Ímpar
Com Gisèle Pelicot confirmamos que os homens são todos cúmplices
Bem-estar, famílias e relações, moda, celebridades... Um mundo que não é fútil.
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Esta quinta-feira chegou ao fim o julgamento do caso de Gisèle Pelicot, a francesa que foi sedada pelo marido e violada mais de 200 vezes por homens que Dominique Pelicot angariava. Segundo os vídeos apreendidos pelas autoridades locais, em 2020, o caso durou nove anos. Agora, o homem foi condenado a 20 anos de prisão pela violação agravada da sua ex-mulher, Gisèle Pelicot, e ainda de tentativa de violação agravada da mulher do co-arguido Jean Pierre Marechal (que foi condenado a 12 anos de prisão) e de ter recolhido imagens íntimas e sem consentimento da filha, Caroline, e das noras, Aurore e Céline.
Coube a Gisèle Pelicot tornar o caso público, este poderia ter sido julgado à porta fechada, mas a mulher quis que o mundo percebesse o que é a violação, o que é consentimento (alguns dos homens afirmaram desconhecer o conceito), e ser um exemplo para outras mulheres, para que não tenham medo de denunciar, caso sejam vítimas de violência. A dada altura do julgamento, que decorreu em Avignon, Gisèle confessou: "Sou uma mulher totalmente destruída e não sei como é que me vou erguer desta situação." Contudo, do lado de fora do tribunal, teve sempre o apoio de centenas de pessoas, sobretudo mulheres, que ali se dirigiam para a aplaudir, para lhe sorrir, para lhe transmitirem a sua solidariedade.
Dia após dia, Gisèle Pelicot tornou-se um ícone para os defensores dos direitos das mulheres e para as feministas. E quando a Time decidiu que a personalidade do ano era Donald Trump, muitos comentários condenavam a decisão e nomeavam Gisèle, ela sim, merecia ser capa da revista — algo altamente improvável, uma vez que a Time, em anos de eleições, nomeou sempre os vencedores da corrida à Casa Branca, como aconteceu em 2016 precisamente com Trump. Ainda durante o julgamento, a edição germânica da Vogue fez uma capa digital com a mulher francesa e com o título "No more shame" (não voltar a ter vergonha, numa tradução livre) e muitos internautas pediram que a tornassem palpável, em papel.
Quando a jornalista Carla B. Ribeiro acompanhou o desfecho deste caso, decidiu fazer um texto só com as condenações dos cúmplices de Dominique Pelicot e vale muito a pena lê-lo porque mostra claramente como os homens são todos iguais, independentemente da idade, da classe, da etnia, da formação académica, da profissão (muitos camionistas, empreiteiros e trabalhadores agrícolas e das obras, mas também enfermeiros, um jornalista, militares, há mesmo um que pondera ser pastor e não é de ovelhas), não houve nenhum que tivesse feito alguma coisa por aquela mulher; nem aquele que chegou, viu e saiu porta fora, nem esse foi capaz de passar por uma esquadra da polícia e denunciar o caso.
Os argumentos e as desculpas que usam são de revolver o estômago de qualquer mulher (e de alguns homens, espero). De recordar que Dominique recorria a um fórum na Internet onde estavam mais do que os seus cúmplices. Nem nesse fórum houve alguém que viesse a público fazer uma denúncia. Todos são cúmplices. Todos são culpados. Há meses, a jornalista Mariana Durães dava conta de um canal no Telegram onde estão cerca de 70 mil homens portugueses, que partilham imagens de mulheres sem que estas saibam.
Eu posso estar lá, como a leitora também lá pode estar, sem que saibamos. E isto é feito sem a nossa autorização, mal sabemos o que dizem sobre nós, sobre o nosso corpo, desconhecemos se estamos em perigo, se esses homens nos querem fazer mais mal, do que apenas olhar para as fotografias captadas com ou sem o nosso consentimento. Porque existem também os incels, que a Mariana Durães nos dava a conhecer em Abril, homens que, frustrados, sonham em matar mulheres. Também eles se reúnem em fóruns.
No fundo, há uma incapacidade de muitos homens, por mais auto-estima e confiança que tenham, por mais resolvidos que estejam, de reconhecer como justa a igualdade entre homens e mulheres. Em respeitar as mulheres. Imaginem então os que não estão resolvidos, os que se sentem inferiorizados — nas novas gerações, elas têm melhores notas, elas têm mais estudos, elas sentem-se confiantes até ao dia em que eles partilham as suas imagens íntimas, até ao dia em que eles lhes dão um tabefe (no estudo da UMAR sobre a violência no namoro conclui-se que metade dos jovens acha que é legítimo controlar os parceiros), até ao dia...
Por isso, não é de estranhar que se vá abrindo um fosso entre homens e mulheres. Em Março, um artigo da The Economist revelava que as mulheres entre os 18 e a casa dos 30 anos estão a tornar-se mais progressistas ou a votar em partidos de esquerda e os homens da mesma idade estão a ficar mais conservadores ou a depositar o seu voto em forças políticas de direita. A salvação deles é o regresso ao antigamente e há mulheres que estão disponíveis para isso, as tais tradwifes e, uma tendência recente que dificilmente se aplicará por cá, as soft girls, que vivem de mesadas dos companheiros. A dependência.
A tentativa de domínio dos homens sobre as mulheres — o que é a violação? —, pode chegar de todas as maneiras, como o denegrir a imagem delas, difamar o seu bom nome. O The New York Times denunciou o caso que opõe a actriz Blake Lively e o actor Justin Baldoni e revela como podemos ser todos manipulados.
Por isso, há muito para fazermos em casa, em família, não só falar sobre igualdade, mas também dar exemplos concretos, de pais que são companheiros, que são parceiros e não adversários, de filhos que fazem a cama e limpam o quarto, não interessa por que pronome respondem, de bons exemplos. Ana e Isabel Stilweel, no podcast Birras de Mãe, reflectem como esta época pode ser um stress e destruir até um casamento. Mas, para o evitar, o Natal pode ser uma óptima altura para os miúdos verem a mãe e o pai na cozinha, a preparar a ceia, por exemplo. No fundo, o que queremos é ser feliz, de preferência com os outros — aqui ficam sete sugestões para alcançar a felicidade —, e, em baixo, algumas propostas de leitura dos trabalhos que fomos fazendo a pensar nesta época.
Bom Natal!