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É Natal, tia Guida
A jornada do imigrante pode ser deveras solitária e desafiadora. Afinal, atravessar o oceano e reaprender a viver exigem coragem, abnegação e uma boa dose de sorte.
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Era um frio novembro de 2018 quando cheguei, de vez, em Portugal. A jornada do imigrante pode ser deveras solitária e desafiadora. Afinal, atravessar o oceano e reaprender a viver exigem coragem, abnegação e uma boa dose de sorte. Para muito além de simplesmente sair da zona de conforto, como alguns dizem, emigrar é abrir mão do abraço de mãe, é se afastar dos amigos e de pessoas importantes para você, é viver o eterno dilema de não saber se estaríamos mais felizes aqui ou lá de onde viemos. Ser imigrante é descobrir o que é saudade de verdade, é aprender a conviver com ela e domá-la de maneira que esta convivência seja suportável para um ser humano.
Sempre tive a certeza de que aquela força superior que governa o universo cuidaria de não me desamparar. É a tal fé que me faz otimista demais, a maior herança de meus pais. Neste caso, a Providência se materializou através do acolhimento ímpar que recebi da parcela lusitana da minha família. Cada um, a sua maneira, cuidou de tornar o caminho até aqui mais suave e sereno, estendendo-me a mão de múltiplas formas, tempos e maneiras diferentes.
Mas nem nos meus melhores sonhos poderia imaginar que encontraria aqui uma segunda mãe. Egresso de uma grande cidade, foi numa pequena aldeia do Norte do país que convivi com tia Guida. Simples na essência e nobre de coração, soube, como ninguém, ajudar a aplacar minha saudade de casa, oferecendo a sua própria como um novo lar.
Aliás, se tenho hoje a oportunidade de contribuir para este jornal, o faço graças à generosidade da tia Guida, que me permitiu assento e pouso emocional, acolhendo-me como filho, até que eu pudesse dar início ao processo de plantar minhas próprias raízes aqui. Do alto de sua humildade, partilhava a sabedoria que de quem passou a vida servindo, no sentido mais nobre e abrangente da palavra.
Certo dia, estava em casa dela e me deparei com tia Guida na cozinha, fardada e envolta em farinha. A lenha do forno estalava, indicando a combustão iminente. Percebi que alguma atividade intensa se instalara por ali e, para não atrapalhar, dei-lhe bom dia e saí. Quando retornei à cozinha, algumas horas depois, encontrei uma mesa repleta de lindos bolos, dignos de uma confeitaria de renome, decorados com frutas cristalizadas e cobertos com mel, que, depois vim a saber, tratarem-se dos famosos bolos-rei.
Espantando, perguntei-lhe: a senhora vende esses bolos, tia? No que ela vociferou de imediato, com um ar um tanto indignado: "Ai, não, eu ofereço!" Ainda surpreso, retruquei, dada a quantidade de bolos em cima da mesa: Mas oferece para quem? E ela, dando de ombros: "Pá, para muitas pessoas, Fábio. É um miminho de Natal". E seguiu concentrada, trabalhando a massa da fornada seguinte, apontando para uma faca e me sugerindo que partisse um dos bolos para provar. Que delícia.
O que a Guida nos ensina é que amar o próximo é olhar para o lado, para dentro de casa, e fazer por aqueles que estão à nossa volta. E que o verdadeiro valor do bolo-rei não está nele, mas sim no prestigioso labor de quem o prepara, abnegadamente, doando seu tempo, trabalho e recursos para que alguém receba o doce afeto do Natal. Sei que a maioria aqui não terá tido o privilégio de ter uma Guida em suas vidas. Mas todos nós podemos ser Guida na vida de alguém.
Sendo a saudade o lugar que a vida nos reservou, trago comigo a lembrança doce da convivência generosa e do acolhimento fraternal. A Guida foi luz, paz e humanidade. Ela ainda está aqui, dentro de cada um, nos fazendo lembrar que coisas são só coisas e que o que verdadeiramente importa é aquilo que, de melhor, podemos fazer pelo outro.
É no Natal que somos chamados a fazer uma profunda e sincera reflexão acerca de como vivemos o ano que se finda. E não há um Natal, desde então, em que a Guida não se afigure presente, como uma espécie de bússola moral, para corrigirmos o rumo. A Guida guia. Aos leitores desta coluna, desejo muitos miminhos de Natal. Afinal, será sempre Natal, não é, tia Guida.