboletas nocturnas vão esvoaçando à nossa volta, para depois pousarem no lençol branco sobre o solo ou refugiarem-se debaixo das caixas de ovos vazias. À primeira vista não lhes distinguimos grandes diferenças.
Menos exuberantes e coloridas que as borboletas que dançam pelos campos durante o dia, as espécies nocturnas são-nos praticamente desconhecidas e, muitas vezes, olhadas com grande indiferença e desprezo – são simplesmente as traças que nos esburacam as roupas. A fama persegue-as a todas como gatos pardos no breu. Primeira pergunta: “Traças e borboletas nocturnas são a mesma coisa?”
“Normalmente, chamamos traças àquelas que traçam a roupa e, realmente, são borboletas nocturnas. Mas cá em Portugal só existem cinco ou seis espécies que se podem alimentar de fibras de algodão ou lã”, responde Thijs Valkenburg, da Vita Nativa, organização responsável pela actividade realizada durante o Walk & Art Fest, em Barão de São João. O público fala várias línguas, e de todas chegarão perguntas sobre a malvadez das traças ao longo da sessão. “Se as roupas são comidas é porque são de boa qualidade”, atira Thijs em gracejo. “Elas não comem sintéticos.”
Não é justo que pela fama de umas espécies se negligencie todo um universo – e é nesse trabalho de desmistificação, descoberta da diversidade e da importância das borboletas nocturnas que se concentram estas actividades da associação, realizadas em parceria com a Rede de Estações de Borboletas Nocturnas (REBN), um projecto de ciência cidadã lançado em 2021 (ver caixa). Sediada em Olhão, com uma equipa no Seixal, a Vita Nativa tem vários projectos de conservação ambiental e, em 2024, começou também a monitorizar borboletas nocturnas “pela primeira vez”.
Panóplia de tamanhos, cores e formas
“O mais interessante é a diversidade que se consegue ver.” Se em Portugal existem cerca de 130 espécies de borboletas diurnas, estão já identificadas mais de 2800 nocturnas, e “todos os anos são adicionadas bastantes espécies, porque ainda não se sabe assim tanto de borboletas nocturnas quanto isso”.
Assim ao longe, aponta Fábia Azevedo, também da Vita Nativa, “parecem todas castanhas”, “todas iguais”. Mas basta que nos aproximemos sorrateiramente das que descansam sobre o lençol, ou tirarmos uma fotografia e ampliar, para descobrir que “são muito diferentes umas das outras.” “É mesmo mágico.” “É uma panóplia de tamanhos, cores e formas”, sublinha Thijs, membro da direcção da REBN.
Ainda que a diferenciação entre macro e microborboletas não seja científica, apenas mais fácil de destrinçar neste tipo de monitorizações e actividades com o público geral, é nas famílias com indivíduos maiores que se foca o trabalho da rede, com o primeiro guia publicado sobre o tema em Portugal, no qual são identificadas todas as espécies, com fotografia e zonas de observação, entre outros dados.
Há asas de um amarelo claro, outras cinzentas, algumas completamente brancas, e outras de asas negras e dorso alvo. Todas com intrincados padrões. Esta é uma Mniotype occidentalis, aquela da família dos “mede-palmos”, outra das Noctuidae, e aqui, espalmada de asas abertas contra o lençol, está um exemplar dos Geometrídeos. “Estão a aparecer mais borboletas do que estava à espera”, confessa Thijs. “Neste momento, já temos umas oito ou nove espécies diferentes.” Serão 30 no total da actividade.
“O Algarve é uma das zonas mais ricas, porque temos habitats muito diversos: a costa, quase uma montanha na zona de Monchique, ribeiras... Depois cada nicho tem as suas espécies particulares”, aponta. “Podemos fazer aqui esta amostragem e, se andarmos 300 metros para uma zona mais de sobreiros ou giestas, já vamos ter espécies diferentes.” Depois, algumas voam no Verão; outras mais no Inverno. As mais pequenas surgem “nas primeiras horas da noite”, as maiores já de madrugada. Numa noite com condições ideais, “podemos ter aqui no lençol 400 ou 500 indivíduos, de 150 espécies diferentes”. “Já tive quase 200 espécies, o que é espectacular, num habitat muito bem preservado na Rocha da Pena, por exemplo.”
Espécies novas para a ciência
Ornitólogo há vários anos em Portugal, formado como técnico ambiental e florestal nos Países Baixos, Thijs considera-se um amador no campo das borboletas nocturnas. Só nos últimos três anos é que tem “investido algum tempo” em saídas de campo aos fins-de-semana. Mas este ainda é um universo tão desconhecido, não só o das borboletas como o dos insectos noctívagos em geral, que já encontrou “duas ou três novas espécies” que “nunca tinham sido vistas ou descritas” em Portugal, “o que é bastante entusiasmante”.
Logo nas primeiras sessões que fizeram, no Parque Natural da Ria Formosa, “que é um habitat específico”, descobriram uma nova espécie “que já estava dada para Espanha” mas que “ainda não tinha sido registada em Portugal”, recorda. E, em Novembro, co-publicou mais um artigo científico, desta vez sobre uma espécie nova para a ciência (e não apenas no país).
Além da identificação de novas espécies, o trabalho de monitorização é fundamental para conhecer as “tendências populacionais” ao longo de todo o ano, e perceber que espécies voam onde e em que altura. “Se não me engano, já são 80 mil registos validados pela rede”, sublinha, destacando o papel que algumas borboletas nocturnas desempenham na polinização. “A maioria das flores estão abertas todo o dia, mas há muitas que só abrem durante a noite, então é mesmo necessário termos borboletas para as polinizar.”
Depois existem espécies com interacções “muito específicas”, como é o caso de uma borboleta nocturna “muito particular”, “caso único na Europa”, que na fase larvar “come as fezes” de uma única espécie de cigarra que, por sua vez, se alimenta apenas da palmeira-anã. Basta a planta desaparecer para “a espécie acabar”. Outra só se alimenta da lantana, outra das oliveiras. A preservação dos habitats é fundamental para a manutenção das espécies – e com a perda daqueles está-se a assistir a uma diminuição das populações. “Há 40 ou 50 anos haveria, provavelmente, centenas de borboletas nocturnas aqui. E se fôssemos aos trópicos, então, era uma loucura, porque realmente depende da dimensão da biodiversidade em redor.”
O objectivo destas actividades, por isso, passa por tirar as borboletas nocturnas da sombra. Mas nem sempre é fácil ultrapassar o estigma. Realizadas “para aí uma vez por mês”, nas zonas de Olhão e do Seixal, as actividades “nem sempre têm muito público, a verdade é essa”, aponta Fábia. No âmbito do festival de caminhadas de Barão de São João, no entanto, foi uma das primeiras a esgotar. Dado o primeiro passo, muitos acabam por sair “com uma perspectiva totalmente diferente”. “Há muita gente que depois nos manda fotos para tentarmos identificar. Sentimos que ficam mais alerta e curiosos para o tema.” Tanto aqui como no voluntariado na REBN, “uma das coisas mais importantes é dar oportunidade às pessoas de conhecerem a fauna que existe nos seus jardins”, acrescenta Thijs. “Se soubermos o que existe, sabemos o que proteger.”