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Feliz ano-novo, Norma!
A experiência de acompanhar um casal que, para o bem dele e dela, continue separado.
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Por anos acompanhei, por acaso, esse casal. O casal é formado por um homem e uma mulher, algo, por si só, já meio falido. Mas, vamos lá, acompanhar o tempo que se passou para quem eu chamarei, a partir de agora de Norma e João.
Por uma dessas coincidências que não se explica, eu estava sempre perto deles. Os horários batiam e me via frequentemente caminhando passos atrás de Norma e João, enquanto eles iam para o trabalho, davam um pulo no Mini Preço ou, mais animados, no Pingo Doce, paravam no café onde ele pedia um expresso, sacava um cigarro que ele chupava aliviado como se fosse seu penúltimo sopro de vida e ela, com seu paladar meio infantil, engolia uma meia de leite, mesmo que fosse meio-dia.
Nesses anos que os acompanhei, nunca, mas nunca que João mandou Norma se foder. Um casal normal: ele falava olhando pra ela, e ela sorria muito frequentemente pra ele. É verdade que brigaram algumas vezes, mas nunca que João mandou Norma se foder.
Calhou de eu os ver uma vez, enquanto caminhavam à noite procurando um lugar para comer numa Lisboa chuvosa e escorregadia. Norma caminhava levemente atrás de João. Se eu não os tivesse visto tantas vezes, me perguntaria se eram parentes, casados, irmãos. Namorados e amantes é que não poderiam ser. E eu vendo aquilo: Norma tenta se equilibrar nas pedras lisas de Lisboa fazendo passos contidos, tensos, contraídos.
João não sabe disso porque não vê, mas sabe que ela segue atrás dele porque o ar está pesado. O ar molhado lisboeta lustra o chão cada vez mais oleoso, enquanto eles tentam achar um lugar para comer. Depois de meio caminho andado, João, sem se virar para Norma, voz projetada para frente como se ela estivesse ao seu lado, pergunta se ela quer dar o braço a ele.
Norma hesita enquanto patina na superfície lusitana, lustrosa, letal. Gostaria que ele não tivesse feito a pergunta. Gostaria também que o tempo parasse no ponto em que o toque escorregava limpo, luminoso, lânguido entre os dois para que os dedos de João abocanhassem gostosos e firmes seu braço evitando o tombo. Que parassem no meio do caminho, sob a chuvinha e se beijassem com a falta de ar de uma aula de natação.
Ele repete a pergunta. Ela não responde. Ele deixa de insistir: "Norma chata pra caralho".
Ainda assim, João nunca, mas nunca mandou Norma se foder. Agora, quando prepara o jantar pra ela, ele se esquece dos delicados guardanapos de linho bordados e corre à cozinha para pegar um rolo de papel. Papel bege, que Norma usa sobre os lábios para esconder a falta de graça quando ele ri do rosto dela numa foto ridícula, mas que, não faz tempo, era bonita. Ainda assim, João nunca nem mandou a Norma se foder e nem sequer encostou um dedo nela pra bater, a não ser as vezes que ela pediu.
Assim, uma tarde, eu lá atrás deles, vejo que conversam com os músculos da boca tensos. Tombam o rosto para um lado como se olhassem um quadro abstrato na parede. Como se o idioma em comum fosse línguas de fogo. Norma passa a achar que o desejo que fez na hora de soprar a vela no dia do seu aniversário, quando na noite anterior João gritou tanto com ela, que achou que fosse cair, tivesse se realizado.
Quando depois do desentendimento que, aliás, ele resistiu a mandá-la se foder, ela foi lá, olhinhos fechados e espremidos, mãos juntas ao peito e pediu, não sabe a quem e com a vela acesa, que se livrasse daquele homem. Acabou ficando mais que o previsto porque João, bem ou mal, nunca mandou Norma se foder.
Tava na cara: estava tudo acabado e tinham, finalmente, que dizer isso um ao outro. De repente, Norma sentiu seu entorno rodar como se estivesse bêbada. Como seria possível ficar sem o João?
Mas João cismou que podia ser amigo de Norma, afinal, nunca tinha mandado ela se foder. Depois de repreender Norma chamando-a disso e daquilo e de sei lá mais o quê — nem sempre era possível ouvir os dois com clareza, já que eu andava a uns passos atrás —, João parecia um eremita, um bom frade que quer a paz, não só do mundo, mas a deles. Generoso, começou a tratar Norminha muito bem, sempre muito orgulhoso de nunca ter mandado ela se foder.
Depois de se perder num escuro sem o João com quem caminhou investida por anos, a bondade, a generosidade e a paz dele jogam em Norma uma água lenta e persistente que parecia infiltração. Imóvel, dentro de um quadrado de temperatura outrora tropical, aquilo quente de derreter o juízo, Norma sente os pés esfriarem, junta os lados do casado rentes ao peito, esfrega as mãos e assopra o ar quente da boca nas pontas dos dedos. Um gelo na Península Ibérica!
Ao mesmo tempo que Norma nota a infiltração do lugar onde está, João decide se amornar e mandar beijos ternos a Norma. Como se não bastassem os beijos ternos, dizia que sentia ternura por ela. Ternura, palavrinha limpa, purinha e delicada que fazia Norma enjoar de passar mal, como passa mal quem comeu uma bandeja de doces conventuais. Como era possível João virar um irmãozinho de Norma? De repente, com tanta ternura, Norma sentiu a luz do inferninho apagar, o botãozinho do forno emperrar e não ligar mais. Aguazinha tépida a ideia do Joãozinho na Norminha.
Às bordas do ano novo, votos de bem-querença pelo mundo. João, pela mensagem, deseja paz e amor, e também sentimentos afetuosos, cheio de ternurinha. Norma sente falta de um emoji de pomba branca da paz. João parecia uma criança de tanta ternura. E para crianças, Norma manda mensagens de coraçõezinhos cor-de-rosa cheios de ternura.
A vontade de João, ao ver a mensagem tão docinha da Norminha, era mandá-la ir se foder. Mas isso João nunca fez.
Nunca mais vi os dois, mas tenho a esperança de que tudo tenha dado certo e que continuem separados.
Feliz ano-novo, Norma!