A morte de Pedro Sobral, Portugal e o flagelo da sinistralidade viária: prioridades a mudar

Termos como “acidente” desculpabilizam as causas comportamentais que aumentam o perigo rodoviário, designadamente as velocidades excessivas e a condução agressiva, mas também as causas estruturais.

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A maior causa da sinistralidade viária em Portugal de pessoas a pé ou de bicicleta é por atropelamentos causados por veículos motorizados, i.e., automóveis. A trágica morte de Pedro Sobral, presidente da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), uma figura amplamente respeitada, trouxe uma visibilidade incomum a um grave problema nacional. Expõe uma realidade muito preocupante sobre a via pública em Portugal: a sinistralidade de quem anda a pé ou de bicicleta ou, no caso de Pedro Sobral, pratica o desporto de ciclismo para lazer, é um flagelo nacional e mostra como o planeamento e gestão da infraestrutura viária urbana em Portugal continua a priorizar o automóvel, relegando ciclistas e peões a condições que colocam as suas vidas em perigo.

O local onde Pedro Sobral foi atropelado demonstra bem esta priorização. A Avenida da Índia, em Lisboa, é situada em plena área urbana consolidada, mas tal como tantas “avenidas” nas cidades portuguesas, esta artéria urbana foi projetada para garantir fluxos elevados de tráfego rodoviário e velocidades sem quaisquer considerações para quem anda de bicicleta, e pouca importância para quem se desloca a pé ou mesmo quem vive nas áreas envolventes. É, por isso, frequente haver velocidades muito acima do permitido, geralmente 50km/h, neste sítio. Há três anos, um homem foi mortalmente atropelado no mesmo local, em frente à Cordoaria Nacional, enquanto circulava de trotineta no outro sentido, tendo sido projetado para o caminho de ferro tal a violência do embate causado pelo automóvel. A 2,7 quilómetros a poente, na mesma Avenida da Índia, em Pedrouços, Patrízia Paradiso, na altura grávida, morreu abalroada por um carro enquanto andava de bicicleta. E apesar da vigília em homenagem à ciclista e a exigir melhores condições - “Podia ser eu, podias ser tu. Nem mais uma vítima” - nesta avenida, e em tantas outras do nosso país, o número de vítimas continua a aumentar.

Estes casos são frequentes em Portugal. Na semana passada morreu uma menina de 11 anos atropelada quando saía de um autocarro em Vila do Conde. Há umas semanas, um estudante universitário foi atropelado mortalmente numa passadeira na Avenida Estados Unidos da América, em Lisboa, e duas semanas antes um homem de 40 anos morreu atropelado a atravessar a Avenida das Forças Armadas lá perto. Também na envolvente destas duas tragédias, há quatro anos, uma rapariga de 16 anos, Ana Oliveira, que regressava a casa de bicicleta, foi atropelada mortalmente numa passadeira a atravessar o Campo Grande por um carro cujo condutor desrespeitou a sinalização.

Estes “acidentes” de acidental não têm nada. São incidentes que destroem vidas com uma frequência alarmante, demonstrando a enorme falta de condições de segurança na via pública e o significativo impacto de condutores de automóveis que, com uma frequência assustadora, continuam a não cumprir com as mais básicas regras de convivência na cidade. Desde velocidades excessivas ao desrespeito por passadeiras ou estacionamento abusivo sobre passeios ou ciclovias, ou mesmo buzinadelas antissociais, a impunidade de quem menospreza os restantes utilizadores do espaço público e os residentes das nossas áreas urbanas é prática recorrente em Portugal, consequência do desenho urbano que prioriza o automóvel e desconsidera os outros modos e da ausência de fiscalização pelas autoridades.

Curiosamente, apesar de Portugal ser líder na produção de bicicletas na Europa, 6º maior exportador mundial, e ter um clima ideal para a mobilidade ativa - seja em bicicleta, seja a pé - é também um dos países da Europa que menos investe em infraestrutura ciclável e onde a própria legislação de acessibilidade pedonal não se cumpre nem é fiscalizada pelo Estado.

Os sintomas são claros: poucas ciclovias, muitas vezes estreitas e mal projetadas; percursos pedonais com passeios reduzidos, escassez de passadeiras e desvios pouco práticos, frequentemente obstruídos por estacionamento abusivo ou pilaretes. A maior parte do espaço público é concebida para favorecer a circulação e o estacionamento de automóveis, com tempos de semaforização ajustados para priorizar o fluxo de tráfego rodoviário. Isso obriga peões e ciclistas a longas esperas, perpetuando um sistema que privilegia a velocidade e a eficiência do automóvel em detrimento de outros modos de mobilidade. Um círculo vicioso do “sistema da automobilidade” (termo de John Urry, 2004) com consequências nefastas para a vida nas nossas cidades, a mais recente e visível a trágica morte de Pedro Sobral.

O flagelo da sinistralidade viária resolve-se também através da uma comunicação mais cuidada sobre este fenómeno, nomeadamente pela comunicação social. Identifica-se com frequência um problema de linguagem na forma como se notícia a sinistralidade, desculpabilizando as causas dos incidentes e subtilmente passando a culpa para cima das vítimas (“victim blaming” em inglês). Termos como "acidente" desculpabilizam as causas comportamentais que aumentam o perigo rodoviário, designadamente as velocidades excessivas e a condução agressiva, mas também as causas estruturais, como infraestrutura que só prioriza a “segurança rodoviária” do modo automóvel e omite os restantes utilizadores da via pública. Para reportar o que realmente aconteceu seria construtivo adotar uma linguagem objetiva que demonstre o que efetivamente causou a tragédia em questão; em vez de “acidente” é um “incidente”. Os dois mais recentes artigos no PÚBLICO são exemplos de tudo o que está errado na abordagem desta tragédia: “Em seis anos morreram pelo menos 111 pessoas com acidentes com bicicletas” e “Saiba como minimizar riscos a pedalar nas estradas portuguesas” … O comentário do Adam Tranter no X, em resposta à publicação do PÚBLICO, não podia ser mais acertado: “Se alguém fosse morto com uma faca, escreveria um artigo sobre como assumir responsabilidade para não ser esfaqueado?”

A trágica morte de Pedro Sobral, tal como a de todas as outras vítimas do perigo rodoviário, demonstra que as prioridades do planeamento da mobilidade urbana precisam de mudar urgentemente, colocando as vidas das pessoas acima da necessidade de garantir velocidades para automóveis, motos camiões, autocarros, etc. Uma infraestrutura viária segura e inclusiva exige medidas físicas de acalmia e redução de tráfego e das velocidades. Esta mudança permite transformar as vias em locais mais seguros, menos ruidosos e menos poluídos porque priorizam os modos mais sustentáveis, e salvam vidas, não só de quem anda a pé, ou se desloca de bicicleta, mas também de ciclistas desportivos, como Pedro Sobral.

Que esta lamentável perda, assim como a de todas as outras vítimas no nosso espaço público, inspire a sociedade e os meios de comunicação a focarem nas verdadeiras causas do flagelo rodoviário que existe em Portugal, e assim ajudar a evitar mais mortes na via pública. Permitir a continuidade do atual status quo do automóvel-rei, do laissez-faire e impunidade da sua utilização irresponsável, não é apenas negligência, é cumplicidade. Em contrapartida, com uma reflexão mais objetiva sobre as causas desta tragédia podemos começar a fazer uma leitura mais consciente do problema e assim agir em conformidade.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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